por Priscyla Costa
A conversa entre cliente e advogado, por telefone ou por e-mail, é coberta por sigilo e não pode ser usada como prova. A orientação é do Supremo Tribunal Federal, firmada no julgamento do pedido de Habeas Corpus 89.025, em 2006. Na ocasião, os ministros discutiram a ilegalidade da utilização de e-mails trocados entre os advogados de defesa do banqueiro Edemar Cid Ferreira, do Banco Santos.
O mesmo entendimento poderá servir de base para colocar por terra parte do inquérito da operação da Polícia Federal contra o também banqueiro Daniel Dantas. No caso da operação contra Dantas, agentes da Polícia Federal transcreveram no inquérito e-mails e telefonemas trocados pelos advogados do banqueiro com informações sobre a estratégia de defesa.
No caso de Cid Ferreira, em 2006, o banqueiro perguntava para seu advogado, Arnaldo Malheiros Filho, se deveria dar uma entrevista. Malheiros o estimulou, dizendo que seria bom para a sua defesa. Nesse julgamento, as provas foram criticadas e classificadas como ilegais por ministros do Supremo. O relator do caso foi Eros Grau, hoje também relator do caso Dantas.
A idéia de quebrar o sigilo de conversas entre advogado e cliente parte de uma corrente de membros do Ministério Público e da magistratura que acreditam que o acervo probatório do escritório e do computador pode ajudar desvendar crimes, o que seria uma resposta em favor da sociedade e uma demonstração de eficiência. Para o advogado criminalista Sergei Cobra Arbex, presidente de Comissão de Prerrogativa da OAB paulista, compactuar com essa tese pode ser perigoso.
“Por analogia, aceitar essa tese seria o mesmo que permitir que advogados invadam o Ministério Público para saber quais provas o promotor tem contra o acusado. Não faz sentido”, defende Arbex. “O sigilo do trabalho do advogado é o que norteia todo o sistema jurídico. Se violado o direito do suspeito e do advogado, o sistema é destruído e o processo é prejudicado. O acusado pode acabar absolvido porque a prova constituída é ilegal”, considera.
Marcio Kayatt, presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, também defende que conversas entre advogado e cliente não podem ser usadas como prova: “Nem mesmo ordem judicial pode quebrar esse sigilo assegurado por lei. Como na questão da inviolabilidade dos escritórios, há a exceção apenas no caso de o próprio advogado ser investigado por práticas criminosas. As conversas que ele tem com o cliente como advogado não podem ser usadas como prova contra seu cliente de forma alguma”.
O presidente do Sindicato das Sociedades de Advogados de São Paulo e Rio de Janeiro (Sinsa), José Eduardo Haddad, também defende que as comunicações trocadas entre advogado e cliente são invioláveis, ainda que a comunicação seja confissão do cliente para o advogado da prática de um crime. “O devido processo legal, que é garantia fundamental, só pode ser exercido através do advogado. Não se deve tratar a inviolabilidade da profissão como um privilégio. É uma garantia não para o advogado, mas para o cidadão”, acredita Haddad.
“A conversa entre advogado e cliente está protegida por sigilo legal”, defende o presidente da OAB fluminense, Wadih Damous. Para ele, não há dúvidas de que a prova, obtida entre o diálogo do acusado com seu defensor, deve ser considerada inválida. Segundo Damous, a OAB constantemente tem declarado que a conversa não pode ser considerada como prova.
Corrente contrária
Quem é contra a inviolabilidade do e-mail, conversa telefônica ou ambiental entre advogado e cliente afirma que todo esse material pode ser usado como prova por ser tênue a linha que separa o advogado que defende o suspeito e o advogado que defende os interesses do suspeito. A tese é sustentada pelo José Carlos Cosenzo, presidente da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público (Conamp).
Segundo ele, quando a Polícia e Ministério Público conseguem autorização para quebrar sigilo de comunicação, incluiu-se aí qualquer tipo de comunicação. Pode apreender cartas, documentos, HDs. O que será usado no inquérito é classificado de acordo com o bom senso do agente ou membro do MP.
Normalmente, o que se separa é a comunicação que transcreve algum delito, ou oculta um crime, independentemente de constar no documento, e-mail, carta ou escuta a participação do advogado. “Fazemos isso para a tranqüilidade da sociedade. É a preservação da ordem pública”, afirma Cosenzo. De acordo com ele, o que se vê nos casos apurados pela Polícia Federal é que o advogado tenta criar provas ou ocultá-las. “Advogado tem direito de buscar a defesa de seu cliente, mas não pode se aliar a ele, como temos visto.”
O juiz federal Nino Oliveira Toldo, vice-presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) na 3ª Região, explica que toda conversa, seja por telefone ou e-mail, em que o advogado não é investigado, está coberta pelo sigilo. No entanto, pode ser usada como prova se o advogado dá assessoria para o cliente para fazê-lo escapar da punição. “Aí o advogado não é defensor, mas partícipe”, defende Nino Toldo. “Existem sutilezas que dependem da analisa da situação concreta. Advogado não é ser intocável, nem juiz, nem membro do MP”, pondera.
