por César Dario Mariano da Silva
Desde a publicação do Estatuto do Desarmamento e de seu Regulamento várias questões controvertidas foram levantadas. E isso é comum em nosso país, dada à falta de preparo do Legislador, que infelizmente cria Leis ambíguas e com várias imperfeições técnicas.
Para possuir arma de fogo de uso permitido no interior de sua residência ou domicílio ou até no seu local de trabalho, quando for o titular ou responsável legal pelo estabelecimento ou na empresa, a pessoa necessita registrá-la.
O certificado de registro da arma de fogo de uso permitido é expedido pela Polícia Federal e será precedido de autorização do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) (artigo 5º do Estatuto). Assim, não é o Sinarm que concede o certificado de registro, mas a Polícia Federal, após a autorização daquele órgão.
Antes do advento do Estatuto do Desarmamento, as armas de fogo de uso permitido eram registradas em órgãos estaduais ou do Distrito Federal (artigo 4º, do Decreto 2.222/97). No Estado de São Paulo, o registro era feito na Divisão de Produtos Controlados (DPC), órgão da Secretaria da Segurança Pública. Quem já possuísse registro de propriedade de arma de fogo, expedido pelos órgãos estaduais, realizados até a data da publicação do Estatuto (23/12/2003), deveria renová-lo mediante o pertinente registro federal no prazo máximo de três anos (artigo 5º, 3º parágrafo do Estatuto).
Para essa renovação, os requisitos de que trata o 4º artigo, incisos I, II e III do Estatuto, também deveriam ser comprovados, ficando dispensados de seu cumprimento, os integrantes das entidades descritas no 6°artigo, incisos I e II do Estatuto, ou seja, das Forças Armadas, das polícias federais e estaduais e do Distrito Federal, bem como os militares dos Estados e do Distrito Federal (6º artigo do Estatuto e artigo 18 e 4º parágrafo do Regulamento).
Referido dispositivo não dizia a partir de quando esse prazo começaria a correr. No entanto, como a renovação do registro dependia da regulamentação, entendeu-se que o prazo começaria a fluir a partir da publicação do Regulamento (2/7/04). Vencido o prazo sem a renovação do registro, o proprietário da arma de fogo poderia ser responsabilizado criminalmente. Isso porque sua arma de fogo passaria a ser ilegal, uma vez que não estaria devidamente registrada no órgão competente. Solução plausível para quem não quisesse ou pudesse renovar o registro seria a entrega da arma de fogo à Polícia Federal ou a órgãos por ela credenciados nos termos do artigo 31 do Estatuto.
Entretanto, como só poderia acontecer neste país, a Polícia Federal não se aparelhou adequadamente para proceder ao registro das armas de fogo existentes no Brasil. Com isso, vencido o prazo para a regularização do registro, em tese, quem possuísse arma de fogo registrada em órgão estadual poderia ser responsabilizado criminalmente por posse irregular de arma de fogo.
Por isso, o Governo Federal tratou de agir pelo caminho mais fácil. Em 28 de junho de 2.007 editou a Medida Provisória 379, que, no seu 1° artigo, alterou o 3° parágrafo do 5º artigo do Estatuto do Desarmamento e estendeu o prazo para o registro federal das armas de fogo de uso permitido já registradas nos órgãos estaduais até o dia 31 de dezembro de 2007. No entanto, como essa medida provisória estava “trancando a pauta” para as votações de interesse do Governo Federal, em 18 de setembro de 2.007 foi editada a Medida Provisória 390, que revogou a Medida Provisória 379, ou seja, o prazo para a renovação do registro dessas armas voltou a ser o estabelecido no Estatuto do Desarmamento originalmente.
Mas a farra não para por aí. Em 20 de setembro de 2007, o Executivo Federal editou a Medida Provisória 394, que novamente modificou o 3º parágrafo do 5º artigo do Estatuto do Desarmamento e prorrogou o prazo para a renovação dos registros de armas de fogo expedidos pelos órgãos estaduais até o dia 2 de julho de 2008.
