por Daniel Roncaglia
A desembargadora Maria Cecília Pereira de Mello, relatora do Caso Kroll no TRF da 3ª Região, entrou com representação no Ministério Público Federal para que investigue se ela e funcionários de seu gabinete foram grampeados sem autorização judicial. O relatório da Operação Satiagraha, da Polícia Federal, traz referências sobre conversas suas com o advogado Nélio Machado, que defende o banqueiro Daniel Dantas.
Maria Cecília tem certeza de que foi grampeada pela PF. Segundo ela, trecho do relatório da operação com referências à conversas suas com Nélio Machado vazou para a imprensa. O texto do delegado Protógenes Queiroz, como de hábito, é confuso. Não fica claro se as conversas narradas são entre Nélio Machado e um investigado (Humberto Braz) ou se são entre o advogado e a desembargadora. Além do MPF, a desembargadora deve notificar o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça.
Oficialmente, a Justiça não deu qualquer autorização para interceptação dos telefones da desembargadora nem do advogado. “O relatório claramente se refere à gravação das comunicações telefônicas mantidas por esta desembargadora, ou por funcionários de seu gabinete, com o advogado Nelio Machado ou outros advogados do escritório dele. Como as comunicações telefônicas são constitucionalmente invioláveis, exceto com a autorização de decisão judicial fundamentada, formula-se esta Representação”, afirma Maria Cecília.
A desembargadora defende em sua representação a legitimidade das conversas entre juízes e advogados: “O relatório parece ignorar que é direito constitucional da parte e de seu advogado conhecer todas as fases e andamentos do processo. Não é por outro motivo que o esforço da administração judiciária tem buscado apoio nos recursos tecnológicos para disponibilizar instantaneamente, nas redes de informática de acesso público, os atos processuais na medida em que vão sendo praticados”. E continua: “Por outro lado, os advogados têm direito, garantido por Lei, a audiência com os juízes que se encarregam da prestação do serviço público de julgar os casos de seus clientes”.
A desembargadora também diz ser normal e legítimo que o juiz comunique aos advogados a data de julgamento de Habeas Corpus, procedimento que no relatório do delegado Protógenes é considerado suspeito. “Acrescento que, embora não haja previsão legal expressa no sentido de intimar-se os advogados acerca da data de julgamento de HCs, é posição pacificada do STF, seguida por esta desembargadora, que os advogados têm direito à comunicação da data de julgamento de HCs”.
Maria Cecília diz, por fim que “a civilidade no trato com os advogados e procuradores, o respeito ao direito de cada um e das partes que representam de nenhuma forma prejudicam o estrito cumprimento da lei e o julgamento imparcial”. E termina censurando o tom conspiratório do relatório do delegado da PF: “O referido relatório policial se refere a fases e providências do processo, como por exemplo o pedido de informações à autoridade alegadamente coatora, em procedimento de ‘habeas corpus’, como estranhas “providências” que o Juízo estaria tomando em favor ou contra alguém”.
Leia a representação
Excelentíssima Sra. Procuradora-Chefe da Procuradoria Regional da República da 3ª Região
MARIA CECILIA PEREIRA DE MELLO, brasileira, casada, Desembargadora Federal do TRF da 3ª Região, sito à Avenida Paulista, 1842, 17ª andar, Gabinete 2, portadora da Cédula de Identidade RG 9.518.293 e inscrita no Cadastro das Pessoas Físicas do Ministério da Fazenda sob nº 022.519.188-17, vem Representar ao Ministério Público Federal para que se digne tomar as necessárias providências, se entender cabíveis, com relação aos seguintes fatos.
No dia 11 de julho próximo passado a signatária foi procurada pelo jornalista Rodrigo Pereira, do jornal “O Estado de São Paulo”, que por “e-mail” lhe formulou as seguintes indagações:
“Queríamos saber da desembargadora se ela se encontrou ou manteve contato com a advogada Ilana Müller no dia 30 de abril e o que foi tratado. Se conhece e ligou para o advogado Nélio Machado nesse mesmo dia e no dia 5 de maio, e, também, o que foi tratado.
Se solicitou informações a todas as varas criminais de São Paulo sobre inquérito contra o grupo Opportunity ou Daniel Valente Dantas.
