Estatuto da Criança e do Adolescente completa 20 anos e segue apenas como uma carta de intenções, criticam especialistas

Ao completar 20 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente segue apenas como uma carta de intenções. A impressão do desembargador Siro Darlan, da 7ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, é compartilhada por diversos outros especialistas em ECA ouvidos pela revista Consultor Jurídico. Eles reconhecem a criação de importantes ferramentas para garantia do bem-estar social dos jovens brasileiros, mas dizem que é preciso aplicá-lo integralmente.

“As obrigações contidas no artigo 227 da Constituição da República e regulamentadas pela Lei 8.069/1990 não foram ainda implementadas em sua plenitude. É preciso caminhar muito para atingir todos os direitos”, diz Darlan.

Segundo ele, as consequências disso é uma cultura de violência contra os menores, como atos de violência praticados contra as crianças no seio de suas famílias. “Além disso, o mais alto índice de mortes violentas está na faixa etária fixada entre 13 e 23 anos. É preciso ver a criança como um agente de direito e não como um agente necessitado de paternalismo”, completa.

“Os crimes cometido por adolescentes influenciam para aumentar o medo e a insegurança da sociedade, gerando a sensação de que há a relação direta do ECA nessa cruel realidade. É importante frisar que o Estatuto não é o responsável pelas mazelas praticadas pelos adolescentes. Quando as pessoas reclamam que o ECA é benevolente, é preciso saber quem está sendo. Quem move o sistema é a sociedade. É necessário que saibam também que é, justamente, por meio do ECA que as crianças e os adolescentes que infringem a lei vêm sendo incluídos nos serviços de saúde, educação, lazer e cultura”, declarou o desembargador.

Quanto à maioridade penal, ele diz que a ideia de reduzi-la é um equívoco. Pois, segundo ele, a maioridade penal é uma desculpa esfarrapada para atribuir a um menor a culpa por um crime. “Não que ele não seja, também, culpado e que deva pagar pelo crime que cometeu, mas colocar um adolescente dentro de um presídio não é a solução. A resposta à violência não pode ser a violência”, alerta.

“É importante dizer que essa redução da maioridade penal está na pauta por causa daqueles que querem que os marginalizados continuem à margem da sociedade. Fala-se em fim da escravidão, mas o que está acontecendo é isso. Está se escravizando os que, socialmente, vivem à margem”, desabafa o desembargador.

Para a advogada e ex-desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Maria Berenice Dias, depois de duas décadas, o ECA ainda é muito arrojado e moderno para os dias de hoje. “É inegável que o Estatuto tem proporcionado uma melhora significativa de vários indicadores sociais, como a redução da mortalidade infantil e dos casos de gravidez precoce e trabalho infantil.”

Mas, apesar das melhorias alcançadas, ainda há muito a ser feito para garantir, de forma eficaz, os direitos das crianças e dos adolescentes do país e proporcionar a eles um futuro melhor, ressalta a advogada. “É preciso fazer torná-lo efetivo integralmente”, conclui.

Quanto à maioridade penal ela diz que não é “jogando” um adolescente dentro de uma cela que o problema será resolvido. “Deve-se realizar um trabalho com o jovem e sua família. É gerando oportunidades para jovens e para suas famílias que nós iremos enfrentar a criminalidade e não por meio da redução da maioridade penal”, enfatiza.

Assim como Maria Berenice, o advogado Ricardo Zamariola vê o ECA como uma norma inovadora. Mas, para ele, o maior desafio enfrentado pelo Estatuto é a capacidade de estruturação da Justiça da Infância e da Juventude. Ou seja, “é preciso um trabalho em conjunto entre os órgãos que lutam pela garantia desses direitos. É necessário que seja estabelecida uma rede de assistência social ao jovem, seja ele infrator ou não, disponibilizando psicólogos para trabalhar com eles e com as famílias, que geralmente são desestruturadas. Para garantir os direitos a uma criança, é importante que ela entenda que tem e pode exercer esses direitos. Acredito que dessa forma é o melhor caminho”, argumenta.

Zamariola entende que a redução da maioridade penal apenas com o intuito de reduzir a criminalidade será desastrosa. “Colocar os adolescentes em presídios não significa dizer que eles serão recuperados pois nosso sistema prisional tem um número muito elevado de reincidência”, argumenta e acrescenta que nada assegura que depois de sair da prisão, o menor não vai praticar de novo o mesmo crime.

Medida educativa
‘Menina levada, quer levar uma palmada?’. O tema central da poesia Uma Palmada bem Dada, da autora Cecília Meireles, é também a mais nova questão do debate nacional. Um projeto de lei do Executivo, assinado na quarta-feira (14/7) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, traz à tona a discussão sobre a proibição de pais, professores, babás ou responsáveis por menores de idade de aplicar como forma educativa beslicões, empurrões ou mesmo dar palmadas pedagógicas.

