Um acontecimento inusitado ontem no TJRS: uma apelação de uma portadora de deficiência auditiva foi julgada mediante acompanhamento por uma intérprete de Libras disponibilizada pelo próprio tribunal.
Não bastasse o inusitado fato, o mérito da causa também desperta interesse dos operadores do Direito.
A apelante é impetrante de um mandado de segurança distribuído à 11ª Vara da Fazenda Pública do Foro Regional do Partenon, em Porto Alegre (RS), no qual requer a disponibilização, pelo Detran/RS, ou a permissão para contratar, de um intérprete de Libras (Lingua Brasileira de Sinais) para a realização de provas para a obtenção de habilitação para dirigir.
Por possuir deficiência auditiva (surdez neurossensorial profunda bilateral), a impetrante diz necessitar do auxílio, pois a Libras apresenta gramática e estrutura próprias, diferentes das da língua portuguesa, o que lhe dificulta a realização do exame teórico.
Em primeiro grau, após parecer do Ministério Público de primeiro grau pela denegação da segurança, o juiz Sérgio Luiz Grassi Beck proferiu sentença de improcedência do pedido, fundada na obrigação legal de o condutor de veículo saber ler e escrever, requisito este que atua em favor da segurança do trânsito.
Ainda segundo o juiz de primeiro grau, algumas limitações devem ser respeitadas, sob pena de se colocar a coletividade em risco. Ademais, entendeu o magistrado que a tradução da prova privilegiaria a impetrante em relação a analfabetos, que não podem se valer de outra pessoa que leia as provas por eles.
Para o juiz Beck, a impetrante deveria submeter-se ao exame teórico conforme a Ordem de Serviço n.
03/2008 – que prevê a disponibilização de intérprete apenas nas partes inicial e final do exame teórico – ou aguardar a implementação de medidas de adaptação que estão sendo desenvolvidas pelo Detran.
Inconformada com a sentença, a impetrante apelou ao TJRS, tendo seu recurso distribuído à relatoria da desembargadora Denise Oliveira Cezar, da 2ª Câmara Cível.
Antes do julgamento da apelação na sessão de ontem (10), momentos de tensão: a intérprete convocada pelo tribunal atrasou-se, criando enorme expectativa à impetrante, familiares e advogado que se encontravam no recinto à espera da decisão.
Usando de bom senso, o presidente da Câmara, desembargador Arno Werlang, ponderou que, embora o tribunal não estivesse obrigado a fornecer intérprete de Libras, o início do julgamento da apelação da jovem impetrante deveria aguardar que outros processos fossem julgados antes – apesar da preferência cronológica -, dando, assim, tempo para que a profissional chega-se ao local.
Após o julgamento de alguns processos que “passaram à frente na fila” da sessão, finalmente adentrou na sala a tão aguardada intérprete, para a satisfação de todos que ali estavam.
A intérprete postou-se de pé, à esquerda da secretária da Câmara e, perante todos os assistentes, iniciou o seu trabalho de transportar à apelante o entendimento de tudo o que era falado sobre o seu processo.
Iniciou a relatora por ler o relatório da apelação, passando-se, em seguida, à sustentação oral proferida pelo advogado Alexandre Caetano Pereira.
Em suas alegações, o procurador lembrou que há casos de deficientes auditivos habilitados para dirigir automóveis, não havendo distinção com relação ao caso do estrangeiro que dirige fora do país sem ter que comprovar proficiência na língua estrangeira.
Segundo o advogado, não haveria privilégio á impetrante na autorização pretendida, pois cidadãos desiguais devem ser tratados de forma desigual, principalmente porque a apelante saber ler português, tendo dificuldades apenas para compreender a estrutura gramatical da língua, distinta da da Libras.
Disse, ainda, que as aulas de formação de condutores podem ser acompanhadas por familiares de portadores de deficiência auditiva ou por intérprete, devendo a autoridade prover as necessárias adaptações para que o mesmo ocorra durante os exames teóricos, não podendo o cidadão aguardar a demora da regulamentação.
Detalhe enfatizado pelo advogado: a impetrante tem os conhecimentos exigidos para dirigir, tendo sido aprovada nas fases aplicadas até então, apenas tendo dificuldade de acesso às questões teóricas.
Passada a palavra ao Ministério Público de segundo grau, a procuradora de Justiça Maria Loreni Cargnelutti, um momento de forte emoção: após exarar seu parecer pelo provimento da apelação, a procuradora foi às lágrimas dizendo entender o drama por que passa a impetrante, quase sem conseguir proferir suas palavras.
A procuradora Maria Loreni observou que a impetrante duas linguagens – Libras e português – e fez uma comparação consigo própria, revelando não compreender o que dizia a intérprete que ali, ao lado, desempenhava a sua função.
No seu entendimento, é “fora de propósito” cercear o direito da impetrante.
A relatora inaugurou a votação pelo provimento do apelo. Explicou que o Poder Publico dele garantir formas de apoio e uso da Libras em suas instâncias e referiu que, ao consultar o saite do DETRAN/RS na Internet, descobriu que já foram cadastrados intérpretes para atuar junto a postulantes portadores de deficiência auditiva.
Há, segundo a desembargadora, direito líquido e certo a sustentar a determinação de realização dos exames teóricos pela impetrante com o auxílio de intérprete profissional, como “concretização do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana”, pois a autoridade possui condições de prover condições para que tal se realize.
A desembargadora Denise ainda louvou a atitude da apelante de postular seu direito em Juízo, “abrindo portas a outras pessoas coma mesma dificuldade”, prestando um “serviço à sociedade”.
Por sua vez, o presidente, desembargador Arno Werlang, ressaltou o esforço em providenciar uma intérprete para propiciar que a apelante pudesse entender o julgamento e, abominando a “burocracia”, acompanhou a relatora.
Ao final, a desembargadora Sandra Brisolara Medeiros ratificou o voto condutor e parabenizou a autora pela sua postura de buscar seu direito em Juízo. “Uma deficiência não pode impedir o exercício de um direito”, asseverou.
Assim, provida a apelação com todas as manifestações orais transmitidas à apelante por meio da
intérprete de Libras, viveu ontem o TJRS mais um capítulo apreciável na sua rica história de julgamentos memoráveis. Antes mesmo de iniciar o julgamento, o desembargador presidente já concitava os estudantes que ali estavam a permanecer na sala para testemunhar um fato diferente jamais antes experimentado pelo próprio magistrado de tantos anos de carreira.
O acórdão ainda não foi publicado. (Proc. n. 70037154853).