por Fernando Henrique Pinto
Recentemente foi noticiado que a Câmara dos Deputados avalia o Projeto de Lei 2067/07, que supostamente iria possibilitar aos casais separados de fato há mais de um ano a dispensa da audiência de conciliação, para início do processo jurídico de separação consensual. A proposta é do deputado Manoel Junior (PSB-PB).
Existe ainda o Projeto de Lei 1.690/07, do deputado licenciado Carlos Bezerra (PMDB-MT), que cria o Juizado Especial de Família, com competência para realizar conciliação, processo e julgamento das causas de família, o que supostamente agilizaria as causas de família.
Ambos os projetos, contudo, se aprovados, e em que pese as presumidas boas intenções de seus autores, surtiriam efeito justamente oposto.
Problemas
No primeiro caso, respeitosamente já não existe obrigação legal da oitiva judicial dos cônjuges ou “separandos”, como condição para o decreto de separação, em nenhuma hipótese.
Com efeito, pelo Código Civil de 2002, vigente desde 12 de janeiro de 2003, o casamento não é ato personalíssimo, podendo-se realizar por meio de procuradores, desde que distintos para cada contraente, com poderes especiais, e procurações por instrumento público, com prazo de validade de 90 dias (artigo 1.525, caput, 1.535 e 1.542 e parágrafos).
Fora os casos de morte, nulidade e anulação de casamento, e enfermidade mental incurável, o Código Civil de 2002 prevê a dissolução da sociedade conjugal por separação consensual, desde que transcorrido um ano de casamento, ou por separação litigiosa, por culpa de qualquer dos cônjuges, ou por simples “ruptura da vida em comum há mais de um ano e a impossibilidade de sua reconstituição” (artigo 1.572 e § 1º) ou “abandono voluntário do lar conjugal, durante um ano contínuo” (artigo 1.573, inciso IV).
O casamento, por sua vez, dissolve-se pelo divórcio, na hipótese de conversão da separação judicial (sentença) — ou da decisão de separação de corpos que a antecede — ocorrida há mais de um ano, ou diretamente após dois anos de separação de corpos, mesmo que não haja partilha de bens, a qual pode ser feita posteriormente (artigo 1.580 e parágrafos, e 1.581 do Código Civil e artigo 226, § 6º, da Constituição Federal).
O Código Civil de 2002 é omisso quanto à possibilidade de separação judicial ou divórcio por procuração, e até parece assinalar de forma negativa, ao dispor que “dar-se-á a separação judicial por mútuo consentimento dos cônjuges se forem casados por mais de um ano e o manifestarem perante o juiz, sendo por ele devidamente homologada a convenção” (artigo 1.574), e que “o procedimento judicial da separação caberá somente aos cônjuges, e, no caso de incapacidade, serão representados pelo curador, pelo ascendente ou pelo irmão” (artigo 1.576, parágrafo único).
Em sentido análogo dispõem os artigos. 1.122 e 1.123 do Código de Processo Civil, também referentes à separação consensual, exigindo a presença dos cônjuges perante o juiz.
Mas desde a vigência da Lei 6.515, de 26 de dezembro de 1977 (Lei do Divórcio), não há maiores formalidades para a decretação do divórcio, pois, segundo tal diploma legal, “o juiz conhecerá diretamente do pedido, quando não houver contestação ou necessidade de produzir prova em audiência, e proferirá sentença dentro em 10 dias” (artigo 37).
E a Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, entre outras disposições, acrescentou o artigo 1.124-A ao Código de Processo Civil, do seguinte teor:
Artigo 1.124-A. A separação consensual e o divórcio consensual, não havendo filhos menores ou incapazes do casal e observados os requisitos legais quanto aos prazos, poderão ser realizados por escritura pública, da qual constarão as disposições relativas à descrição e à partilha dos bens comuns e à pensão alimentícia e, ainda, ao acordo quanto à retomada pelo cônjuge de seu nome de solteiro ou à manutenção do nome adotado quando se deu o casamento.
Parágrafo 1º A escritura não depende de homologação judicial e constitui título hábil para o registro civil e o registro de imóveis.
Parágrafo 2º O tabelião somente lavrará a escritura se os contratantes estiverem assistidos por advogado comum ou advogados de cada um deles, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial.
Parágrafo 3º A escritura e demais atos notariais serão gratuitos àqueles que se declararem pobres sob as penas da lei.