Contudo, para complicar ainda mais a situação, essa última medida provisória tratava do mesmo assunto da anterior editada no mesmo ano. Por conta disso, o PSDB e outro moveram Ação Direta de Inconstitucionalidade (3.964). Em sede de liminar, por maioria de votos, em julgamento realizado no dia 12 de dezembro de 2.007, tendo como relator o Ministro Carlos Brito, o Supremo Tribunal Federal suspendeu a eficácia da MP 394, tornando-a sem efeito.
Diante da decisão do Supremo Tribunal Federal, novamente foi restabelecido o texto original do Estatuto do Desarmamento. Com efeito, quem não possuísse o registro federal de arma de fogo de uso permitido estaria, em tese, incorrendo em crime, mesmo que sua arma estivesse registrada em órgão estadual.
Novamente, o Executivo Federal, para regularizar o vácuo trazido pela declaração da inconstitucionalidade da MP 394, editou a Medida Provisória 417, de 31 de janeiro de 2008, publicada em 1º de fevereiro do mesmo ano.
Essa MP, dentre outras medidas, prorrogou o prazo para que os registros de propriedade de arma de fogo expedidos pelos órgãos estaduais, realizados até a data da publicação do Estatuto do Desarmamento, possam ser regularizados mediante o registro federal. Assim, pelo menos por enquanto, esses registros poderão ser renovados até o dia 31 de dezembro de 2008, de acordo com a nova redação dada ao 3º parágrafo do 5º artigo do Estatuto.
E a MP também trouxe outras novidades, que a seguir veremos.
Ela ressuscitou, com algumas modificações, os famigerados artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento, que tanto trouxeram problemas de interpretação em face de sua péssima redação e regulamentação.
O artigo 30, após uma série de modificações quanto ao prazo, dizia que os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas deveriam solicitar seu registro, sob pena de responsabilidade penal, até o dia 23 de junho de 2005 (Lei 11.118/2005). Para tanto, deveriam exibir nota fiscal de compra ou demonstrar a origem lícita da posse, pelos meios de prova em direito admitidos. Essas armas de fogo eram as passíveis de registro (registráveis).
A única exceção trazida pela norma era para os caçadores de subsistência (artigo 6º, 5º parágrafo do Estatuto), que teriam o prazo de cento e vinte dias, a contar de 11 de novembro de 2005 (até 11 de março de 2006), para registrar sua arma de fogo, sendo que para tanto deveriam demonstrar sua origem lícita (2º artigo, da Lei 11.191/2005). Não era qualquer arma de fogo que poria ser registrada com base nesse dispositivo, mas apenas a descrita no artigo 27 do Regulamento (uma arma de fogo portátil, de uso permitido, de tiro simples, com um ou dois canos, de alma lisa e de calibre igual ou inferior a 16), ou seja, a empregada para a subsistência alimentar do caçador e de sua família que resida em área rural.
O artigo 32 do Estatuto, por sua vez, permitia que os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas, até o dia 23 de outubro de 2.005 (1º artigo da Lei11.191/2005), entregassem-nas à Polícia Federal, mediante recibo e, presumindo-se a boa-fé, poderiam ser indenizados, nos termos do regulamento. Seria presumida a boa-fé dos possuidores e proprietários de arma de fogo se não constasse do Sinarm qualquer registro que apontasse a origem ilícita da arma (artigo 69 do Regulamento). Ou seja, apenas para efeito de indenização, não constando do Sinarm qualquer registro que apontasse a origem ilícita da arma, seria presumida a boa-fé e o seu possuidor ou proprietário poderia ser indenizado.
É óbvio que se a arma tivesse marca, numeração ou qualquer sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, não se haveria que falar em boa-fé, até porque não seria possível fazer a verificação nos cadastros do Sinarm.
