Jeitinho brasileiro – MP que cria novo Ministério da Pesca é inconstitucional

por Simone de Sá Portella

A Medida Provisória 437, editada pelo Presidente da República no dia 30 de julho de 2008, transformou a Secretaria Especial de Aqüicultura e Pesca em Ministério da Pesca e Aqüicultura, e criou 150 cargos em comissão do grupo de direção e assessoramento superiores (DAS) para serem preenchidos no novo Ministério. Além disso, estatuiu outros cargos da mesma natureza para exercício em outros órgãos. Assim ao todo são: 66 cargos na Secretaria Especial de Direitos Humanos; 12 no Ministério da Fazenda; 16 no Ministério da Integração Nacional; oito no Ministério da Saúde; oito no Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; oito funções gratificadas no Banco Central; e 27 gratificações de representação na Secretaria Especial dos Direitos Humanos.

Nesse sentido, há de se tecer algumas considerações sobre a constitucionalidade da Medida Provisória 437.

O artigo 62 da Constituição Federal determina como pressupostos necessários para a edição de medida provisória, a relevância e a urgência.

Em regra, a análise da existência de relevância e urgência cabe ao Chefe do Poder Executivo, sendo um ato de natureza política e discricionária. Não obstante, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, passou a admitir o controle judicial dos pressupostos da medida provisória quando houver manifesto abuso institucional do poder de legislar, de modo a afetar o princípio da separação de poderes, tendo em vista que a produção normativa é atribuição típica do Poder Legislativo Nesse sentido, além de outros precedentes, cite-se a ADI/MC 2.213, julgada em 04/04/2002, relator Ministro Celso de Mello :

“A possibilidade de controle jurisdicional, mesmo sendo excepcional, apóia-se na necessidade de impedir que o Presidente da República, ao editar medidas provisórias, incida em excesso de poder ou em situação de manifesto abuso institucional, pois o sistema de limitação de poderes não permite que práticas governamentais abusivas venham a prevalecer sobre os postulados constitucionais que informam a concepção democrática de Poder e de Estado, especialmente naquelas hipóteses em que se registrar o exercício anômalo e arbitrário das funções estatais”.

Assim sendo, admite-se que há necessidade de um controle judicial das edições de medidas provisórias pelo Presidente da República, pois do contrário, este seria um ditador, capaz de impor sua vontade ao alvedrio da responsabilidade com a sociedade, atitude esta que não se compatibiliza com a de um ocupante de mandato eletivo, que teve no voto popular a sua legitimidade.

Nesse sentido, verifica-se pela leitura da exposição de motivos da medida provisória 437 , nas partes da transformação da Secretaria em Ministério, e na criação de cargos, que não se encontram presentes os pressupostos da relevância e da urgência. Ao contrário, pode-se perfeitamente esperar o trâmite normal do processo legislativo ordinário no Congresso Nacional para a consecução desses projetos.

É de todo absurdo se pensar que, para a criação de elevado número de cargos, todos a serem preenchidos por indicação política, há “relevância e urgência”. Releva-se, ainda, que, para exercício de cargo em comissão não se exige concurso público (artigo 37, II, da CF). Dessa forma, não há nenhuma dúvida de que a referida MP está eivada de vício de inconstitucionalidade.

Mas não é apenas nesse ponto que há inconstitucionalidade, posto que para a criação de órgãos, Ministérios, cargos públicos, e aumento de remuneração e estrutura do funcionalismo no âmbito do Poder Executivo, há necessidade de lei de iniciativa do Presidente da República (artigo 61, parágrafo 1º, II, alíneas a, e, da CF).

É certo que, quanto a este último aspecto pode suscitar dúvidas na doutrina se seria possível uma medida provisória substituir a lei, pois a edição daquela é de atribuição privativa do Chefe do Poder Executivo, de modo que estaria satisfeito o pressuposto formal da iniciativa do Presidente da República. Além disso, as medidas provisórias são dotadas de eficácia legal.

Não obstante, tal entendimento não merece respaldo, pois não foi essa a intenção do constituinte originário. As normas de processo legislativo devem ser respeitadas, e só devem ceder quando existirem exceções expressas na própria Carta Magna. Só há duas: a lei delegada (artigo 68, da CF) e a medida provisória (artigo 62, da CF).

