por Eduardo Mahon
Não foi a primeira vez. E não será a última. Novamente, um grupo de juízes federais, procuradores, delegados, faz pressão na mídia contra o Supremo Tribunal Federal, ventilando as hipóteses das mais baixas. A tese é muito simples — “nós, os mocinhos, o povo de bem, estranhamos a atitude do juiz superior dando guarida a criminosos que deviam estar presos”.
A tese é sedutora, comove, encanta e mobiliza o povo contra o próprio Judiciário e sua cúpula. Não é muito inteligente, no entanto, porque a briga intestina de instâncias só causa o abalo de credibilidade sobretudo às inferiores. Incrível que, depois de 20 anos de ditadura, nossa população, instada por uma sedição de primeira instância, ainda pense dessa forma maniqueísta o direito penal. Aliás, como se diz, o povo brasileiro tem uma memória curta para defender o estado policial no qual estamos nos transformando.
Vejamos a questão técnica, primeiro. O banqueiro Daniel Dantas havia sido preso temporariamente, de acordo com os requisitos da Lei 7.960/89, sendo que os crimes investigados estão, de fato, no rol daqueles passíveis de desaguar na segregação. Ocorre que, no bojo da justificativa da requisição pela prisão temporária, já estava uma menção clara à tentativa de suborno (corrupção ativa) contra a autoridade policial, vazada inclusive à imprensa, mais uma vez de forma criminosa e leviana pelos órgãos repressores.
Ademais, o que o delegado federal procurou esconder é que já havia tentado uma prisão preventiva, sem sucesso, com base justamente nesse argumento – a corrupção oferecida. Ou seja, o argumento já era conhecido tanto do delegado, como do procurador e, principalmente, do juiz. Então, não houve qualquer “fato novo” capaz de ensejar uma reconsideração, uma nova decisão, um novo decreto prisional.
O juiz federal de primeira instância, por seu turno, deferiu a medida cautelar de prisão temporária, justificando-a na possibilidade dos indiciados turbarem as investigações que já se estendiam há alguns anos. E, de outro lado, a fim de não se comunicarem entre si, a prisão temporária foi imposta como medida de impedimento da troca de informações que ocasionasse eventualmente manobras jurídicas e desarticulassem as investigações policiais em curso. E, assim, foi presa mais de uma dezena de pessoas que, inclusive, não foram interrogadas imediatamente, deixo-se “de molho” para entrar no jogo psicológico da pressão, do constrangimento, da humilhação, bem típico daquele imposto a cidadãos menos favorecidos, o que é um crime ainda maior.
Errou o juiz federal e acertou o ministro Gilmar Mendes, ainda que esperneie os retrógrados que se comprazem com a prisão dos políticos, dos empresários, enfim, daqueles que são “os tubarões”. E não há qualquer motivo para a banda que retumbe em praça pública diante da teimosia corajosa de Mendes ao se expor publicamente para afirmar o estado democrático de direito. Explico o porquê. Antes da Constituição de 1988, havia a prisão para averiguação, onde o acusado ficava isolado da família e dos advogados por um tempo, até que se decidisse “colaborar” com as investigações. Esse isolamento não foi recepcionado pela Carta Magna, e sim tristemente substituído pela prisão temporária que tem finalidade específica de preservar a coleta de provas.
Ocorre que nada afirma que o banqueiro Daniel Dantas tenha se valido de expedientes que alteraram ou suprimiram provas, tanto que na busca e apreensão realizada pela Polícia Federal, foram encontrados vários dados interessantes para a investigação. Ora, então para que prender? Para que não se comunique intensamente com seu advogado? Para que não possa articular a própria defesa? Para que não comente os fatos com os demais indiciados? Todas essas hipóteses são excessivos rasgos de autoritarismo, incompatíveis com a democracia que duramente conquistamos. Não há qualquer motivação necessária para segregar um cidadão — rico ou pobre — enquanto não se prove concretamente que esteja atrapalhando o curso natural do processo ou depois do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória.
