Jogadora compulsiva deve continuar prestando caução para receber pensão alimentícia

Consumidora do Rio Grande do Sul que alega ter adquirido compulsão para o jogo, após ingestão de medicamento, deve continuar prestando caução em favor da empresa fabricante do remédio, a qual lhe paga pensão mensal determinada por liminar. A conclusão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao lembrar que a obrigação alimentar é irrepetível (não deve ser devolvida).

“Mas o processo civil deve ser campo de distribuição de justiça, não terreno de oportunidades”, salientou a relatora do caso, ministra Nancy Andrighi, ao votar. Segundo observou, o montante que deverá ser considerado irrepetível ao final do processo, na hipótese de julgamento de improcedência, deve ser exclusivamente o valor pago para a subsistência digna da autora da ação, conforme demonstrarem as provas do processo.

A questão teve início quando a consumidora entrou com ação de indenização por danos materiais e morais contra o laboratório. Segundo afirmou, trabalhou por toda a vida como advogada ou assessora em tribunais superiores ou órgãos da administração pública, tendo construído significativo patrimônio. Segundo a defesa, no final dos anos 90, desenvolveu doença de Parkinson, tendo sido submetida a tratamento que envolvia, entre outras medicações, a administração de medicamento distribuído pela empresa-ré.

Segundo o advogado, pouco mais de um ano após o início do tratamento com essa substância, a autora teria desenvolvido compulsão patológica para o jogo, tendo perdido parcela substancial de seu patrimônio em decorrência disso, além de ter ficado impossibilitada de trabalhar.

Após anos sofrendo sem estabelecer relação entre o problema e a medicação que tomava, pois a bula não descrevia tal circunstância, informou o fato à neurologista. Segundo informações do processo, a médica, em pesquisa sobre o tema, constatou a existência de casos semelhantes, indicando relação direta entre a administração do remédio e o jogo compulsivo, e ordenou-lhe a suspensão, tendo desaparecido a compulsão. Na ação, requereu, em tutela antecipada, o pagamento de pensão alimentícia mensal.

Culpa dos bingos

Em sua defesa, a empresa afirmou que a responsabilidade pelos prejuízos experimentados pela autora em decorrência do jogo compulsivo deve ser imputada às casas de bingo. Além disso, sustentou não haver nexo causal entre a compulsão desenvolvida pela autora e o remédio, ponderando que, além de ter desenvolvido a patologia mais de um ano após o início de seu tratamento, não há estudos conclusivos sobre o potencial do medicamento para provocar compulsão para o jogo.

Afirmou também que o aumento da dose, recomendado pelo médico, sem correspondente redução de outra medicação, à base de Lovodopa, pode ter contribuído para o problema. Disse que a compulsão desenvolvida e os danos disso decorrentes não são efeitos diretos e imediatos da administração do medicamento. Sustentou a existência de culpa exclusiva da vítima e pediu a improcedência do pedido.

A tutela antecipada foi deferida, tendo o juiz fixado a pensão alimentícia em R$ 3.660,00. Posteriormente, a pensão foi majorada para R$ 7.500,00 pelo juízo de primeiro grau. Após perícia, a empresa pediu a revogação da antecipação de tutela, alegando que a autora contou ao perito haver retornado ao trabalho após o desaparecimento dos sintomas do jogo patológico que a acometiam. Requereu, também, caso fosse mantido o pensionamento mensal, a elevação do valor da caução prestada pela autora, já que os pagamentos superavam o valor do bem oferecido.

O juiz de primeiro grau acolheu parcialmente o pedido da empresa, para reduzir a pensão. Segundo observou, a pensão fora fixada por dois motivos: primeiro, por força do afastamento da autora de suas atividades profissionais; segundo, pela redução patrimonial a que foi conduzida pelo jogo patológico. Para o magistrado, se ela retornou às funções como advogada, um desses fundamentos desapareceu, mas não o outro, de modo que a pensão deveria ser reduzida a R$ 3.600,00.

Caução

No entanto, o juiz não apenas rejeitou o pedido para aumentar a caução, como declarou sua desnecessidade. Segundo afirmou, a redução patrimonial da autora a impossibilitaria de elevar as garantias ofertadas. E, sendo alimentar a verba paga por força da antecipação de tutela, a quantia seria irrepetível, tornando desnecessária a garantia. A empresa protestou, mas a decisão foi mantida.

“Os alimentos são irrepetíveis, de modo que, mesmo que improcedente a demanda, o valor pago a este título não será restituído, não havendo motivo para que seja prestada caução”, considerou o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS). No recurso para o STJ, o fabricante alegou violação dos artigos 273, caput e inciso I; 273, parágrafo 2º; 475-O, inciso III, e 557, todos do Código de Processo Civil.

A Terceira Turma deu parcial provimento ao recurso da empresa. “A regra da irrepetibilidade, como corolário do princípio da dignidade da pessoa humana, deve prevalecer sobre o princípio processual da impossibilidade de que um processo corra em prejuízo da parte a quem, ao final, eventualmente se dê razão”, afirmou a ministra Nancy Andrighi. “Ainda que eventuais prejuízos sejam causados ao réu, pela prestação de uma pensão injusta, a importância da proteção da subsistência ao autor menos favorecido justifica a assunção de tal risco”, acrescentou.

Cautela redobrada

Nancy Andrighi ressaltou que, justamente por força da irrepetibilidade dos alimentos, é muito importante o Judiciário agir com redobrada cautela ao fixar, por antecipação dos efeitos da tutela jurisdicional, uma obrigação alimentar. “Não apenas o valor fixado deve representar tão somente o imprescindível à sobrevivência digna do alimentando mas também, em situações nas quais os alimentos decorram de uma obrigação de natureza civil (e não de uma relação familiar), deve-se ter redobrada cautela ao apurar a verossimilhança das alegações da parte autora”, considerou. Segundo o processo, a consumidora é solteira e não tem filhos.

A relatora observou ainda que, pelos termos utilizados pelo TJRS ao fixar a pensão, a tutela antecipada adquiriu natureza híbrida, ora garantindo a necessidade de subsistência da autora da ação, ora representando mera antecipação da indenização por dano material cujo pagamento eventualmente poderá ser determinado ao final do processo.

“Essa natureza híbrida se reforçou quando a tutela antecipada foi mantida não obstante a comprovação do retorno da autora às suas atividades profissionais, e também pelo montante fixado a título de pensão mensal na maior parte do tempo em que esteve vigente a obrigação: R$ 7.500,00”, observou.

Ao votar pelo parcial provimento do recurso da empresa, a ministra afirmou que “o montante que deverá ser considerado irrepetível ao final do processo, na hipótese de julgamento de improcedência, deve ser exclusivamente o valor pago para a subsistência digna da autora da ação, conforme demonstrarem as provas”.

Determinar a irrepetibilidade a qualquer montante que supere esse valor, acrescentou a relatora, implicaria causar injustificado prejuízo à empresa, caso seja reconhecido, ao final da demanda, que ela tinha razão. “Por esse motivo, a caução determinada deve ser mantida, ainda que o respectivo valor não seja majorado”, concluiu Nancy Andrighi.

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