Há juízes em Brasília? – Soltura de Dantas é caso típico de supressão de instância

por Ana Lúcia Amaral e Sérgio Gardenghi Suiama

O advogado de um dos presos da Operação Satiagraha, Alberto Zacharias Toron, publicou neste espaço no último domingo um artigo em defesa do ministro Gilmar Mendes. Disse que Mendes foi vítima de um “covarde e sórdido ataque” e enalteceu a forma “independente e corajosa” com que determinou a soltura de “alguém que calha ser banqueiro”.

Curiosamente, o artigo passa ao largo de uma das mais importantes garantias do devido processo legal, que é a idéia de que todo cidadão tem o direito de ser julgado por um juiz constitucionalmente competente. No nosso direito, as regras estabelecem que, exceto casos de foro especial previstos na Constituição, todos os cidadãos devem ser julgados por um juiz de primeira instância e, contra as decisões deste, podem recorrer a um tribunal de segunda instância.

Se a defesa perder o recurso, pode depois impetrar Habeas Corpus no Superior Tribunal de Justiça. O Supremo Tribunal Federal, órgão presidido pelo ministro Gilmar Mendes, é competente para julgar Habeas Corpus apenas quando a decisão impugnada for do STJ, de outro tribunal superior ou quando o coator ou paciente for autoridade sujeita à jurisdição do STF. O desrespeito a essas regras não prejudica só o acusado, prejudica todo o sistema de Justiça, na medida em que dá margem à violação da imparcialidade do juiz.

Por esse motivo, o STF e o STJ têm centenas de decisões rejeitando o que em “juridiquês” chamamos de “supressão de instância”, isto é, o recurso direto a um tribunal superior sem que a questão tenha sido previamente discutida por um tribunal inferior. O próprio ministro Gilmar, em mais de 30 casos, teve a oportunidade de rejeitar Habeas Corpus impetrados no STF sob o argumento de “supressão de instância”.

Em uma dessas ocasiões, o réu havia sido preso acusado de matar a mulher. O Tribunal de Justiça anulou a decisão da juíza de primeiro grau, mas manteve a prisão. O advogado do caso (coincidentemente, Toron) ajuizou Habeas Corpus no STJ, alegando que seu cliente estava preso havia mais tempo do que deveria. Como essa questão não havia sido anteriormente discutida, o STJ se recusou a examinar o recurso.

Inconformado com a decisão do STJ, o advogado impetrou outro Habeas corpus, agora no STF. O relator do processo, ministro Gilmar Mendes, manteve a decisão do STJ, argumentando que, “de fato, não se encontravam dentre as alegações do recurso o excesso de prazo da prisão preventiva. Desse modo, não havia nenhuma obrigação de o TJ reconhecê-lo. Qualquer manifestação nesse sentido por outro órgão, seja o STJ, seja o STF, caracterizaria supressão de instância, vedada pelo ordenamento jurídico” (HC 82.297-5/SP. A decisão, pública, está no site do STF).

No caso da prisão daquele que “calhou de ser banqueiro”, todavia, o ministro decidiu de forma diferente. Uma reportagem deste ano dizia que Daniel Dantas estava sendo investigado pela PF “em razão de fortes indícios de crimes financeiros”. Com esse fundamento (a reportagem), seus advogados impetraram sucessivos Habeas Corpus para conseguir um “salvo-conduto” ao poderoso cliente.

Nenhuma das ações chegou a ser definitivamente julgada; o mero indeferimento liminar do pedido em uma era causa para a impetração de outro Habeas Corpus em tribunal mais elevado. O STJ, por duas vezes, indeferiu o pedido de liminar formulado pelos advogados. Novo pedido estava pendente no STF quando sobreveio a prisão temporária de Dantas.

O decreto expedido pelo juiz de primeira instância faz referência a fatos que nunca foram debatidos nos três Habeas Corpus anteriores. Portanto, jamais poderia o presidente do STF avaliá-los em uma liminar concedida durante o recesso forense, nem muito menos “pular” a competência do Tribunal Regional Federal e do STJ para decidir sobre a prisão decretada por um juiz de primeira instância.

Igualmente teratológica foi a decisão seguinte, pela qual o presidente do STF avocou a si decidir sobre prisão preventiva de alguém suspeito de tentar corromper o delegado responsável pela investigação. Tal decisão, vale repetir, contraria centenas de outros julgados do STF, inclusive relatados pelo próprio ministro Gilmar. Eventuais atentados às liberdades dos investigados devem ser apurados com rigor, mas não podem servir de pretexto para que o presidente da mais alta corte do país avoque a decisão de soltar liminarmente um cidadão comum que, pelo acaso da fortuna, vem a ser um banqueiro, suspeito de corrupção e lavagem de dinheiro, e não um dos milhares de réus pobres esquecidos pela justiça dos homens nas infectas penitenciárias do Brasil.

[Artigo publicado na Folha de S.Paulo, desta terça-feira, 15 de junho.]

Revista Consultor Jurídico

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