por Adriano Salles Vanni
As operações da Polícia Federal — autorizadas por mandados judiciais — seguem roteiro invariável limitado a duas fases: interceptações telefônicas e apreensões de bens e prisões.
Das interceptações telefônicas, saem interpretações para incriminar todos: quem falou ao telefone, aquele de quem se falou ou de quem nada se falou, mas o intérprete, por feeling, concluiu que se falou. O arrastão não poupa ninguém: o dono da empresa, o sócio, a esposa, o filho, a secretária, o funcionário, o contador. Todos serão alvo de diversas imputações, dentre as quais uma é invariável: quadrilha. O rótulo tem inestimável utilidade, por seu caráter infamante e, ao mesmo tempo, impactante. Nenhum jornal vai se atrever a escrever algo favorável a quadrilhas.
Nem mesmo juízes escaparão desse rótulo se, no passado, decidiram algo em favor da futura “organização criminosa”. Agora, também jornalistas podem integrar a “organização”. Basta que dêem o furo antes da fase própria dos holofotes. A interpretação é de que o jornalista pretendeu alertar a quadrilha através do jornal. Nesse contexto, todos podem ter a prisão decretada e ficar em débito com a sociedade: devem provar sua inocência, em meio às divulgações, a conta-gotas, de conversas incriminadoras, convenientemente selecionadas e vazadas à imprensa.
Os trechos escolhidos conferem aura nebulosa aos diálogos. “É conversa própria de quadrilha”, sugere a PF. Os policiais conseguem traduzir os diálogos cifrados de modo a ajustá-los ao crime imaginado. Entretanto, quem examina os autos e coteja as interpretações com a realidade vê que aquelas, não raras vezes, beiram o ridículo.
Recentemente, um processo decidido por respeitável ministro do Supremo Tribunal Federal foi citado em conversas de terceiros. Na interpretação da PF, tratava-se de suborno. Os intérpretes das conversas tropeçaram em “pequeno” detalhe jurídico: desconheciam que a matéria estava consolidada na Corte e que a decisão não poderia ser outra. O fato, quanto muito, seria venda de fumaça, prática tão velha quanto o sexagenário Código Penal.
Em outro episódio, a PF concluiu, com base em cópia de e-mail entre terceiros, ter um juiz restituído uma Kombi para atender a interesse de virtual quadrilha, como se decidir de uma forma ou de outra não fizesse parte da atividade de qualquer juiz. Esqueceram de checar o trivial: se existia alguma Kombi apreendida no processo e se foi efetivamente restituída. Muito poderia ser dito, mas para encurtar a história: não existia nem Kombi, nem outro veículo no processo.
Esses exemplos são de feeling policial utilizado contra juízes. É possível, por isso, imaginar o quanto de arbitrariedades se pratica contra cidadãos comuns. Para se ter uma ligeira noção, em recente operação-show, os policiais realizaram busca em consultório dentário à procura de suposto doleiro chamado Marco. O dentista disse chamar-se Fábio, mas os policiais insistiram: confesse que seu nome é Marco… pára de chorar, bichinha…
Em tempos como este, nem mesmo aos mortos é permitido descansar em paz. Em operação-show ocorrida em 2003, foi incluída como chefe de “quadrilha” pessoa falecida em 1964. Na mesma operação, Hugo Sterman ficou preso por 11 dias, confundido com outro Hugo.
No que diz respeito a bens, a lei admite apreensão somente quando caracterizados como produto de crime. Mas o arrastão colhe tudo. A exibição pública da apreensão de automóveis, barcos, dinheiro e toneladas de documentos é irretocável sob o ponto de vista de espetáculo. Sob o prisma legal, todavia, só guarda semelhança com as medidas previstas no Manual dos Inquisidores do século XV. O rótulo de herege, por si só, autorizava o Santo Ofício a confiscar-lhe todos os bens. Afinal — disse o inquisidor La Peña -, quando questionado sobre o direito real dos acusados: um herege desses seria indigno de tanta bondade.
A apreensão de veículos vem se revelando útil. Servem eles, sob depósito fiel, para uso da polícia em suas diligências. Estará ela livre, entre outros ônus, de multas por infrações de trânsito (em apenas um desses casos, mais de 40 multas e procedimento para perda da habilitação foram impingidos ao proprietário do veículo, enquanto este era utilizado pela polícia).
A prova por excelência da culpa, prevista no famigerado Manual dos Inquisidores, era a confissão. Esta deveria ser extraída mediante fraude, ardil e, em último caso, através da tortura. Há algo moderno que faz lembrar aquele método: a prisão cautelar como meio de obtenção de confissões e delações. Embora a lei atual especifique as hipóteses excepcionais de prisão cautelar (jamais como forma de coação para a confissão ou delação), a medida tornou-se regra nessas operações, cujo escamoteado objeto (abjeto) é o escambo da liberdade. Como disse Tocqueville (1805-1859), a história é uma galeria de quadros onde há poucos originais e muitas cópias.
[Artigo publicado em O Estado de S.Paulo desta quinta-feira (17/7)]
Revista Consultor Jurídico