Muito se tem discutido quanto ao direito a crédito relativo a impostos incidentes sobre os insumos utilizados na fabricação de produtos isentos ou com a alíquota zero, em razão do princípio constitucional da não-cumulatividade. Duas correntes se formaram a respeito: uma pela existência do direito a crédito, e outra, pela inexistência desse direito. É preciso que a questão seja examinada objetivamente e dentro do sistema jurídico global.
Comecemos pela transcrição das normas constitucionais que versam sobre a matéria nas áreas do IPI e do ICMS:
Art. 153, § 3º: “O imposto previsto no inciso IV [01]
I – será seletivo, em função da essencialidade do produto;
II – será não cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação com o montante cobrado nas anteriores”.
Art. 155, § 2º: “O imposto previsto no inciso II [02] atenderá ao seguinte:
I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal;
II – a isenção ou não incidência, salvo determinação em contrário da legislação:
a)não implicará crédito para compensação com o montante devido nas operações ou prestações seguintes;
b)acarretará a anulação do crédito relativo às operações anteriores”.
Confrontando-se os dois textos verifica-se a absoluta identidade entre o art. 153, § 3º, II e o art. 155, § 2º, I da CF.
A diferença está no inciso II, do § 2º, do art. 155 em que houve a flexibilização do princípio da não-cumulatividade do ICMS, o que não ocorreu em relação ao IPI.
Desde a Emenda Passos Porto, EC nº 23/83, era possível à legislação tributária prescrever a vedação ao crédito e ao seu estorno nas hipóteses de isenção e de não-incidência em uma das etapas de circulação de mercadorias.
Essa Emenda, que permitia o aumento de arrecadação, e ainda permite, por meio de isenção era, na verdade, inconstitucional, por atentar contra princípio constitucional limitador do poder de tributar, portanto, protegido pela cláusula pétrea, por configurar uma garantia fundamental do contribuinte. Aliás, essa Emenda veio à luz para neutralizar a jurisprudência da Corte Suprema que reconhecia o direito a crédito, o que implicou outra inconstitucionalidade por violação do princípio da separação dos Poderes.
Mas, hoje, essa limitação constitucional sofreu restrição pelo constituinte originário, pelo que não se pode objetá-la.
Contudo, em relação ao IPI, a não-cumulatividade é plena. Trata-se de um princípio constitucional tributário, e não de uma mera regra jurídica, cuja observância pela legislação infraconstitucional é impositiva.
E a isenção ou a alíquota zero decorre exatamente da seletividade do IPI em função da essencialidade do produto. Assim, não teria sentido onerar com o produto considerado essencial não se permitindo o crédito do imposto incidente sobre os insumos utilizados.
Objeta-se que sendo isenta a saída do produto, não há oportunidade para compensar o que for devido com o montante cobrado nas operações anteriores. Trata-se, na verdade, de uma interpretação literalista, que não resiste ao exame na matéria à luz do ordenamento jurídico como um todo.
O princípio da não-cumulatividade não é auto-aplicável. Não é possível a cada operação diária (cinco, dez, trinta, cinqüenta etc) efetuar as compensações e recolher o imposto pela diferença a maior. A sua implementação faz-se por meio do mecanismo contábil de crédito e de débito, conforme previsto na legislação tributária.
A legislação dispõe no sentido da apuração periódica do imposto, prescrevendo a escrituração contábil–fiscal das entradas, lançando o crédito do imposto na coluna própria, e a escrituração das saídas, com o lançamento do débito do imposto em outra coluna.
No final do período de apuração far-se-á a soma dos créditos e dos débitos, promovendo a compensação entre eles: a diferença a maior corresponderá ao imposto a ser recolhido; a diferença a menor corresponderá ao crédito a ser transferido para o período seguinte.
Na apuração do ICMS, o crédito do imposto deverá ser estornado na hipótese de saída isenta, o que não acontecerá em relação ao IPI, pois o legislador constituinte não deu ao legislador infraconstitucional a mesma faculdade conferida em relação ao ICMS, como vimos.
Ex positis, o contribuinte do IPI tem o direito de crédito pelos insumos tributados e utilizados na fabricação de produtos isentos.
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Kiyoshi Harada
jurista, professor e especialista em Direito Financeiro e Tributário pela USP