Fetos sem cérebro – STF ouve argumentos sobre interrupção de gravidez

A interrupção de gravidez de fetos anencéfalos não configura aborto. A afirmação foi feita, na manhã desta terça-feira (26/8), pelo advogado Luís Roberto Barroso durante audiência pública que discutiu a questão no Supremo Tribunal Federal. Argumentos contra e a favor da interrupção da gravidez nesses casos não faltaram na audiência pública, a segunda na história do Supremo. A primeira tratou de pesquisas com células-tronco. O ministro Marco Aurélio disse que espera levar o caso a julgamento até novembro deste ano.

“O aborto pressupõe uma potencialidade de vida, o que não é o caso [de fetos anencéfalos]”, explicou Barroso, que representa a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. A CNTS, que ajuizou a ação sobre o tema no STF em 2004, quer a liberação da antecipação terapêutica de partos de anencéfalos.

Além da CNTS, foram representados na audiência a Confederação Nacional dos Bispos do Brasil, a Igreja Universal do Reino de Deus, o Ministério Público Federal, a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família e a ONG Católicas pelo Direito de Decidir. Todos tiveram 15 minutos para defender suas posições. Novas audiências já estão agendadas para a próxima quinta-feira (28/8) e para o dia 4 de setembro.

Os argumentos

O primeiro a falar na audiência pública foi o representante da CNBB, padre Luiz Antônio Bento. Ele defendeu que a prática de interrupção da gravidez, de uma criança normal ou de um bebê sem cérebro, é um ato de morte deliberado.

“Ninguém pode autorizar que se dê a morte a um ser humano inocente, seja ele embrião, feto, ou criança sem ou com má-formação, adulto, velho, doente, incurável ou agonizante”, afirmou.

Para o padre, só pelo fato de pertencer à espécie humana, o feto tem dignidade e ela precisa ser respeitada. “O feto anencefálico é um ser humano vivente”, advertiu. Ele completou que mesmo a reduzida expectativa de vida não nega ao feto em questão os seus direitos e a sua identidade.

Feita a defesa da CNBB, Barroso perguntou ao padre Luiz Antônio seu ponto de vista sobre o momento em que é caracterizada a morte. Segundo o Direito brasileiro, a morte ocorre quando o cérebro pára de funcionar.

O padre respondeu que se a criança está viva, ela pode não ter toda a formação do cérebro, mas tem o tronco encefálico e outras possibilidades de respirar se for ajudada. “Não se pode declarar morta um pessoa que ainda está viva, que tem o sistema em funcionamento”, defendeu o representante da CNBB.

Por sua vez, a Igreja Universal defendeu a antecipação terapêutica do parto de fetos que têm anencefalia. O bispo Carlos Macedo de Oliveira disse que a questão diz respeito à saúde e aos direitos da mulher. E, portanto, cabe a ela decidir sobre a possibilidade de antecipar ou não o parto.

“Talvez nenhum de nós consiga dimensionar os agravos de uma gravidez acometida de anencefalia. Descriminalizar o aborto é diferente de torná-lo obrigatório”, defendeu o bispo.

Carlos Macedo justificou que o bem comum passa primeiro pelo bem individual de cada pessoa. E, por isso, cabe ao Estado proporcionar que seus cidadãos vivam bem e não apenas vivam.

Duas médicas representantes da Associação Médico-Espírita do Brasil, Irvênia Luiza de Santis Prada e Marlene Rossi Severino Nobre, também fizeram uma exposição do tema.

Para Irvênia de Santis, que estuda a evolução do cérebro humano, são equivocadas as opiniões que afirmam a impossibilidade da vida nesses casos. “Essas opiniões não têm, metodologicamente, dentro do contexto da neurociência, nenhum embasamento. Pelo contrário, a neurociência demonstra pelo seu conteúdo que o anencéfalo tem substrato neural para desempenho de funções vitais, o que contra-indica o aborto desse feto e contra-indica a disponibilização do anencéfalo recém-nascido para transplante de órgãos”.

Ela defendeu que o direito da mulher não pode se sobrepor ao direito à vida. “A vida do anencéfalo sobrepuja todos os outros direitos. É um bem fundamental que lhe pertence”, ponderou.