Para a utilização de lei delegada é preciso haver prévia autorização do Congresso Nacional por Resolução (parágrafo 2º, do artigo 68, da CF); e para a edição de medida provisória são necessários os pressupostos da relevância e da urgência, já mencionados.

Ressalte-se que, o STF tem sido bem rigoroso quanto à análise da inconstitucionalidade formal, tendo reiteradas vezes, declarado a inconstitucionalidade de leis que criam órgãos públicos, cargos, remunerações, por lei de iniciativa do Legislativo, sendo enfático quanto à necessidade de respeito ao artigo 61, parágrafo 1º, II, no que tange à reserva de lei, de iniciativa do Chefe do Poder Executivo.

Deve-se observar, ainda, que os cargos criados não são de provimento efetivo, e sim, de provimento em comissão, que não exigem prévia aprovação em concurso público (artigo 37, da CF). A Constituição prevê no inciso V, do artigo 37, que os cargos em comissão e as funções de confiança destinam-se apenas às atribuições de direção, chefia e assessoramento. É de se estranhar que, para a transformação de uma Secretaria em Ministério seja necessário criar tantos cargos com essas atribuições. Se não bastasse, também foram criados vários cargos de DAS em outros Ministérios e órgãos.

A lógica nos leva a concluir que, os cargos criados têm finalidade eleitoreira, para beneficiar os “amigos do governo”. Muitos diriam que isso é necessário, porque se não houver concessão de benefícios não se consegue apoio para governar. Mas, essa prática não se coaduna com os princípios constitucionais administrativos inseridos no artigo 37, caput, da CF, mais especificamente os da moralidade e da impessoalidade.

O princípio da moralidade obriga que o Administrador Público seja honesto em todas as suas condutas. E honestidade não se compatibiliza com privilégios a pessoas determinadas.

O princípio da impessoalidade exige que se respeite à isonomia entre as pessoas, e proíbe condutas que visem beneficiar terceiros apadrinhados. Toda a finalidade da Administração Pública visa atingir o interesse público, sendo vedados os atos que importem privilégios a alguns, em detrimento do interesse de toda a coletividade.

Assim sendo, tendo em vista o privilégio concedido para a nomeação desses cargos, e pela desnecessidade dos mesmos, eis que são funções que deveriam ser preenchidas por concurso público, há outro vício de inconstitucionalidade na MP 437, consistente na violação aos princípios da impessoalidade e da moralidade.

Uma outra questão a se considerar é o impacto orçamentário de R$ 8,5 milhões anuais, que custarão aos cofres públicos para a criação dos aludidos cargos comissionados. A mensagem de justificação da MP 437 informa que há dotação orçamentária, mas não diz se houve autorização na Lei de Diretrizes Orçamentárias para a criação dos cargos, conforme determina o artigo 169, II, da CF. Sendo assim, verifica-se mais um vício de inconstitucionalidade.

Mas não é só isso. O artigo 169, da CF, determina que “A despesa com pessoal ativo e inativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios não poderá exceder os limites estabelecidos em lei complementar”. A lei complementar a que se refere é a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/2000).

Assim sendo, se não forem obedecidos os limites estabelecidos na LC 101/2000 a União não poderá criar cargos públicos. E para se tomar conhecimento desses limites, a Administração Pública Federal deve especificar concretamente as verbas previstas no orçamento e sua destinação, bem como informar se há a autorização na Lei de Diretrizes Orçamentárias. Do contrário, não há como se saber, e aí se verifica vício da transparência fiscal, derivada do princípio constitucional da publicidade, inserido no artigo 37, caput, da CF.

Assim sendo, na parte que tange à transformação da Secretaria em Ministério, e na criação de cargos comissionados e funções de gratificação, a Medida provisória 437 está eivada de inconstitucionalidade. Urge, portanto, que seja ajuizada ação direta de inconstitucionalidade, por um dos legitimados no rol do artigo 103, da CF.

Revista Consultor Jurídico

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