Para que o proprietário ou possuidor da arma de fogo pudesse transportá-la até o local onde seria entregue à Polícia Federal ou a órgãos por ela credenciados haveria necessidade de autorização especial (porte de trânsito) a ser obtida previamente. Embora não haja norma específica exigindo essa autorização, o artigo 28 do Regulamento deixa evidente que toda vez que o proprietário de arma de fogo tiver que transportá-la por qualquer motivo deverá solicitar o porte de trânsito à Polícia Federal, o mesmo ocorrendo com os colecionadores, atiradores e caçadores, que deverão transportar suas armas munidos do porte de trânsito emitido pelo Comando do Exército (artigo 9º do Estatuto).
Com efeito, aquele que fosse flagrado portando ou transportando arma de fogo sem a aludida autorização, mesmo que para entregá-la à Polícia Federal ou a órgãos por ela credenciados, poderia ser autuado em flagrante pelo crime de porte ilegal de arma de fogo (artigos 14, 16, “caput”, ou 16, parágrafo único, inciso IV), dependendo da natureza do objeto material. Se assim não entendermos, a pessoa que fosse flagrada portando ilegalmente arma de fogo, até o dia 23 de outubro de 2005, poderia dizer que estava se dirigindo a um posto de coleta desse objeto e, com isso, escapar de ser autuada, o que é absurdo.
O Legislador, ao criar os artigos 30 e 32 do Estatuto, pretendeu regularizar ou diminuir a quantidade de armas de fogo em circulação. Até os proprietários e possuidores de armas de fogo ilegais poderiam entregá-las ao Estado para se verem livres de uma possível punição, haja vista que o artigo 32 do Estatuto não fazia menção à situação jurídica desse objeto material, que poderia ser de uso permitido, proibido ou restrito, ou até mesmo contar com a marca, numeração ou qualquer sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado.
Não havia como restringir o alcance do artigo 32 do Estatuto apenas para as armas de fogo em tese registráveis, mas que seu proprietário ou possuidor não tivesse como demonstrar sua origem lícita. É que essa norma era permissiva e deveria ser interpretada da forma mais ampla possível. Não cabe ao intérprete restringir o que a lei não restringiu. Como a norma falava em armas de fogo não registradas, eram quaisquer delas nessa condição (sem registro), independente de sua natureza (de uso permitido, proibido, restrito ou com numeração, marca ou qualquer sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado).
Destarte, entendíamos que até o dia 23 de outubro de 2005 os possuidores e proprietários de armas de fogo não registradas não poderiam ser responsabilizados penalmente pela posse irregular de arma de fogo de uso permitido (artigo 12), posse ilegal de arma de fogo de uso restrito (artigo 16, “caput”), ou posse de arma de fogo com numeração, marca ou sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado (artigo 16, parágrafo único, inciso IV). Isso porque, até lá, poderiam entregá-las à Polícia Federal ou a órgãos por ela credenciados, nos termos do artigo 32 do Estatuto, que teve o prazo prorrogado pela MP 253/05 convertida na Lei 11.191, de 10 de novembro de 2005 (Nesse sentido: STJ – HC 90.027/MG, Rel. Min. Laurita Vaz, 5ª T, j. 25.10.2007, v.u.).
No que era concernente aos artigos 12 e 16, “caput”, havia atipicidade temporária da conduta, uma vez que o sujeito que possuísse arma de fogo dentro desse prazo e nos locais preconizados no artigo 12 do Estatuto não estaria cometendo crime, haja vista estar agindo de acordo com a lei e regulamento. Não ocorria, portanto, adequação típica, por faltar os elementos normativos do tipo “em desacordo com determinação legal ou regulamentar”.
