Estado sem fé – Governo não pode patrocinar evento religioso

por Eduardo Mahon

Escrevo constantemente sobre questões de comportamento institucional, margeando o relacionamento entre os poderes republicanos e, algumas vezes, trato da questão da religião, pinçando alguns exemplos de preferências governamentais que não podem surgir, na configuração republicana brasileira. De um lado, os católicos não concordam porque acreditam que manifestações tipicamente católicas são (ou se tornaram) essencialmente culturais. É um bom argumento, mas não convence. De outro lado, os evangélicos reclamam, argumentando que a preferência histórica dos governos é católica e, assim, eventos protestantes deveriam ser incentivados. E, finalmente, outros ainda, pensam que difere Estado laico do Estado ateu, o que concordo plenamente.

Paulatinamente, vamos desfazendo alguns equívocos e reafirmando mais rigorosamente a posição. Primeiramente, assiste razão àqueles que afirmam que o Brasil não é um Estado Ateu. Por certo que não! A Constituição da República de 1988 prevê a mais ampla liberdade de culto, o que significa que não orienta qualquer cidadão a não manifestar a preferência religiosa. Em meu ver, ocorre o contrário – com as isenções tributárias e os incentivos municipais e estaduais em doações de terrenos e outros benefícios, o Estado promove um incentivo à liberdade de culto, o que é um avanço de sincretismo numa nação exemplar em matéria de convivência pacífica.

Dito isto, devo distinguir: a profunda liberdade de culto não significa a preferência ou a exposição pública da tendência católica, evangélica ou de qualquer outra manifestação. Se o catolicismo tem precedência ostensiva em favores públicos, seja a prática afastada de imediato, discernindo o que é público e o que é manifestação fervorosa individual ou mesmo popular. Sessões públicas não podem abrir os trabalhos com orações, cultos, rezas, mantras, invocações, enfim, cada qual deve praticar a sua própria crença individual, mas não pode impor aos expectadores determinada orientação ou fazer do espaço público um palco para essa exposição preferencial.

E, no Brasil, discutimos tanto uma cisão entre catolicismo e evangélicos, porque são francas minorias os budistas, hindus, judeus e umbandistas. Ora, o umbandismo é o sistema religioso gerado da miscigenação tipicamente brasileira e ainda sofre enorme carga de preconceito, o que é um absurdo. Em termos culturais, poderíamos afirmar que aí sim reside uma manifestação que carreou claríssimos desdobramentos na música popular brasileira, por exemplo. A comunidade islâmica, extremamente forte e organizada no país, convive pacificamente com a comunidade judaica, enraizando-se nos mais diversos setores da vida nacional, assim como os budistas saem lentamente de guetos para ganhar força nas mais variadas cidades brasileiras.

Isso tudo é ótimo e faz mostra de que o Brasil é, deveras, um Estado Laico, não orientando a população e permitindo o fortalecimento de todas as crenças que convivem simultaneamente. A questão não é esta. O problema reside no patrocínio, com dinheiro público, de determinados eventos populares que são religiosos. Aí peca o administrador público que faz da preferência pessoal ou coletiva de seu staff um desvio de recursos para valorizar quem quer que seja. Por exemplo. As festas católicas de santo, por mais centenárias que sejam essas tradições, não devem ter qualquer centavo do erário. Outro exemplo. Os shows evangélicos, por mais populares que sejam os encontros, não devem ter um centavo do erário. E, se fôssemos declinar todas as religiões, diríamos exatamente o mesmo: os umbandistas, os islâmicos, os judeus, os hindus etc.

É a velha máxima do equilíbrio – se o poder público faz por uma crença religiosa, deve fazer por todas. Então, o Estado Laico republicano e democrático, surgido da ordem constitucional, desde 1891 até 1988, não deve fazer por nenhuma doutrina, mormente usando-se de dinheiro público, até porque os tributos são recolhidos indistintamente da fé, o que naturalmente não pode ser gasto para qualquer preferência. Aliás, já é hora do Estado Brasileiro discutir profundamente o empenho de verba pública para a conservação de Igrejas Católicas. Convenientemente, as igrejas mais antigas são classificadas como patrimônio público, de um lado, para beneficiar a Igreja com verba federal e estadual. Mas, de outro lado, o espaço conservado com recursos públicos está sob controle exclusivo e, algumas vezes, egoísta da própria Igreja Católica. Noutras palavras – quando é conveniente, é de todos e, quando não é, apenas de uma religião. Penso eu que a Igreja, enquanto instituição mais rica do mundo ocidental, deva cuidar de seus próprios templos. Mas se o poder público injetar qualquer real, deverá tomar para a sociedade o controle, a gestão, a fiscalização do espaço.

Surge, paralelamente à questão das manifestações religiosas e a proximidade com o poder público, a teoria da conspiração evangélica. A enorme comunidade protestante acredita que o objetivo da pregação da liberdade extrema de culto e de expressão, revelando mesmo os destinos do dízimo (tanto católico, como evangélico), significa uma espécie de preconceito. Errados. A imprensa pode e deve fazer o fiel observar exatamente o crescimento da organização e do patrimônio particular de seus gestores. E essas matérias não têm com objetivo atingir quem quer que seja, apenas revelar se este ou aquele administrador aplica recursos dos fiéis em benefício próprio ou não.

Qual o problema em saber que o Vaticano arrecada, armazena, financia bancos e outras tantas empresas, beirando alguns escândalos históricos e qual o problema em saber que os bispos com mitra e sem mitra, tornam-se bilionários com o dízimo? O fiel católico e o fiel evangélico continuará doando, provavelmente. Mas todos têm direito de saber, pelo menos, que seus donativos revertem-se para a sociedade como está na pregação ou não – são amealhados como patrimônio particular. Não vejo qualquer óbice à livre investigação jornalística.

O que vejo é uma enorme ignorância coletiva sobre o tema. Ora, se há um crucifixo num espaço público, pode-se livremente pregar a Estrela de Davi. E se há uma imagem de santo no espaço público, pode-se livremente fixar o símbolo do Islã ou mandalas budistas. Igualmente sagradas, igualmente divinas. Urge o aprendizado já realizado noutros países. Opção religiosa é um direito, deve ser exercido livremente, inclusive na educação, cultura e hábitos de um povo. Não se pode vedar o acesso de uma mulher islâmica, apenas porque porta o vestuário diferenciado, assim como não se pode discriminar o umbandista ou budista por suas roupas características. Mas o pior de tudo não é discriminar: é preferir, por meio do poder público e dos recursos públicos.

Como ser humano, tenho as minhas convicções. Como cidadão, arco com os tributos independentemente da minha crença e sei que milhões de brasileiros fazem o mesmo. Se assim é, não autorizo os mandatários a gastarem o meu dinheiro num culto, numa missa, numa sessão espírita, num terreiro, num mosteiro, porque saberei que outros cidadãos-contribuintes também não autorizaram e recursos públicos são de todos e não de facções. Aí está o problema — a contaminação sectária de alguns governantes que querem manifestar a fé no espaço público, encomendando missas em palácios, cultos em ginásios, financiando estes ou aqueles eventos.

Felizmente, ainda é uma minoria que pensa constranger a liberdade de expressão. Fazemos votos que não haja fanatismos, sectarismos ou extremismos. Vamos formatar no Brasil a mais completa liberdade religiosa e cultural. Concomitantemente, vamos fomentar a separação definitiva entre o Estado e qualquer religião.

Revista Consultor Jurídico

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