E deixemos bem afirmado. Se na decisão de prisão temporária estava já encartada a suposta corrupção e uma prisão preventiva tinha sido negada justamente por esse fato, é muito evidente que no Habeas Corpus analisado pelo presidente do STF havia o cotejo desses fatos e, por isso, não poderia vir o juiz federal e decretar uma nova segregação baseado exclusivamente nesse argumento. Concluímos que, de fato, desobedeceu ordem judicial o magistrado de primeira instância, considerando que a ordem mandamental também tratou sobre o suposto delito de corrupção, seja direta, seja indiretamente e, finalmente, a nova decisão pela cautela penal valeu-se de argumentos à socapa da outra, pretérita. Tudo nos parece muito irregular, passível não só de repreensão administrativa, processo crime para apurar a desobediência, mas também processo civil de indenização pela prisão arbitrária, respondendo o magistrado individualmente, em conjunto com a União.
Tal “jogada” jurídica que acabou mixando, um verdadeiro malabarismo punitivo da Polícia Federal, quer deliberadamente desprestigiar a maior instituição republicana nacional para, conjuntamente com outras tantas, colocá-la no circuito do desgaste público e, assim, vexá-la para que não afronte os interesses corporativos policiais e ministeriais. A estratégia é bem conhecida, mas com essa trinca de ministros — Gilmar Mendes, Marco Aurélio e Celso de Mello — as coisas não funcionam na pressão.
Deveras, é uma pena que a população mais pobre não tenha o mesmo acesso ao Poder Judiciário. De fato, é uma lástima que comentemos a questão das liberdades civis em casos que envolvam cidadãos de altíssimo poder econômico. É indubitável que o nosso povo precise de maior proteção jurídica e que as tantas prisões arbitrárias pelo país afora sejam vistas com tamanho cuidado como foi o caso do banqueiro Daniel Dantas. Contudo, somente um desavisado, leigo ou mau-intencionado desconhece que inúmeras vezes o Supremo Tribunal Federal julgou leis e decisões inconstitucionais por iniciativa recursal das Defensorias Públicas, atendendo pedidos de acusados sem condições de pagar um bom advogado. Aliás, o controle difuso de constitucionalidade se dá, basicamente, pela atuação corajosa das Defensorias Públicas.
O fato que o Ministro Gilmar Mendes ultrapassou a súmula de barreira, apreciando em sede liminar pedidos já indeferidos em instâncias inferiores. É que também errou o Supremo quando elaborou tal decisão, limitando o acesso ao Poder Judiciário, tanto que inverteu-se a lógica da própria súmula, tantas e tamanhas são as nulidades da decretação de prisões no Brasil. É certo que à população em geral, fica parecendo picuinha a amargar o climainstitucional judiciário: na verdade, é justamente o que querem fazer parecer. Não é verdade, todavia. Malgrado o comportamento pouco simpático de Gilmar Mendes, não fazendo questão de ser popular e ser aplaudido, a teimosia constitucional em conceder o habeas corpus é proporcional à teimosia ilegal de decretar uma prisão injustificada. Sorte a nossa, de todos e não apenas de Daniel Dantas, que o teimoso certo está na teimosia certa, na última instância da teimosia judiciária. É desse tipo de teimosia corajosa que precisamos e não a teimosia da ilegalidade que relega nas prisões cidadãos esquecidos pela sorte por uma persistência do constrangimento, da ilegalidade, da ignorância e da brutalidade.
Na história toda, não só paradigmática a defesa democrática do Supremo, como vinculante. Sim, vinculante ao pobre, ao desassistido, ao despossuído, ao excluído. Não só porque os magistrados de instância singela começam a perceber o posicionamento garantista do STF, como o próprio STF terá de ser coerente com a imediata prestação jurisdicional ao banqueiro. Então, denunciaremos nós de cá de baixo — não só ao banqueiro, mas ao bancário. Não só ao bancário, mas ao endividado. Então, a decisão não vale apenas para Dantas e sim para todos os brasileiros que tantas vezes se vêem constrangidos pelos caprichos policiais e judiciais.
É preciso fortalecer o aparato de defesa público do cidadão com menor capacidade financeira. Mas tal fato não invalida uma boa defesa e não podemos fazer discriminações contra o bom advogado ou em desfavor do réu que tenha condições de arcar com custas de um processo, acompanhado por uma banca de renome e altamente qualificada. O desprestígio de profissionais não significa prestígio de outros, como quer fazer parecer esse ‘discurso da miséria’ que querem fazer imprimir no Brasil. Aliás, não temos que nivelar a prestação jurídica por baixo e sim por cima, pressionando o Poder Judiciário para julgar tão rapidamente, tão acertadamente, com tanto respeito e garantias das causas de grande repercussão, aquelas outras do João Ninguém,sem fama, sem grana e na lama.
Revista Consultor Jurídico