Por outro lado, quanto ao delito de posse de arma de fogo com marca, numeração ou sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, não era caso de atipicidade, mas de ausência de antijuridicidade. Isso porque o sujeito que possuísse arma de fogo dessa natureza, nos locais descritos no artigo 12 do Estatuto, tinha até o dia 23 de outubro de 2005 para fazer a entrega à Polícia Federal ou a órgãos por ela credenciados. Se a lei lhe concedeu prazo, não estava obrigado a fazer a entrega antes de seu término. Seria como cobrar uma dívida antes de seu vencimento. Era, portanto, caso de exercício regular de direito.
Observamos, porém, que se o sujeito, por exemplo, portasse, transportasse, tivesse em depósito, ocultasse, a arma de fogo, mesmo dentro do prazo para sua entrega ou regularização, deveria ser punido com base em um dos tipos penais contidos no Estatuto, de acordo com a conduta praticada. Isso porque a possibilidade de entrega da arma de fogo ao órgão competente ou seu registro só elidia os crimes de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (artigo 12), de posse ilegal de arma de fogo de uso restrito (artigo 16, “caput”), e de posse de arma de fogo com numeração, marca ou sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado (artigo 16, parágrafo único, inciso IV).
Do mesmo modo, a qualquer tempo os proprietários e possuidores de armas de fogo adquiridas regularmente (registradas) poderão entregá-las à Polícia Federal ou a órgãos por ela credenciados, mediante recibo e indenização (artigo 31 do Estatuto). O valor da indenização e procedimento para pagamento é fixado pelo Ministério da Justiça (art. 68 do Regulamento) pela Portaria 364, de 14 de julho de 2004, do Diretor-Geral do Departamento de Polícia Federal. Com efeito, aquelas pessoas que por algum motivo não quiserem ficar com a sua arma de fogo ou não puderem renovar o seu certificado de registro, poderão entregá-la à autoridade competente, que emitirá recibo e providenciará a respectiva indenização. Não é demais ressaltar que, para esse efeito, a arma de fogo deverá estar devidamente registrada.
A MP 417/2008 deu nova redação aos artigos 30 e 32 do Estatuto do Desarmamento. Mas, infelizmente, não se preocupou com a boa técnica jurídica e, com isso, poderemos ter novos problemas na interpretação desses dispositivos.
A situação é um pouco mais tranqüila no que é pertinente ao artigo 30, uma vez que, embora haja algumas alterações, a interpretação deverá ser a mesma da sua antiga redação. Com efeito, os possuidores e proprietários de armas de fogo de fabricação nacional, de uso permitido e não registradas nos órgãos estaduais ou na Polícia Federal, deverão solicitar seu registro até o dia 31 de dezembro de 2008.
Para tanto, deverão apresentar nota fiscal de compra ou comprovar a origem lícita da posse, por qualquer meio admitido pelo direito. A norma permite, ainda, que, para obter o registro, o proprietário apenas apresente declaração firmada na qual conste as características da arma e a sua condição de proprietário. Certamente, essa arma deve ser passível de registro, possuindo numeração, marca e outros sinais de identificação intactos e não ser produto ou instrumento de qualquer infração penal.
O parágrafo único do artigo 30 dispõe sobre as armas de fogo de procedência estrangeira de usos permitidos e fabricadas no ano de 1997. O possuidor ou proprietário de arma de fogo com essas características, para obter seu registro, deverá proceder da forma e no prazo estabelecido no “caput” do dispositivo.
Assim, até o dia 31 de dezembro de 2008, os possuidores e proprietários de armas de fogo de uso permitido de fabricação nacional e de uso permitido de procedência estrangeira com fabricação anterior a 1.997, não poderão ser processados criminalmente por infração ao artigo 12 do Estatuto do Desarmamento (posse irregular de arma de fogo de uso permitido), uma vez possuem prazo para proceder a seu registro junto à Polícia Federal.
Porém, isso somente aproveitará ao proprietário ou possuidor de arma de fogo de uso permitido e que possa ser registrada, ou seja, que contenha intacta a numeração e demais sinais de identificação, e que não seja produto ou instrumento de infração penal. No que é pertinente à arma de fogo de procedência estrangeira, ela, além de ser de uso permitido e registrável, deve ser de fabricação anterior ao ano de 1997.