Assim, se já não havia maiores formalidades, além da simples prova dos respectivos lapsos temporais, para o divórcio (direto ou conversão) e para a separação litigiosa fundada na separação de corpos mais antiga que um ano, fica evidente que, facultando-se a separação consensual na forma extrajudicial, ficou derrogada a necessidade de audiência de oitiva de cônjuges para a separação consensual em juízo, mesmo se houver interesse de menores ou incapazes.
De fato, se o legislador, antes da Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, exigia a presença das partes perante o juiz apenas nos casos de separações consensuais sem prévia ruptura da vida em comum há mais de um ano, e se em todos os demais casos (separação litigiosa e divórcios) sempre poderia haver interesse de “menores ou incapazes”, fica evidente que o intuito primordial de tal audiência não era a proteção dos menores, e sim a tentativa de reconciliação das partes, e averiguação da firme vontade de as mesmas se separarem.
Não era sem tempo a supressão de tal ingerência paternalista e hoje desnecessária do Estado na vida privada das pessoas, inclusive porque:
1) a mulher casada deixou de ser relativamente capaz desde a Lei 4.121, de 27/08/1962 (Estatuto da Mulher Casada);
b) a Constituição Federal de 05/10/1988 estabeleceu a igualdade jurídica entre homens e mulheres, e
c) o próprio Código Civil de 2002 prevê que o “poder familiar” sobre os filhos é exercido em igualdade de condições pelo homem e pela mulher.
O Estado percebeu — ou deve perceber — que tentar dificultar a dissolução de um matrimônio infeliz e/ou falido é mais danoso às partes e aos menores, que a facilitação da separação — mesmo porque a mesma é plenamente reversível até o divórcio.
Na verdade, desde o artigo 55 da Lei 7.244, de 7 de novembro de 1984 (Juizados Especiais de Pequenas Causas), mantido incólume da letra do artigo 57 da Lei. 9.099, de 26 de setembro de 1995 (Juizados Especiais Cíveis e Criminais), está previsto que “o acordo extrajudicial, de qualquer natureza ou valor, poderá ser homologado, no juízo competente, independentemente de termo, valendo a sentença como título executivo judicial”.
E a jurisprudência é pacífica no sentido de que a expressão “qualquer natureza” permite a homologação de acordos referentes menores ou incapazes — desde que, óbvio, ouvido o Ministério Público, e resguardados os direitos daqueles.
Sobre o tema Theotonio Negrão já entendia que “esta disposição transcende, de muito, o âmbito do juizado especial, porque se aplica a todo e qualquer acordo (transação) extrajudicial, ainda que de valor superior a 40 salários mínimos”. E, para não deixar qualquer dúvida, o eminente jurista ressaltava que “a homologação deve ser pleiteada: no Juizado Especial, se dentro da competência deste (v. artigos 3º e 8º); no juízo comum, em todas as demais hipóteses” (Código de Processo Civil e Legislação Processual em Vigor, 31ª ed., 2000, nota 1 ao artigo 57 da Lei 9.099, de 1995).
Tudo isso não é novidade, conforme os seguintes precedentes jurisprudenciais:
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro — TJRJ
Acordo Extrajudicial — Homologação — Art. 55 da Lei 7.244/84 – Dispositivo que não diz respeito somente ao Juizado de Pequenas Causas – Aplicabilidade a toda e qualquer transação, independente da natureza e valor – Norma de Direito Processual e Substantivo que amplia e simplifica a disciplina dos acordos, modificando as exigências formais do Código Civil.
(TJRJ) RT 667/151.
Tribunal de Alçada de Minas Gerais — TAMG.
Acordo Extrajudicial — Homologação — Art. 55 da Lei 7.244/84 — Dispositivo que não diz respeito somente ao juizado de Pequenas Causas – Aplicabilidade a toda e qualquer transação, independentemente da natureza e valor – Norma que visa a facilitar a conciliação, desafogando o juízo comum e desburocratizando a justiça (TAMG) RT 672/187
Tribunal de Justiça de São Paulo — TJSP.
Processual — Acordo extrajudicial — Homologação — Lei Federal 9.099/95. Guarda de menor e alimentos. Requerimento de homologação de acordo extrajudicial. Indeferimento liminar. Descabimento. artigo 57, da Lei 9.099, de 26.09.95, que disciplina o funcionamento dos Juizados Especiais. Viabilidade. Apelação provida, para determinar o prosseguimento. (TJSP – ACi 254.974.4/7.00 – Segredo de Justiça – 2ª Câm. – Rel. Des J. Roberto Bedran – J. 01.10.02 – v.u, RNDJ nº 37/194-196).