E qual a avaliação dela para esses apontamentos da PF. Agradeço a atenção (segue trechos do inquérito em questão)
Rodrigo Pereira”
Ao texto acima o referido jornalista anexou transcrição parcial de relatório constante de inquérito policial, na qual se lê:
“No dia 30 de abril, Nélio chama a desembargadora de “nossa amiga Cecícia” e que ela teria mandado “um recado”, de que ela estava “ciente do caso” e não o atenderia naquele dia, mas na segunda-feira, “em qualquer horário”. Ele diz que foi a Ilana Müller, advogada de seu escritório, quem teria feito esse contato com a desembargadora.
Pouco depois, no mesmo dia, os dois voltam a conversar e Nélio fala para o Humberto que “a própria (desembargadora)” tinha ligado para ele e avisado que leu o inquérito e que ele era “gravíssimo”, mas que ela estava “tomando as providências”.
No dia 5 (segunda-feira), Nélio volta a ligar para o Humberto. Diz que está saindo “da reunião” e que a desembargadora tinha pedido informação a todas as varas da primeira instância, mas que os magistrados poderiam “omitir alguma coisa”. E que ela não poderia ir até o delegado Protógenes Queiroz.
Poucas horas depois, voltam a se falar. Nélio explica que o inquérito pode ser de outro “espelhamento do HD do Opportunity” e que poderiam ter “transgredido a ordem dela”. Segundo Nélio, a desembargadora teria dado prazo de 48 horas para os juízes informarem procedimentos de investigação contra o Opportunity nas varas criminais de São Paulo.
Outra informação que a desembargadora teria passado ao advogado é que o HC pedido pelo grupo Opportunity estava para ser julgado.
Em maio (dia 7), Humberto volta a citar a desembargadora, sobre o HC – que tinha sido negado na primeira instância por se tratar de investigação sigilosa.”
Em atenção devida à Imprensa, ao jornalista e, principalmente, à população em geral, a signatária esclareceu, também por escrito, a seqüência dos fatos como efetivamente se passaram:
“A título de esclarecimento.
O Sr. Daniel Dantas, dentre outros, foi investigado e é réu em ação penal que lhe move a Justiça Pública, no conhecido caso KROLL/TELECOM ITÁLIA.
Quando da operação Kroll, foi apreendido o HD (disco rígido) do Banco Opportunity, pessoa jurídica que não era objeto de investigação na referida operação.
Considerando que o banco não poderia continuar com suas atividades sem as informações que constavam do HD de seu computador, esse disco rígido foi copiado pela Polícia Federal e passou a integrar o procedimento como uma de suas provas.
Os advogados do Sr. Daniel Dantas recorreram da medida de busca e apreensão, em síntese, porque entendiam ilegal a própria medida de busca e apreensão como um todo, porque entendiam ilegal a apreensão do HD e também porque entendiam, em última análise, ilegal a abertura desse HD, considerando a existência de informações de terceiros, clientes do banco,resguardadas por sigilo constitucional.
Ingressaram, assim, com recurso de apelação contra a medida de busca e apreensão, que foi a mim distribuído, por prevenção, em razão de livre distribuição anterior de HC.
Considerando que o recurso de apelação interposto não teria o condão de suspender a abertura do HD até que fosse julgado, e tendo em conta a provável demora desse julgamento, os advogados impetraram Mandado de Segurança, que foi distribuído ao e. Desembargador Nelton dos Santos. No mandado de segurança a liminar foi parcialmente concedida para suspender a abertura do HD até o julgamento da apelação, que tratava da matéria de forma ampla, pela Turma.
A apelação foi julgada, a busca e apreensão foi considerada regular, e abertura do HD foi autorizada, porém com ressalvas quanto ao sigilo de dados de terceiros, com instruções específicas para a realização da perícia, que deveria ser efetivada pelo próprio juiz da causa, de maneira a evitar-se o vazamento de informações sigilosas.
Na mesma decisão, a Turma determinou, de ofício, que o Magistrado de primeiro grau de jurisdição diligenciasse junto ao Poder Judiciário italiano com vistas a obter cópias de depoimentos lá prestados e de interesse para o caso.