Como a norma que possibilita o registro da arma de fogo é benéfica para o acusado ou condenado, retroagirá e alcançará os processos em andamento ou já definitivamente julgados, tratando-se de evidente abolitio criminis. Nesses casos, haverá a extinção da punibilidade das pessoas que estejam sendo processadas ou tenham sido condenadas por posse ilegal de arma de fogo de uso permitido.
(Nesse sentido: STJ – REsp nº 895093/RS, 5ª T., Rel. Min. Laurita Vaz, j. 26.06.2007, v.u.). Não se há que falar na aplicação do 3° artigo do Código Penal, que dispõe sobre a lei excepcional ou temporária.
Esse dispositivo não pode ser aplicado quando se trata de norma permissiva temporária mais benéfica. Para a situação em estudo deve ser observado o princípio da retroatividade da lei penal mais benéfica (artigo 5º, XL, da Constituição Federal), sob pena de o 3° artigo do Código Penal ser taxado de inconstitucional. Quando o artigo 3º do Código Penal dispõe que a lei excepcional ou temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência, está se referindo a norma penal incriminadora, que, mesmo revogada, será aplicada a fatos ocorridos durante o seu período de vigência, dada à sua própria definição legal.
É importante ressaltar que a atipicidade temporária só alcança o crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (artigo 12 do Estatuto). Com efeito, aquele que possuir arma de fogo de uso restrito ou com marca, numeração ou qualquer outro sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado, ou portar, transportar, adquirir, receber, qualquer espécie de arma de fogo, deverá ser processado pelo crime praticado (artigos 14 ou 16 do Estatuto). Também não será alcançado pela atipicidade temporária o proprietário ou possuidor de arma de fogo de procedência estrangeira, de uso permitido, fabricada posteriormente ao ano de 1997, por expressa disposição legal do parágrafo único do artigo 30.
Já o artigo 32 tem redação semelhante a do seu predecessor, mas com algumas diferenças marcantes. É evidente que o dispositivo está se referindo a qualquer espécie de arma de fogo, registrada, ou não, de uso permitido ou restrito, bem como às armas ilegais, com qualquer sinal de identificação raspado, suprimido ou adulterado. Não há prazo determinado para que ocorra a entrega e a norma exige que ela seja feita de forma espontânea, o que vai facilitar a interpretação do dispositivo. Também é possível a indenização daquele que entregar a arma de fogo, desde que presumida a sua boa-fé. Dispõe o artigo 69 do Regulamento que será presumida a boa-fé do proprietário ou possuidor, desde que não conste do Sinarm qualquer registro que aponte a origem ilícita da arma de fogo.
Cabe ao Regulamento disciplinar como será feita a entrega dessa espécie de arma de fogo (parágrafo único do artigo 32). O valor da indenização e procedimento para pagamento é fixado pelo Ministério da Justiça (artigo 68 do Regulamento) pela Portaria364, de 14 de julho de 2004, do Diretor-Geral do Departamento de Polícia Federal. A arma de fogo deverá ser entregue diretamente à Polícia Federal ou em órgãos por ela credenciados (artigo 70 do Regulamento).
Ao editar novamente esse artigo, o Executivo Federal pretendeu que todas as pessoas, que possuam qualquer espécie de arma de fogo, possam entregá-la de forma espontânea e a qualquer tempo à autoridade competente. Assim, se não houver espontaneidade, o sujeito que for flagrado possuindo arma de fogo irregularmente não poderá alegar que a iria entregar no dia seguinte ou a qualquer tempo. Deve ser entendida como espontânea aquela em que a idéia de entregar a arma de fogo parte do próprio sujeito. Não se trata, assim, de entrega voluntária em que a idéia pode partir de pedido ou sugestão de outra pessoa.