Na verdade, o Código Civil de 2002 representou um retrocesso em relação às Leis 7.244/1984 e 9.099/1995, ao prever a necessidade de prévia oitiva pessoal dos cônjuges, para homologar a separação consensual, o que felizmente foi sanado pelo artigo 1.124-A ao Código de Processo Civil, introduzido pela mencionada Lei 11.441, de 04/01/2007.
A rigor, decorre naturalmente deste próprio dispositivo legal que, se o mesmo não permite a via extrajudicial para a separação e o divórcio consensuais que envolvam “menores ou incapazes”, obviamente o fez para que o acordo versando sobre direitos destes últimos tenha o crivo do Ministério Público e a homologação judicial — não para que se fique indagando pessoalmente aos maiores e capazes que acabaram de pedir a separação judicial por meio de advogado, se realmente assim querem proceder.
Todo esse raciocínio, por outro enfoque, gera também como conseqüência a possibilidade de também as separações e divórcios serem efetivadas por procuração.
É o que ficou consolidado no item 135, da Seção X, do Capítulo XIV, Tomo II, das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo (Processo GAJ3-6/2007 e Prov. CGJ 33/2007), como conclusão de grupo de estudo organizado para regulamentar o assunto (Portaria CG 01/2007, DOE/SP de 11/01/2007), em redação idêntica à do artigo 36 da Resolução 35, de 24/04/2007, do Conselho Nacional da Justiça:
“O comparecimento pessoal das partes é dispensável à lavratura de escritura pública de separação e divórcio consensuais, sendo admissível ao(s) separando(s) ou ao(s) divorciando(s) se fazer representar por mandatário constituído, desde que por instrumento público com poderes especiais, descrição das cláusulas essenciais e prazo de validade de trinta dias”.
No mesmo sentido é o item 76-A do Capítulo II, Tomo I, das mesmas NSCGJ, segundo o qual “os acordos extrajudiciais, desistências e os pedidos de suspensão poderão ser homologados ou deferidos independentemente da realização da audiência já designada, com aproveitamento da data para ato diverso”.
Conclui-se, portanto, que se a separação e o divórcio consensuais podem ser realizados extrajudicialmente, e até por meio de procuradores, estão mesmo derrogadas todas as normas que exigiam a presença pessoal das partes perante o juiz, como condição para homologação da separação ou do divórcio consensuais, especialmente o artigo 1.574 do Código Civil de 2002, e os artigos. 1.122 e 1.123 do Código de Processo Civil.
Até por isso que a lei exige, tanto na esfera judicial quanto extrajudicial, que as partes estejam assistidas por advogado ou defensor público. Tais profissionais, presume-se, cumprirão seu dever ético e legal de não subscrever pedido de separação ou divórcio, caso sintam que essa não é a livre convicção das partes, e de não incorrerem em tergiversação, prejudicando uma das partes.
É claro que o juiz, de ofício ou a pedido do Ministério Público, se entender necessário, poderá convocar as partes à sua presença, para esclarecer determinada cláusula do acordo que aparentemente viole direitos dos “menores ou incapazes” — se não se sentir satisfeito com o esclarecimento que pode ser prestado por escrito pelo próprio advogado.
No caso do Projeto de Lei 1690/07, nada adianta repassar aos já assoberbados Juizados Especiais as causas de família, ou prever a criação de Juizados apenas para as causas de Família, sem direcionar recursos financeiros ao Judiciário, como, por exemplo, a regulamentação legal da autonomia financeira de tal Poder.
Soluções
Em primeiro lugar deve-se finalmente ter coragem política para “desjurisdicionalizar” de vez as separações e divórcios consensuais, vale dizer, em que não haja litígio e onde há consenso entre o casal sobre todas as questões que devem ser decididas.
Ninguém precisa de juiz togado para casar, comprar e vender bens móveis ou imóveis, gerar filhos, dirigir-lhes a educação, autorizar que tais filhos viagem, inclusive para o exterior, e até que residam fora do país ou com um parente. E se o casal/pais realiza(m) todos esses atos/negócios jurídicos sem o intermédio do Judiciário, não se vê o motivo da interferência do Ministério Público e do Judiciário na decisão de separação consensual, ainda que envolva menores – sobre os quais, frise-se, os pais detêm o pleno Poder Familiar.
