Estatuto da Advocacia – Inviolabilidade dos escritórios de advocacia não é blindagem

por Daniel Chaves de Freitas

O Projeto de Lei 5.245/05, que acrescenta dispositivos na Lei Federal 8.906, de 4 de julho de 1994 (Estatuto da Advocacia e da OAB), dispondo sobre “o direito à inviolabilidade do local de trabalho do advogado”, causou polêmica e manifestações contrárias de juízes, promotores e delegados pelo país afora.

O Projeto, que já foi aprovado por unanimidade na Câmara e no Senado, encontra-se na mesa da Presidência à espera de sanção desde o dia 23 de julho. De autoria do deputado Michel Temer (PMDB-SP), o projeto institui a inviolabilidade – como regra – do escritório do advogado, restringindo – e não vedando – o acesso do poder público ao seu local de trabalho, bem como aos seus arquivos, computadores, telefones e documentos que se encontrem em seu poder.

Segundo a nota que as entidades representantes da magistratura e do Ministério Público Federal encaminharam ao presidente Lula, pedindo o veto ao projeto, a imunidade prevista seria inconstitucional. O argumento utilizado é que a inviolabilidade dos escritórios de advocacia supera o resguardo previsto pela Constituição Federal para a moradia do cidadão.

Com a devida vênia, equivocam-se os contrários ao projeto. Estes, ou não se deram ao trabalho de ler o texto da lei, ou desprezam expressamente o direito de defesa.

Na primeira hipótese, bastaria uma simples leitura do texto legal para se constatar que a mesma não torna o local de trabalho do advogado inviolável ou “acima da lei”, apenas impõe limites ao acesso e restrições ao abuso. Abuso, sim, pois na prática, é o que muitas vezes acontece. Determinações judiciais de busca e apreensão genéricas e sem a devida fundamentação, devassando o sigilo entre cliente/advogado, não apenas da pessoa do investigado, mas de todos os demais clientes, é abuso de poder.

Dessa forma, como um cliente pode se sentir seguro para falar com seu advogado, entregar-lhe documentos pessoais ou até mesmo confessar algum crime – o que deveria ser um direito seu – se a conversa pode estar sendo monitorada, o telefone grampeado, as correspondências interceptadas, os documentos confiscados? É como alguém confessar um pecado ao padre sabendo que sua confissão chegará aos ouvidos de todos. Ou seja, não se trata de um privilégio aos advogados, mas sim de proteção ao direito de defesa dos cidadãos. Essa é a intenção da lei.

Conforme o artigo 7º, II, parágrafo sexto, havendo “indícios de autoria e materialidade da prática de crime por parte de advogado, a autoridade judiciária competente poderá decretar a quebra da inviolabilidade de que trata o inciso II deste artigo, em decisão motivada, expedindo mandado de busca e de apreensão, específico e pormenorizado”. Ainda, o dispositivo estabelece que devem ser, “em qualquer hipótese, resguardados os documentos, as mídias e os objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como os demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes”.

Ora, a lei é clara ao prever a possibilidade de quebra da inviolabilidade caso o investigado – criminoso – seja a pessoa do advogado, exigindo apenas que a decisão da autoridade judiciária seja motivada, que o mandado de busca e apreensão seja específico e se restrinja ao advogado investigado e eventuais clientes seus que também sejam investigados como partícipes ou co-autores no crime. Assim, não há que se falar de privilégio ou imunidade à pessoa do advogado, e sim à função que ele exerce, bem como ao sagrado direito de sigilo entre cliente/advogado, sigilo este inerente à sua função e ao direito de defesa que o advogado garante. Nesse sentido, é óbvio que o local de trabalho do advogado deve superar o resguardo previsto pela Constituição para a moradia do cidadão, inclusive a dos próprios advogados.

Já aos que desprezam o direito de defesa dos cidadãos, tratem de propor uma nova constituinte, vez que a atual ordem constitucional garante ao acusado o direito de uma defesa técnica, exercida por um profissional com a mesma formação de quem o acusa e de quem o julga, consagrando o advogado como indispensável à administração da Justiça (artigo 133 da Constituição Federal). Nessa linha, deve a defesa dispor das mesmas armas da acusação. São – ou deveriam ser – as “regras do jogo”. Essas “regras” processuais visam – assim como em um jogo – garantir que o resultado final seja justo, ou seja, que um acusado somente seja considerado culpado, e como tal seja tratado e punido, após o devido processo e a justa condenação. Isso, em tese, pois a prática, infelizmente, ainda é muito diferente. Mas talvez estejamos no caminho certo, pois, felizmente, nossos legisladores sabem copiar. Só esperamos que o façam de países sérios e comprometidos com a democracia.

Aos que defendem a minimização ou a relativização dessas regras do “jogo processual”, deve lhes confortar o fato de que, certamente, muito mais criminosos serão condenados. Contudo, o preço a se pagar é alto demais, vez que muitos inocentes também serão condenados. E é importante se lembrar que tal preço já foi pago pelos brasileiros na história recente de nosso país. É essa a lógica autoritária de um Estado Policial, felizmente revogada há 20 anos por nossa Constituição. Nada mais é, também, e por que não dizer, que a lógica dos tribunais do tráfico e das milícias nas favelas cariocas, onde um acusado é julgado e sentenciado sem qualquer direito de defesa.

Na verdade é fácil falar quando se trata “dos outros”. É a lógica milenar da hipocrisia humana. Queremos “punição aos culpados”, “justiça a qualquer preço”, “execração pública de criminosos”, e, para tanto, pouco nos importa processo justo, abusos de poder ou violação às garantias dos acusados. Agora, quando o tal Estado bate a nossa porta, levando um amigo, vizinho, parente ou, quem sabe, até nós mesmos para detrás das grades, aí a coisa é diferente. Queremos, agora, um processo justo. Temos direito à liberdade, ampla defesa, garantias. Queremos a assistência de advogados competentes, com direitos e prerrogativas asseguradas e respeitadas por nossos “algozes”.

Ora, sejamos mais honestos e menos hipócritas. As prerrogativas dos advogados são infinitamente mínimas em comparação a todos os privilégios que a lei outorga ao Estado, seja na figura do delegado, do promotor, ou de qualquer outra autoridade. Se, ainda assim, o Estado encontra-se em desvantagem perante o defensor do cidadão, talvez o problema não resida nas suas prerrogativas, e sim na competência dos agentes públicos.

Revista Consultor Jurídico

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