Aliás, como já frisamos, para que o proprietário ou possuidor de arma de fogo possa transportá-la até o local onde irá proceder a sua entrega, deverá estar munido da competente autorização (porte de trânsito) expedida pela Polícia Federal e a estar transportando desmuniciada.
De tal forma, diferentemente do que ocorria com a redação anterior do artigo 32, o possuidor dessa espécie de arma de fogo não poderá ser beneficiado pela atipicidade temporária ou ausência de antijuridicidade em face da reabertura da possibilidade de entrega da arma de fogo. Trata-se de uma interpretação lógica, uma vez que, caso contrário, essa pessoa estaria autorizada a possuir a arma de fogo ilegal de forma indefinida, já que não poderia ser punida, o que levaria à derrogação dos artigos 14, 16, “caput”, e 16, parágrafo único, inciso IV, quanto à conduta de possuir. O intuito da norma é propiciar a entrega a quem possui qualquer espécie de arma de fogo e, dependendo da situação, até mesmo uma indenização, quando presumida a boa-fé.
Ora, se quem possui arma de fogo legalizada de acordo com as normas anteriores, ou quem pode provar sua origem, deve observar prazo legal para regularizar seu registro, não haveria sentido em permitir àquele que possui arma de fogo irregular, e sem possibilidade de registro, possuí-la de forma indefinida e sem qualquer punição. Seria regularizar de forma indireta a arma de fogo ilegal, contrariando o sistema do Estatuto do Desarmamento, que pretende a legalização das armas de acordo com as suas regras, ou a sua entrega para destruição, justamente para diminuir os crimes em que esse objeto é empregado como instrumento.
Com efeito, de acordo com o artigo 32 do Estatuto, todo aquele que possui qualquer espécie de arma de fogo pode entregá-la espontaneamente à autoridade competente a qualquer tempo, mediante recibo, podendo ser indenizado, desde que presumida a boa-fé. Por outro lado, caso flagrado possuindo a arma de fogo irregular ou provado que a possui, será normalmente punido de acordo com os tipos penais descritos no Estatuto do Desarmamento. Não lhe aproveitará a alegação de que iria entregar a arma de fogo, uma vez que a entrega deve ser espontânea e a sua apreensão pela polícia ou outro órgão competente afasta a espontaneidade.
Pode ocorrer, porém, que o sujeito obtenha a autorização (porte de trânsito) para entregar a arma e seja preso antes de fazê-lo. Nesse caso, se estiver dentro do prazo de validade do porte de trânsito para a entrega, não vemos como possa ser processado pela posse ilegal ou irregular da arma de fogo, uma vez que demonstrou a intenção de entregá-la. Porém, ultrapassado o prazo de validade do porte de trânsito, caso seja preso com a arma ou demonstrado estar em sua posse, não lhe aproveitará a alegação de que iria entregar a arma em outro dia ou que perdeu o prazo para fazê-lo, uma vez que não houve a entrega ou ela não foi espontânea.
Destarte, procedida a entrega da arma de fogo de forma espontânea ao órgão competente, estará excluída a antijuridicidade do sujeito, que agiu no exercício regular de um direito, que lhe foi concedido pelo artigo 32 do Estatuto do Desarmamento.
Outras modificações de menor impacto também foram feitas pela Medida Provisória 417/2008. No 2º parágrafo do artigo 6º foi modificado para incluir os integrantes da Carreira Auditoria da Receita Federal, Auditores-Fiscais e Técnicos da Receita Federal como os novos funcionários públicos que devem obedecer às condições do 4º artigo, inciso III, para obter a autorização para o porte de arma de fogo, regularizando situação trazida pela Lei 11.118/05, que possibilitou o porte funcional para essas pessoas, mas sem qualquer condição.
