Interrupção de gestação de anencéfalos: ministro Lewandowski abre divergência

Sexto a votar no julgamento, pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54, o ministro Ricardo Lewandowski divergiu do relator, ministro Marco Aurélio, e votou pela improcedência do pedido formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS) de que o STF fixe entendimento para que a antecipação terapêutica de feto anencefálico não configure crime. Com sua manifestação, o julgamento conta com cinco votos pela procedência da ADPF e um contra, até o momento.

Usurpação de poderes

O voto do ministro Lewandowski seguiu duas linhas de raciocínio. Na primeira, ele destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da chamada interpretação conforme a Constituição, com base na independência e harmonia entre os Poderes. “O STF, à semelhança das demais cortes constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição”, afirmou. Mesmo este papel, segundo seu voto, deve ser exercido com “cerimoniosa parcimônia”, diante do risco de usurpação de poderes atribuídos constitucionalmente aos integrantes do Congresso Nacional. “Não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares eleitos”, ressaltou.

Nesse aspecto, o ministro observou que o Congresso Nacional, “se assim o desejasse”, poderia ter alterado a legislação para incluir os anencéfalos nos casos em que o aborto não é criminalizado, mas até hoje não o fez. O tema, assinalou, é extremamente controvertido, e ambos os lados defendem suas posições com base na dignidade da pessoa humana. “Nosso parlamento se encontra profundamente dividido, refletindo, aliás, a abissal cisão da própria sociedade brasileira em torno da matéria”, disse, acrescentando que pelo menos dois projetos de lei sobre o tema tramitam desde 2004 sem que se tenha chegado a consenso.

Ampliação das possibilidades

O segundo ponto enfatizado pelo ministro Lewandowski foi a possibilidade de que uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne lícita a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina. Citando dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas, Lewandowski ressaltou que existem dezenas de patologias fetais em que as chances de sobrevivência são nulas ou muito pequenas – como acardia (ausência de coração), agenesia renal, hipoplasia pulmonar, atrofia muscular espinhal e outras.

Para o ministro, uma decisão judicial isentando de sanção o aborto de fetos portadores de anencefalia, “ao arrepio da legislação penal vigente”, além de “discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico”, abriria a possibilidade de interrupção da gestação de inúmeros outros casos. “Sem lei devidamente aprovada pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”, afirmou.

Finalmente, o voto destaca a existência de diversos dispositivos legais em vigor que resguardam a vida intrauterina – sobretudo o Código Civil, que, no artigo 2º, estabelece que a lei ponha a salvo, “desde a concepção”, os direitos do nascituro. Tais normas, segundo Lewandowski, também teriam de ser consideradas inconstitucionais ou merecer interpretação conforme a Constituição.

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