por Fernando Dantas M. Neustein
Tramita na Câmara dos Deputados o projeto de Lei 1.403/07, de autoria do deputado Vinícius de Carvalho (PTdoB-RJ), que altera o artigo 82 do Código de Defesa do Consumidor, conferindo legitimidade a todos os membros do Poder Legislativo — federal, estadual, distrital e municipal — para propositura de ação civil coletiva.
O PL encontra-se na Comissão de Defesa do Consumidor, aguardando parecer do deputado Carlos Sampaio (PSDB-SP). De lá, seguirá à Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania, dispensada a apreciação pelo Plenário caso os pareceres de ambas as comissões coincidam.
É preocupante a iniciativa. O CDC foi criterioso ao estabelecer o rol dos legitimados à propositura das ações civis coletivas, tendo sido democrático o suficiente para permitir o amplo acesso à justiça, sem dar azo aos indesejados riscos do manejo irresponsável dessa poderosa ação judicial.
O rol do CDC compreende o Ministério Público (estadual e federal), os entes políticos da federação, as entidades e órgãos da administração pública (direta e indireta) e as associações civis. Nas palavras de um dos juristas responsáveis pelo anteprojeto do CDC, o rol é o “mais amplo possível”.
Foi nítida a preocupação do CDC de preservar o caráter institucional dessa ação. Evitou-se pessoalizar seus titulares, dada a natureza dos direitos passíveis de tutela mediante esse instrumento — transindividuais e individuais homogêneos. Por isso, são instituições, e não indivíduos, que têm legitimidade para a propositura dessa ação.
Não por acaso, proposta semelhante ao PL 1.403/07 foi discutida na legislatura passada e rejeitada (PL 5.704/05), aprovando-se o substitutivo da Câmara que incluía apenas a Defensoria Pública no rol dos legitimados à propositura da ação civil pública regida pela Lei 7.347/85. Não houve substancial modificação no panorama forense que justifique alterar o entendimento da última legislatura. Ao contrário.
Diante da situação do acúmulo de processos no Judiciário, que só tem se agravado com o passar do tempo, hoje se impõe repensar os instrumentos de acesso à justiça, em vez de pura e simplesmente alargá-los sem avaliar as conseqüências disso aos processos em curso e ao futuro da administração da justiça.
Iniciativas inspiradas no propósito de ampliação do acesso à justiça tendem a ter efeito justamente oposto, obstruindo-a por completo. Na prática, isso cria sensação generalizada de frustração e descrédito nas instituições, prejudicando a jovem democracia brasileira.
A sociedade civil e o Legislativo têm o dever de se ocupar dessa questão, discutindo soluções objetivas que evitem a inviabilização do Poder Judiciário. Propostas que impliquem no aumento substancial de demandas judiciais, desacompanhadas dos meios para atendê-las, só agravarão o problema. O PL 1.403/07 parece se enquadrar nessa hipótese.
Aprovado o PL, mais de 52 mil indivíduos — vereadores, deputados estaduais, federais e senadores — terão legitimidade para o ajuizamento das ações civis coletivas, que certamente surgirão aos montes, nos quatro cantos do país. Isso sem mencionar o risco de motivação eleitoral dessas demandas, apesar dessa ação não ter sido concebida para atender esse propósito, por mais legítimo que ele porventura se afigure.
Ademais, existem óbices de natureza constitucional à aprovação do PL. Nos casos em que pessoas físicas e jurídicas de direito privado figurem como Réus, o Legislativo passaria a fiscalizar indivíduos e empresas, o que é uma distorção do sistema de divisão dos poderes. A função primordial do Poder Legislativo é a de criar leis, e não a de zelar por sua observância.
As atribuições constitucionais do Poder Legislativo são amplas. Além da edição de leis, cabe-lhe convocar autoridades para a prestação de informações, instituir Comissões Parlamentares de Inquérito, realizar audiências públicas com entidades da sociedade civil, dentre outras. Todos esses instrumentos podem ser utilizados em matéria de direito consumidor.
Em suma: apesar de inspirado em louvável propósito, o PL 1.403/07, se aprovado, desfigurará a natureza institucional da ação civil coletiva, acentuará o problema do contingente reprimido de processos no Judiciário, e ainda terá de enfrentar o teste de constitucionalidade que decerto surgirá. Por essas razões, faz-se necessário sensibilizar os parlamentares para a rejeição desse projeto de lei.
Revista Consultor Jurídico