Também para complementar o vácuo trazido pela Lei 11.118/2005, o 2º parágrafo do artigo 11 foi alterado para incluir os integrantes da carreira de auditoria da Receita Federal, auditores-fiscais e técnicos da Receita Federal como isentos de pagamento de taxas pela prestação de serviços estabelecidas no Estatuto, seja para a aquisição de arma de fogo, registro, porte, renovações e obtenção de segundas vias desses documentos. Esse dispositivo também isenta de taxas os caçadores de subsistência (6° artigo 6º, 5º parágrafo).
Foi acrescentado o 4º parágrafo ao artigo 23 para possibilitar às instituições de ensino policial e às guardas municipais (artigo 6º, incisos III e IV e 6º parágrafo), a possibilidade de adquirirem insumos (propelentes, cápsulas, espoletas, projéteis) e máquinas de recarga de munição para o fim exclusivo de suprimento de suas atividades, mediante autorização concedida nos termos definidos em regulamento.
Até então, o recarregamento de munição era atividade proibida, consistindo, inclusive crime previsto no artigo 16, parágrafo único, inciso VI, do Estatuto. Resta, assim, ao regulamento disciplinar esse assunto, uma vez que essencial para o ensino da atividade policial e para o bom desempenho das guardas municipais cujos integrantes possuam autorização para o porte de arma de fogo.
O artigo 28 do Estatuto proíbe o menor de vinte e cinco anos de idade de adquirir arma de fogo. Eram exceções a essa proibição os integrantes das Forças Armadas, das Polícias Federal, Civil e Militar, e das Guardas Municipais das capitais dos Estados e dos Municípios com mais de quinhentos mil habitantes (6º artigo , incisos I, II e III). A MP deu nova redação ao dispositivo para excepcionar, além dos integrantes das entidades já mencionadas, os descritos nos incisos V, VI, VII e X do artigo 6º do Estatuto (agentes operacionais da Agência Brasileira de Inteligência; agentes do Departamento de Segurança do Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República; integrantes da Polícia Legislativa; integrantes do quadro efetivo dos agentes e guardas prisionais, das escoltas de presos e das guardas portuárias, e integrantes da Carreira Auditoria da Receita Federal, Auditores-Fiscais e Técnicos da Receita Federal). Assim, continua válida a regra que proíbe a aquisição de arma de fogo por menores de vinte e cinco anos de idade. As exceções são os integrantes das entidades descritas no 6º artigo, incisos I, II, III, V, VI, VII e X, do Estatuto.
A MP acrescentou o artigo 11-A ao Estatuto. Ele determina ao Ministério da Justiça que discipline a forma e condições de credenciamento de profissionais, pela Polícia Federal, para comprovação de aptidão psicológica e de capacidade técnica para o manuseio de arma de fogo. Na comprovação da aptidão psicológica, o valor cobrado pelo psicólogo não poderá exceder ao valor médio dos honorários profissionais para avaliação psicológica estabelecido na tabela do Conselho Federal de Psicologia.
Na comprovação da capacidade técnica, o valor cobrado pelo instrutor de armamento e tiro não poderá exceder R$ 80, acrescido do custo da munição. Para quem descumprir essas determinações e cobrar valores superiores, implicará o descredenciamento do profissional pela Polícia Federal.
Destarte, novamente o Executivo Federal valeu-se de medida provisória para modificar dispositivos de natureza administrativa, mas que implicam diretamente na definição de crimes previstos no Estatuto do Desarmamento, que são normas penais em branco. O melhor seria que as alterações fossem feitas por meio de lei, que traria maior segurança jurídica. Alterar legislação ordinária por meio de medida provisória, como o próprio nome já diz, é possuir normas provisórias, que podem ou não ser convertidas em Lei.
Esperamos, assim, que o Legislativo cumpra seu papel institucional e analise com a maior brevidade possível a aludida medida provisória e traga, com isso, segurança jurídica, que infelizmente está em falta nos meios forenses, dadas às constantes modificações de nossa legislação penal e processual penal.
Revista Consultor Jurídico