Houve interposição de recursos de embargos de declaração. O primeiro deles de um terceiro que se considerava interessado, um cliente do banco. O segundo deles do Ministério Público Federal, visando: declaração de voto do e. Desembargador Nelton dos Santos, que não aplicava qualquer restrição para a abertura do HD do banco; e apontar como descabidas as determinações dirigidas ao poder Judiciário da Itália.
Antes que os embargos de declaração do Ministério Público fossem julgados, e portanto o julgamento não havia terminado, estando a abertura do HD vedada pela liminar concedida nos autos do Mandado de Segurança, o Dr. Nélio Machado ingressou com pedido de Habeas Corpus,em decorrência de uma notícia veiculada no jornal.
A notícia apontava a existência de um procedimento investigatório sigiloso contra o Sr. Daniel Dantas, lastreado na abertura do disco rígido do Banco Opportunity.
Sigiloso, porém já de conhecimento da imprensa.
Argumentando o descumprimento de ordem judicial e o direito de acesso à referida investigação, inclusive temendo qualquer determinação de prisão do seu cliente,o Dr. Nélio Machado requereu salvo conduto e o direito de tomar conhecimento dessas investigações.
Tentou agendar uma reunião com esta Desembargadora para a mesma data da impetração do HC ou logo para o dia seguinte.
Considerando os outros inúmeros casos que eu estava tratando, e tendo em conta que não se tratava de réu preso, agendei a reunião para a segunda-feira seguinte, no horário que fosse da conveniência do advogado, considerando que viria do Rio de Janeiro. Disse que o caso era gravíssimo e que já havia tomado as providências cabíveis, ou seja, solicitado informações às Varas Federais Criminais.
De um modo geral, os advogados temem que os juízes não leiam atentamente os seus pedidos ou não lhes dêem a devida importância.
Quando do retorno de uma dessas informações, me dei conta que não havia evidências com o caso Kroll/Telecom Italia e que poderia não estar preventa para julgá-lo e não ser a relatora do caso.
Considerando que a prevenção pode ser verificada a qualquer tempo, revi a minha decisão, tornei sem efeito os pedidos de informações e determinei a distribuição livre do feito.
Todas essas considerações, constam dos autos do HC, inclusive com a referência de que os fatos eram “gravíssimos”.
O HC foi, então, distribuído à Desembargadora Ramza Tartuce e encontra-se em andamento.
Não satisfeito com a minha decisão, o Dr. Nélio Machado impetrou novos Habeas Corpus junto aos Tribunais Superiores, inclusive o que culminou com a soltura do Sr. Daniel Dantas. Estranhamente, esses HCs foram interpostos contra ato meu, que teria dado início à solicitação de informações e, posteriormente, alterado entendimento em razão da ponderação dos Magistrados de primeiro grau.
Entretanto, o ato que deveria ter sido atacado é aquele que efetivamente indeferiu a liminar pleiteada no HC, pela relatora natural do caso, Desembargadora Ramza Tartuce.
Informo que conheço sim a Dra. Ilana, bem como o Dr. Nélio Machado, outros advogados do mesmo escritório, bem como inúmeros advogados, renomados ou não, criminalistas, advogados públicos e defensores dativos. Conheço também vários Procuradores, Promotores e servidores.
Falei com eles diversas vezes pessoalmente, com os Drs. Nelio Machado e Ilana sobre o caso, e algumas por telefone, da mesma forma como mantenho contato com todos os advogados que atuam em processos que estão no meu gabinete e que assim solicitam.
A referência feita pelo Dr. Nélio Machado ao Delegado , não é do meu conhecimento. Sequer sabia se existia investigação sigilosa, onde tramitava e quem comandava.
Finalmente, acredito nas instituições, na integridade e moralidade de seus membros. Excessos, equívocos e erros todos cometem.
A competência da Polícia Federal é investigar.
Cecilia Mello-Desembargadora Federal”
O relatório de inquérito policial acima transcrito, atribuído pelo citado jornalista à Policia Federal, contém imprecisões técnicas que podem comprometer uma peça jurídica dessa responsabilidade, induzindo conclusões descabidas, pela dubiedade de linguagem. Exemplificativamente, menciona que “outra informação que a desembargadora teria passado ao advogado é que o HC pedido pelo grupo Opportunity estava para ser julgado”. A “passagem de informação” ganha, no contexto, indevida conotação de clandestinidade.