Em segundo lugar, e considerando que uma parcela considerável das causas de família que iniciam litigiosas acabam se resolvendo por acordo, dever-se-ia criar Juntas de Conciliação pré-processuais de Família, tal como os Procons, estruturadas pelos executivos (eles sim que têm Poder sobre o orçamento Público — diretamente ou por influência nos parlamentos), e orientadas pela OAB e/ou pela Defensoria Pública.
Como garantia, que se obrigue o patrocínio de advogado (tal como já ocorre nos divórcios e separações extrajudiciais), e, principalmente, se preveja a gratuidade do ato, a quem se declarar pobre ou impossibilitado de pagar as taxas cartorárias, e a remuneração específica do advogado nomeado pelos convênios de assistência judiciária.
Sobraria para as varas de família e sucessões, então, apenas o que é contencioso, até porque a missão do Judiciário é solucionar lides, dizer o direito ao caso concreto onde alguém teve uma pretensão resistida, não administrar interesses privados e amigáveis de pessoas maiores e capazes, e que detêm o poder familiar sobre seus filhos, repita-se à exaustão.
Para esses casos contenciosos, é necessário:
a) revogar ou ajustar o artigo 732 do Código de Processo Civil, remetendo-o à execução por título judicial ou extrajudicial, conforme seja a forma pela qual foi fixado o dever alimentar (sentença de mérito ou homologatória, acordo homologado pelo Ministério Público, escritura pública etc.);
b) ajustar o artigo 733 do Código de Processo Civil, de forma que também os títulos executivos extrajudicias definidores de dever alimentar possam ser executados sob pena de prisão civil;
c) permitir que execuções de alimentos sobre ritos diferentes caminhem nos mesmos autos, para fins de satisfação do respectivo crédito, aproveitando-se os mesmos mandados e atos de constrição de bens, e evitando-se eventual tumulto processual mediante a autuação, em apartado, como incidentes, das eventuais impugnações ou de embargos;
d) instituir, em lugar do atual rito ordinário, o rito sumário para as separações judiciais litigiosas, como modificação permitindo a apresentação de defesa apenas 15 (quinze) dias após a audiência prévia de tentativa de conciliação, e após esta apenas a de instrução e julgamento, se houver requerimento/necessidade de prova oral;
e) instituir apenas duas formas de “inventário”, uma para os casos contenciosos e outra para os consensuais, evitando fraudes pela obrigação de inclusão do nome do falecido em campo próprio da distribuição, em todas elas e também nos pedidos autônomos de alvará, bem como pela obrigatória a consulta (ou apresentação de certidões) ao Colégio Notarial do Brasil, sobre testamentos, ao INSS, sobre dependentes habilitados, à Receita Federal, sobre a última declaração de bens e rendimentos da pessoa falecida, ao Banco Central, sobre ativos financeiros do falecido, e ao sistema dos Registros de Imóveis e Detrans, tudo para evitar futuras ações sobre bens sonegados (sobrepartilhas), herdeiros preteridos (notadamente gerados fora do casamento ou união estável) e desrespeito à última vontade do falecido.
Conclusão
Se aprovado o Projeto de Lei 2.067/07, portanto, ficaria ressuscitada a já revogada necessidade de audiência de prévia oitiva dos cônjuges. Se aprovado o Projeto de Lei 1.690/07, a eficácia da lei dependerá de recursos financeiros para estruturar os Juizados de Família, ou serão inviabilizados os atuais Juizados Especiais Cíveis.
E se tudo ficar como está, a sobrecarga de serviço, também nas Varas da família e das sucessões continuará, remanescendo casos em que, por exemplo, são ajuizados de simples pedidos de homologação de acordo de separação, apenas para que o advogado nomeado por convênio de assistência judiciária tenha pagos seus honorários — tornando letra morta a própria lei que instituiu a separação/divórcio consensual.
Ou ainda, permanecerá o atolamento das pautas de audiência das varas da família e das sucessões, apenas para que, após uma conversa, em grande parte dos casos as partes resolvam transformar a separação litigiosa em consensual — atravancando ações onde realmente há um litígio intransponível que exige a intervenção do juiz para dirimi-lo.
Revista Consultor Jurídico