O sucesso da intervenção das Forças Armadas nas operações de reconquista dos morros do Rio de Janeiro, dominados pelo crime organizado, trouxeram de volta a discussão sobre o seu papel na sociedade brasileira.
A primeira constatação é a de que a população aprovou, quase por unanimidade, a ação do Exército e da Marinha. Percebe-se certo cansaço com as teses acadêmicas, a respeito de como tratar o problema. As pessoas querem soluções e a ação dos órgãos envolvidos mostrou resultados.
Passada a primeira fase do processo, cessadas as exibições do combate urbano na TV, volta-se às discussões sobre a oportunidade de as Forças Armadas envolverem-se com a segurança pública. E aí as opiniões são as mais divergentes possíveis.
Uma corrente minoritária ainda se anima a sustentar que as Forças Armadas devem continuar no seu antigo e tradicional papel: defender o Brasil do inimigo externo. A este respeito, vejamos um exemplo simples, mas significativo.
No Rio Grande do Sul, há contingentes do Exército em inúmeras cidades próximas da fronteira com Uruguai e Argentina. Nelas está sediado um elevado número de militares preparados para eventual conflito armado. Pois bem, poderia alguém supor que os nossos hermanos do Mercosul representam algum risco? Óbvio que não.
Quando se discute se é oportuna ou não a adesão das Forças Armadas na guarda da segurança pública interna, esta sim a cada dia mais periclitante, dois argumentos prevalecem nas discussões: a) os militares são despreparados para a atividade de segurança urbana; b) haveria risco de corrupção dos seus soldados e até mesmo dos Oficiais. Todavia, a ninguém está preocupando um terceiro fator: há base legal para tal tipo de atuação?
Ora, se estamos em um estado democrático de direito, devemos todos obediência à lei. E se é assim, necessário é que os profissionais do Direito sejam ouvidos e discutam os fundamentos jurídicos de eventual atuação das Forças Armadas nas atividades de segurança pública.
As Forças Armadas têm sua atuação prevista no art. 142 da Constituição e, na cabeça do referido dispositivo, está que elas “…destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.
A primeira observação é se a defesa da segurança pública inclui-se na previsão constitucional de “defesa da lei e da ordem”. Em hermenêutica histórico-evolutiva, creio que sim. Penso ser possível interpretar a norma no sentido de que as Forças Armadas podem atuar na defesa da lei (no caso a penal) e da ordem (se notoriamente ameaçada). Evidentemente, desde que solicitada esta participação por um dos chefes dos Poderes.
Mas a Carta Magna é genérica e por isso a Lei Complementar 97/99, alterada pela LC 136/2010 disciplina a matéria. Ela assim dispõe sobre a participação dos nossos órgãos de defesa:
Art. 16-A. Cabe às Forças Armadas, além de outras ações pertinentes, também como atribuições subsidiárias, preservadas as competências exclusivas das polícias judiciárias, atuar, por meio de ações preventivas e repressivas, na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores, independentemente da posse, da propriedade, da finalidade ou de qualquer gravame que sobre ela recaia, contra delitos transfronteiriços e ambientais, isoladamente ou em coordenação com outros órgãos do Poder Executivo, executando, dentre outras, as ações de:
I – patrulhamento;
II – revista de pessoas, de veículos terrestres, de embarcações e de aeronaves; e
III – prisões em flagrante delito
O “caput” é claro ao dispor que a atuação das Forças Armadas é possível, porém “na faixa de fronteira terrestre, no mar e nas águas interiores”. Os três incisos referem-se a ações típicas de polícia, mas, como é evidente, se subordinam à cabeça do artigo. É dizer, tudo que eles prevêem é possível, mas apenas nos locais mencionados.
No entanto, o art. 17-A, que disciplina as atribuições exclusivas do Exército, vai além da previsão genérica do art. 16-A. E, além da possibilidade de cooperação , patrulhamento e revista, ainda permite que:
III. III – cooperar com órgãos federais, quando se fizer necessário, na repressão aos delitos de repercussão nacional e internacional, no território nacional, na forma de apoio logístico, de inteligência, de comunicações e de instrução
Ora, ao Exército a LC 97/99 dá poderes maiores que às outras Armas, ou seja, permite que coopere na repressão de delitos no território nacional, ou seja, além das hipóteses de fronteira, mar e águas interiores.
Conjugando-se os dois dispositivos chega-se à conclusão de que ao Exército permite-se a cooperação e as operações nos morros do Rio de Janeiro ajustam-se perfeitamente a esta previsão legal, face à repercussão nacional e internacional que o caso gerou.
No item I do art. 16-A menciona-se o patrulhamento. Nada de novo. No inciso II a revista de pessoas e de meios de transporte. Não há grandes dificuldades nesta interpretação, exceto saber se os integrantes do Exército estão preparados para proceder a revista em pessoas que detêm foro especial (v.g., Deputados) ou como reagirão em caso de resistência ou desacato. Mas tudo isto pode ser superado com cursos de capacitação.
O item III do art. 16-A é o que pode ensejar discussões. Terão os Oficiais preparo para lavrar auto de prisão em flagrante? Saberão como proceder em casos inusitados, como um acusado com problemas mentais ou bêbado? Terão condições de tipificar corretamente o delito? Saberão identificar o Juízo competente, Estadual ou Federal?
Admitindo-se que sim, a pergunta seguinte é se terão atribuições para prosseguir nos atos de inquérito policial. A resposta é não. Se a Lei Complementar fala em prisão em flagrante delito, é neste limite que a atuação da autoridade militar deve ficar. Afinal, “quando a norma atribui competência excepcional ou especialíssima, interpreta-se estritamente” (Carlos Maximiliano, Hermenêutica e Aplicação do Direito, Forense, 9ª. ed., p. 265).
Portanto, e em resumo de todo o exposto, conclui-se que o Exército, com a qualidade de seus quadros, tem muito mais a dar ao país do que estar disponível para um eventual conflito externo. E dentro de suas possibilidades de ação encontra-se a de auxiliar na manutenção da segurança pública interna (p. ex., impedindo a entrada de armas nas fronteiras), sem prejuízo de outras atividades que lhe venham a ser-lhe atribuídas.
A Constituição Federal e a LC 97/99 autorizam que se chegue a esta conclusão. Preparar-se para que ela seja exercida dentro dos limites dos direitos e garantias constitucionais é o próximo passo a ser dado.