Chave do escritório
O embate entre juízes e membros do Ministério Público com os advogados ganhou traços mais carregados esta semana em razão do Projeto de Lei 36/2006, que restringe as hipóteses de busca e apreensão em escritório de advocacia. Aprovado pelo Congresso, o texto aguarda sanção presidencial.
O projeto altera artigo 7º da Lei 8.906/94 (Estatuto da Advocacia) estabelecendo punição criminal para quem violar escritórios de advocacia. O texto veta também a utilização dos documentos, das mídias e dos objetos pertencentes a clientes do advogado investigado, bem como dos demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes.
Juízes, membros do MP e advogados trocam farpas e divergem sobre as conseqüências do texto. Cezar Britto, presidente nacional da OAB, defende que o texto estabelece, de forma expressa, que os operadores do Direito poderão ser investigados, quando acusados da pratica de crimes. “Crime existiria, única e exclusivamente, se o direito de defesa no Brasil fosse revogado pelo governo Lula”, completou.
Já quem defende o veto ao projeto afirma que se for sancionada como está, a lei permitirá que o crime fique “substancialmente mais fácil”, porque “os criminosos poderão fazer uso de escritórios de advocacia para esconder provas do cometimento de seus crimes, tornando-os imunes à ação da polícia, do Ministério Público e do Poder Judiciário”.
Para Marcio Kayatt, o que tenta se evitar com esse projeto é a violação dos escritórios de advocacia de forma absolutamente ilegal como se viu em operações realizadas, principalmente, nos últimos três anos. “O exemplo mais clássico de um abuso foi a operação que ocorreu no escritório do advogado Luiz Olavo Baptista no caso da Schincariol, onde levaram HDs e computadores de todos os advogados de forma absolutamente ilegal e sem qualquer fundamentação”, observa o presidente da Aasp.
O advogado Luiz Carlos Levenzon, do Conselho Federal da OAB, lembra que o escritório de advocacia não tem só como cliente o investigado. “Há clientes que não têm nada a ver com a investigação”, afirma. Para Levenzon, a atividade profissional do advogado não pode ser criminalizada pelo simples fato de ter um cliente alvo de investigação.
O diretor do Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), Belisário dos Santos Júnior, sustenta que o projeto que garante a inviolabilidade do escritório do advogado que não é investigado uma conquista da cidadania.
“Mandado de busca e apreensão não é um cheque em branco. A autoridade terá uma lei que a ajudará a escrever a ordem que guiará o agente no procedimento. Acabarão os abusos que não eram vistos nem no tempo da ditadura”, diz. “A lei foi construída não para preservar só a advocacia, mas para garantir os direitos do cidadão, porque a ampla defesa é uma garantia do investigado, não do seu defensor.”
Movimento pela sanção
Os 270 mil advogados do estado de São Paulo já foram convocados pela presidência da OAB paulista a enviar e-mails para Lula para defender a sanção do projeto. “A lei é útil para a sociedade e coloca regras para a questão do sigilo e da inviolabilidade”, defende Luiz Flávio Borges D´Urso, presidente da OAB-SP.
“Ao contrário do que tem sido afirmado, o projeto não traz novidade. Apenas esclarece, didaticamente, o que pode o que não pode quando o alvo da investigação é um advogado. Coloca limites para evitar a repetição de episódios lamentáveis como o que vimos há três anos”, afirma.
As buscas e apreensões em escritórios são alvos constantes de reclamações da advocacia. Em 2005, por exemplo, a Polícia Federal deflagrou a Operação Cevada, que atingiu diversos escritórios de advocacia. Na ocasião, a PF afirmou que fora a maior operação de combate à sonegação fiscal já feita no Brasil. A operação envolvia a cervejaria Schincariol.
Outra mega-operação foi a Monte Éden, deflagrada no mesmo ano. Nesta, a PF prendeu 24 pessoas, entre advogados e empresários, e promoveu buscas e apreensões em cinco escritórios de advocacia. No mesmo ano, o presidente da seccional paulista da OAB chegou a pedir ao STJ para não permitir a invasão de escritórios com mandados genéricos para apreender documentos de clientes.
Na ocasião, o Ministério da Justiça, para regulamentar a busca e apreensão nos escritórios de advocacia, editou a Portaria 1.288. A portaria, que até hoje serve para orientar o trabalho da Polícia Federal, determina que o fato de o local de busca e apreensão ser um escritório de advocacia “constará expressamente” na representação formulada pela Polícia Federal para expedição do mandato. A autoridade policial responsável pelo cumprimento do mandato comunicará previamente a OAB, que poderá acompanhar a execução da diligência.
Revista Consultor Jurídico