O relatório parece ignorar que é direito constitucional da parte e de seu advogado conhecer todas as fases e andamentos do processo. Não é por outro motivo que o esforço da administração judiciária tem buscado apoio nos recursos tecnológicos para disponibilizar instantaneamente, nas redes de informática de acesso público, os atos processuais na medida em que vão sendo praticados.
Por outro lado, os advogados têm direito, garantido por Lei, a audiência com os juízes que se encarregam da prestação do serviço público de julgar os casos de seus clientes.
Acrescente-se que o HC referido, prestes a ser julgado pela e. Segunda Turma, é oriundo da Operação Chacal.
Esta desembargadora, no dever de suas funções, tem por hábito receber a todos os advogados e procuradores que patrocinam causas que se encontrem em seu gabinete, sem distinção quer pelo prestígio do advogado, quer pela condição social do seu cliente. Como não é possível atender a todos sem uma organização de agenda, muitas vezes há a necessidade de se marcarem apontamentos por telefone. Não é prática desta desembargadora “mandar recados”. Acontece, por vezes, que impossibilitada de atender pessoalmente ou por telefone, determina ao seu Chefe de Gabinete que preste as informações solicitadas ou faça os agendamentos necessários.
Acrescento que, embora não haja previsão legal expressa no sentido de intimar-se os advogados acerca da data de julgamento de HCs, é posição pacificada do STF, seguida por esta desembargadora, que os advogados têm direito à comunicação da data de julgamento de HCs.
É usual no gabinete da signatária, efetivar tal providência por meio de mensagens eletrônicas e/ou telefonemas/fax. Logo, por mais esta razão, é constante e contínuo o contato com advogados, quaisquer que sejam os pacientes por eles representados.
A civilidade no trato com os advogados e procuradores, o respeito ao direito de cada um e das partes que representam de nenhuma forma prejudicam o estrito cumprimento da lei e o julgamento imparcial.
O referido relatório policial se refere a fases e providências do processo, como por exemplo o pedido de informações à autoridade alegadamente coatora, em procedimento de “habeas corpus”, como estranhas “providências” que o Juízo estaria tomando em favor ou contra alguém.
Isso não obstante, a signatária reitera a crença nas instituições, manifestada ao jornalista. Mas, exatamente porque crê na moralidade e na integridade das instituições, também acredita que eventuais desmandos ou distorções, se existentes, precisem ser coibidos. O progresso das instituições não se pode fazer com o sacrifício ou o desprezo da Constituição, da lei e dos princípios que essas instituições objetivam exatamente preservar.
O relatório claramente se refere à gravação das comunicações telefônicas mantidas por esta desembargadora, ou por funcionários de seu gabinete, com o advogado Nelio Machado ou outros advogados do escritório dele. Como as comunicações telefônicas são constitucionalmente invioláveis, exceto com a autorização de decisão judicial fundamentada, formula-se esta Representação a esse DD. Ministério Público Federal para que tome as providências pertinentes, no sentido de apurar se a referida gravação de comunicações telefônicas foi judicialmente autorizada, ou se teria decorrido de ato ilícito, ou ainda se decorre simplesmente de impropriedade técnica na transcrição.
Finalmente, e no que pertine à referência do advogado, Dr. Nélio Machado, à “nossa amiga Cecícia” (sic), somente posso atribuir à inadequação do causídico no trato, inadequação essa também presente no relatório, do qual, repiso, somente tomei ciência parcial, ou seja, do texto que se encontra transcrito no início da presente.
Coloco-me à inteira disposição desse DD. Ministério Público Federal, para toda e qualquer informação que necessite, inclusive relativamente a dados pessoais desta signatária acobertados por sigilo legal.
MARIA CECILIA PEREIRA DE MELLO
DESEMBARGADORA FEDERAL
Anexo à presente os seguintes documentos:
(i) cópia do ofício enviado ao Ministro Gilmar Mendes, DD. Presidente do E. Supremo Tribunal Federal, enviado em 10 de julho p.p.
(ii) cópias das decisões proferidas nos autos do HC nº 2008.03.00.015482-6.
(iii) cópia da decisão proferida no HC 2008.03.00.026234-9.
Revista Consultor Jurídico