É preciso cautela

O médico Rodolfo Acatauassú Nunes, que representou a Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, disse que a medicina ainda precisa avançar na pesquisa sobre o nível de consciência das crianças nascidas com deformações severas no cérebro. Para ele, essa é a premissa que deve nortear as políticas sobre a interrupção da gravidez.

Ele exemplificou que uma menina brasileira sobreviveu 18 meses e, durante esse tempo, conseguiu interagir com a sua família. “A anencefalia não é o mesmo que morte encefálica. Uma pessoa que respira sozinha e que é amamentada pela mãe sem precisar de aparelhos está viva. Existem muitas reações desses bebês que não se explicam. Por isso, é necessária a cautela”, advertiu.

Ele defendeu que, antes de se decidir pela interrupção da vida, estudos devem ser feitos para determinar o real estado de consciência dessas crianças.

“Não é honesto, cientificamente, dizer que existe ou não a essa presença de consciência”, ressaltou o médico, que é professor adjunto do Departamento de Cirurgia-Geral da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

O médico esclareceu que há níveis diferentes da falta do cérebro, desde a ausência completa até a falta de algumas partes do encéfalo. “O cérebro pode estar completamente ausente ou pode ter resquícios. A doença é letal e não há cura para ela, mas também não se trata de um tudo ou nada”, afirmou.

Saúde da mulher

A professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Maria José Fontelas Rosado Nunes, defendeu o direito da mulher de interromper a gravidez em casos de comprovada anencefalia.

Maria José, que preside a ONG Católicas pelo Direito de Decidir disse que, nos últimos anos, 15 mil mulheres brasileiras tiveram que fazer “uma peregrinação judicial dolorosa” para ter respeitado o seu direito de interromper uma gravidez anencefálica. Ela classificou o fato como “um desrespeito à mulher”.

Ela disse que, eticamente, a maioria da população brasileira apóia a interrupção da gravidez, em caso de comprovada anencefalia. Até mesmo porque não oferecer à mulher essa oportunidade “é tratá-la como uma coisa”.

A professora ponderou que modificar a legislação para permitir a interrupção da gravidez no caso de anencefalia é uma questão de justiça social. Assim, também as mulheres pobres, que não têm recursos para apelar à Justiça para fazer valer o seu direito de autodeterminação, poderão ser beneficiadas.

Maria José encerrou lendo uma carta dirigida aos ministros do Supremo por uma moradora de Teresópolis (RJ). No texto da carta, a mulher registra que tem uma filha deficiente, com hidrocefalia, cuja gravidez levou até o fim porque ela iria viver. Grávida novamente de uma criança com a mesma doença, a mulher recorreu à Justiça, mas teve negado o direito de interrupção da gravidez em primeira instância. A segunda instância arquivou o processo por falta de objeto após o parto e a morte do bebê.

“Viver uma gravidez sem esperança é acordar e dormir no desespero. Nunca vou esquecer do caixão com a filha que me obrigaram a enterrar. Não escolhemos essa tragédia, mas gostaríamos de ter o direito de não prolongá-la”, pediu a mãe.

O processo

Na ação que tramita no Supremo (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54), a CNTS argumenta que a permanência de feto anômalo no útero da mãe é perigosa. E mais: pode gerar danos à saúde da gestante.

A CNTS defende, ainda, que “impor à mulher o dever de carregar, por nove meses, um feto que sabe, com plenitude de certeza, não sobreviverá, causa à gestante dor, angústia e frustração, resultando em violência às vertentes da dignidade humana (artigo 5º da Constituição Federal) – a física, a moral e a psicológica – e em cerceio à liberdade e autonomia da vontade, além de colocar em risco a saúde”.

O processo chegou ao STF, em 2004, e foi distribuído para o ministro Marco Aurélio em 17 de junho do mesmo ano. Em decisão liminar, datada de julho de 2004, o ministro autorizou, liminarmente, o aborto de fetos sem cérebro. No entanto, em outubro, a liminar foi cassada pelo Plenário do Supremo.

Revista Consultor Jurídico

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