Interpretação das normas – CSS: cumulatividade e constitucionalidade

por Bruno Mattos e Silva

A proposta de criação da CSS decorre de emenda parlamentar na Câmara dos Deputados ao Projeto de Lei Complementar 306, de 2008 (na origem, Projeto de Lei do Senado 121, de 2007 — Complementar). Essa proposição fora aprovada no Senado, sem criar referida contribuição, com objetivo de regulamentar o parágrafo 3º do artigo 198 da Constituição Federal para dispor sobre os valores mínimos a serem aplicados anualmente pela União, estados, Distrito Federal e municípios em ações e serviços públicos de saúde.

Como a CSS ainda não foi aprovada, este trabalho aborda o substitutivo do Deputado Pepe Vargas, que se encontra em vias de aprovação pelo Plenário da Câmara dos Deputados.

O fundamento da criação da CSS é o artigo 195, parágrafo 4º, da Constituição Federal, que estabelece a possibilidade de ser instituída, por meio de lei, contribuição para custeio da seguridade social, que tenha base distinta das anotadas no caput do artigo, desde que observado o disposto no artigo 154, I, da CF, que assim dispõe:

Artigo 154. A União poderá instituir:

I – mediante lei complementar, impostos não previstos no artigo anterior, desde que sejam não-cumulativos e não tenham fato gerador ou base de cálculo próprios dos discriminados nesta Constituição;

Como a proposta de criação da CSS está veiculada em um projeto de lei complementar, a discussão da sua constitucionalidade concentra-se nos seguintes aspectos: o requisito da não-cumulatividade é exigível para as novas contribuições ou só para novos impostos? Caso exigível para as novas contribuições, a CSS é cumulativa? O fato gerador e a base de cálculo da nova contribuição podem ou não ser idênticos aos de outros impostos previstos na Constituição ou de outras contribuições? Ou essa exigência também não é aplicável na hipótese do artigo 195, parágrafo 4º, da CF?

Vejamos cada um desses aspectos de forma separada.

O fato gerador e a base de cálculo da CSS

A exigência de que não exista, para novas contribuições, identidade de base de cálculo e fato gerador com impostos previstos constitucionalmente já foi apreciada pelo Supremo Tribunal Federal, por ocasião do julgamento, em sessão plenária, do Recurso Extraordinário 228.321, em 1º de outubro de 1998. Nesse julgamento foi apreciada a constitucionalidade do artigo 1º, I, da Lei Complementar (LC) 84, de 18 de janeiro de 1996, e o resultado foi no sentido de que a vedação de identidade de base de cálculo e fato gerador com impostos previstos constitucionalmente não se aplica às contribuições criadas com base no artigo 195, parágrafo 4º.

Conforme o voto vitorioso do relator, ministro Carlos Velloso, é na criação de impostos que a vedação deve ser observada com relação a impostos existentes. Porém, quando se criam contribuições, a vedação se aplica em relação a contribuições existentes. Portanto, o STF afirmou que a vedação se aplica às novas contribuições, em relação às contribuições previstas constitucionalmente.

Por outro lado, o STF sofreu significativa mudança na sua composição, razão pela qual esse entendimento pode ser alterado, embora isso seja pouco provável.

Parte da base de cálculo e do fato gerador da CSS coincide com a incidência do Imposto sobre Operações de Crédito, Câmbio e Seguro, ou relativas a Títulos ou Valores Mobiliários (IOF), imposto previsto constitucionalmente. Vale ressaltar que, no precedente mencionado, dois ministros afirmaram expressamente que a vedação da identidade de base de cálculo e fato gerador para novas contribuições se aplicaria também a impostos previstos constitucionalmente. Foram eles o ministro Sepúlveda Pertence, já aposentado, e o ministro Marco Aurélio, ainda membro do STF.

Exigência de não-cumulatividade.

O artigo 154, I, da Constituição é explícito a exigir que novos impostos não sejam cumulativos. Assim, para que se possa sustentar a inconstitucionalidade da CSS, é preciso entender que essa exigência também se aplica às novas contribuições.

Isso pode ser sustentado mediante interpretação gramatical do artigo 195, parágrafo 4º, CF, que expressamente dispõe que as novas contribuições devem atender ao disposto no artigo 154, I, CF, o que incluiria a não-cumulatividade.

Contudo, é possível sustentar que o artigo 154, I, da CF é totalmente dirigido a impostos e não a contribuições. Desse modo, a remissão feita a esse dispositivo pelo artigo 195, parágrafo 4º, da CF seria apenas referente à exigência de lei complementar para criação de novas contribuições para custeio da seguridade social.[1]

Por um lado, o precedente mencionado anteriormente não enfrentou expressamente a questão da necessidade de não-cumulatividade por parte da contribuição criada pela LC 84, de 1996. Desse modo, é possível sustentar que tal precedente não poderia ser tomado como paradigma para análise da constitucionalidade da CSS.

Por outro lado, deflui do precedente que, ao aplicar o artigo 154, I, às contribuições, dever-se-ia, apenas, substituir a palavra ‘impostos’ pela palavra ‘contribuições’ no dispositivo. Esse entendimento reforça, com grande ênfase, a interpretação de que o restante do artigo 154, I, deve ser aplicado às contribuições para o custeio da seguridade social. Afinal, não se justificaria que uma parte do dispositivo se aplicasse e a outra não. Isso significa que a “não-cumulatividade” também seria exigida.