O projeto acrescenta ao ECA, entre outros, o artigo 17-A que concede às crianças e adolescentes o direito de serem cuidados e educados pelos pais ou responsáveis sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante. O texto define como tratamento cruel ou degradante qualquer tipo de conduta que humilhe, ameace gravemente ou ridicularize a criança ou adolescente.

Este projeto é um embrião do Projeto de Lei 2.654/2003, da deputada Maria do Rosário (PT-RS), coordenadora da Frente Parlamentar dos Direitos Humanos, que também proíbe qualquer tipo de agressão física contra a criança e o adolescente. Ele ainda será analisado pela Câmara. O projeto da deputada muda não só o Eca, mas também a Lei 10.406/2002, o Novo Código Civil.

Segundo a deputada, é fundamental e necessário tornar claro e explícito que a punição corporal de criança e adolescente, ainda que sob pretensos propósitos pedagógicos, é inaceitável.

Diante disso, o PL objetiva assegurar à criança e ao adolescente o direito a não serem submetidos a qualquer forma de punição corporal, mediante a adoção de castigos moderados ou imoderados, sob a alegação de quaisquer propósitos, ainda que pedagógicos, no lar, na escola ou em instituição de atendimento público ou privado. Segundo ela, o escopo principal é ressaltar que a vedação genérica da Constituição Federal e do Estatuto da Criança e do Adolescente quanto ao uso da violência abrange a punição corporal mesmo quando moderada e mesmo quando perpetrada por pais ou outros responsáveis.

A deputada Maria do Rosário argumenta que, apesar dos avanços decorrentes da Constituição e do ECA, ainda persiste a cultura que admite o uso da violência contra crianças e adolescentes. “A remanescência dessa cultura ainda é admitida e tolerada sob o argumento de que se trata do uso de violência moderada, enquanto a ordem jurídica dispõe censura explícita tão somente quando da ocorrência da violência imoderada”, sustenta a deputada. “É fundamental tornar explícito que a punição corporal de criança e adolescente é absolutamente inaceitável.”

De acordo com o artigo 227 da Constituição, é dever da família, da sociedade e do Estado garantir à criança e ao adolescente os direitos naturais do cidadão e colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência e opressão.

Segundo a deputada, é importante frisar que o PL não pretende punir os pais. O projeto de lei prevê medidas educativas, como o encaminhamento a centros ou programas de orientação, que podem ser estendidos para toda a família. “Assim, os castigos físicos serão substituídos por formas pedagógicas baseadas no diálogo e respeito pela integridade física. Todo mundo aprende”, diz a deputada.

“Além disso, é um equivoco chamá-lo de PL das palmadas. O que se quer com ele é garantir que as crianças e os adolescentes cresçam saudáveis, sem marcas e traumas”, assegura.

“É aceitável que a lei puna a violência praticada contra adultos, nas mais diversas formas, enquanto que a violência contra crianças tem sido admitida, disfarçada de recurso pedagógico. O castigo físico imposto a uma criança, ainda que ‘moderado’, é ato de violência e provoca traumas significativos. Isto não pode continuar”, argumentou.

A advogada Maria Berenice concorda com a proposta. Para ela “os filhos não são propriedades dos pais. Eles são cidadãos e por isso pertencem ao estado, dessa forma é perfeitamente cabível a interferência dele na educação da criança”, ressalta.

A representante do Conselho Federal de Psicologia no Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), psicóloga Maria Luiza Moura, concorda com a deputada ao dizer que é um equívoco denominar a proposta de PL das palmadas. Pois, esta discussão trata-se de relações afetivas. “E a relação construída entre pais e filhos não pode ser baseada na agressividade. Tem de partir do carinho, da atenção, da conversa. E isso inclui limites”, argumenta.

Para ela, é muito mais fácil prevenir agora, porque depois as consequências e sequelas deixadas nas crianças que sofreram algum tipo de agressão não são fáceis de apagar. “Os traumas ficam para a vida inteira, ninguém apaga isso da lembrança delas, a única saída nesses casos é trabalhar o psicológico delas para que entendam que o pior já passou e que possam seguir suas vidas”, esclarece.

Ela lembra dos inúmeros casos de tortura, agressão e maus tratos contra as crianças já foram noticiados pela imprensa. “O PL vem primeiramente assegurar a esses ‘pequenos’ os seus direitos. Esta é uma tentativa de frear a barbárie direcionadas a eles. Esta é uma oportunidade que temos de tentar fazer as coisas ‘direito'”, finaliza.

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