Além disso, o argumento pela inconstitucionalidade da CSS repousa na singeleza da remissão expressa feita pelo artigo 195, parágrafo 4º, ao artigo 154, I, ambos da CF: caso a intenção fosse apenas exigir que novas contribuições sejam criadas por lei complementar, bastaria ao artigo 195, parágrafo 4º afirmar isso e não fazer remissão ao artigo 154, I.

A existência de comutatividade por parte da CSS.

Partindo do pressuposto de que as novas contribuições devam atender a todas as exigências do artigo 154, I, da CF, inclusive quanto à “não-cumulatividade”, é preciso analisar qual o sentido que esse dispositivo deu à expressão “não-cumulativos”, bem como se a CSS, de acordo com esse sentido, é “cumulativa” ou “não-cumulativa”.

O princípio da “não-cumulatividade” é uma simples técnica de tributação, consistente no abatimento ou compensação do que for devido em uma operação com o montante do tributo cobrado nas operações anteriores. Isso é feito diretamente (imposto sobre imposto), no caso do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e do Imposto sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – (ICMS), e indiretamente (base sobre base), no caso da contribuição para o PIS/Pasep e na Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins).

Portanto, “não-cumulatividade” é a não incidência de determinado tributo sobre um fato que já sofreu a incidência desse mesmo tributo em uma operação anterior.

Por um lado, é possível sustentar que a exigência de “não-cumulatividade” somente seria aplicável aos tributos que, por sua natureza, estão necessariamente inseridos dentro de uma cadeia produtiva, como é o caso dos mencionados impostos sobre valor agregado. Não parece ser o caso da CSS, que pode incidir sobre um fato isolado (ex. saque em conta corrente de pessoa física), hipótese em que ela será monofásica, ou simplesmente não incidir dentro de toda a cadeia produtiva (ex. pagamento de insumos ou do produto final mediante papel-moeda). Nesse caso, a CSS não faria parte da cadeia produtiva como elemento necessário ou essencial. Afinal de contas, a hipótese de incidência da CSS não é a transformação ou a circulação de uma mercadoria ou a prestação de um serviço. Sob esse ponto de vista, não se poderia afirmar que a CSS é cumulativa.

Por outro lado, pode-se sustentar que a CSS é cumulativa, uma vez que não há previsão para compensação do tributo que foi pago em razão de operações anteriores. Afinal de contas, os atos que constituem hipótese de incidência da CSS são imperativos da economia moderna, ainda que se possa afirmar que são elementos juridicamente não essenciais ou que apenas se apresentariam vinculados ou ao lado dos atos de transformação ou circulação de mercadoria ou serviços. Como os atos que ensejam pagamento de CSS (hipóteses de incidência) são, na prática, imprescindíveis, o pagamento da CSS agregaria valor às mercadorias ou serviços (tal como o IPI e o ICMS).

Na esmagadora maioria das vezes, a incidência de CSS ocorrerá dentro da atividade econômica organizada, dentro do ciclo produtivo e não em operações isoladas. Desse modo, na cadeia produtiva, a CSS incidirá em cada elo sobre o valor total da mercadoria ou do produto, sem possibilidade de compensação, cada vez que existir uma operação prevista na norma como hipótese de incidência.

Além disso, sempre se entendeu que a antiga CPMF era cumulativa. E tanto é assim que ela foi sucessivamente criada e prorrogada por meio de emenda constitucional e não por meio de lei complementar. É evidente que a CSS é de todo semelhante à CPMF: não se pode dizer que a CPMF é “cumulativa” e a CSS é “não-cumulativa”. Em vista disso, os argumentos de que a CSS é cumulativa acabam sendo mais fortes.

No presente caso, há argumentos a favor e contra a constitucionalidade da CSS, podendo ser escolhida qualquer uma das duas orientações. Parece ser mais fácil sustentar, sob o aspecto técnico, a inconstitucionalidade da CSS, sob afirmação de que ela é cumulativa e que a remissão feita pelo artigo 195, § 4º, ao artigo 154, I, da CF abrange a exigência de que as novas contribuições não sejam cumulativas.

Mas é um mito dizer que somente existe uma “correta” interpretação para as normas jurídicas. Quando um jurista elabora um parecer e aponta uma interpretação de uma norma como a mais “acertada” ou quando um advogado sustenta uma das várias interpretações possíveis a determinada norma como a única ou a mais “adequada”, não há exercício de uma função jurídico-científica, mas sim de uma função jurídico-política: trata-se de uma tentativa de influência sobre a criação do Direito.[2] Assim, se existe mais de uma possibilidade de interpretação de uma norma, sem subversão do sentido das palavras ou da técnica jurídica já consagrada, a escolha por uma ou outra interpretação será discricionária e política (e não jurídica).

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[1] VIANNA, João Ernesto Aragonês. Limitações constitucionais à instituição de contribuições de seguridade social. São Paulo: LTr, 2007, p. 161.

[2] KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1987. p. 370-371.

Revista Consultor Jurídico

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