Legislar por oportunismo – Lei Seca irá se esvaziar por causa de sua inocuidade

por Juan Ygnacio Koffler Anazco

Não é de hoje que o cidadão brasileiro se defronta, não raro intempestivamente, com a promulgação de normas legais no mínimo discutíveis, mormente quando constatamos que são elaboradas “a toque de caixa” e com fulcro oportunista. Em outras palavras, o nosso legislador tem o deplorável costume de ‘costurar’ leis de acordo com várias vertentes: interesses de grupos, clamor social, oportunismo, politicagem e por ai afora.

Às vezes, certas normas são elaboradas e impostas sem qualquer prévia preparação da sociedade aos seus ditames e potenciais efeitos, causando tumulto, confusão e prejuízos de várias espécies e distintas montas. Este é o caso, apenas para destacar o mais recente e polêmico, da Lei 11.705, de 19 de junho de 2008 — a famigerada “Lei Seca” ou “Álcool zero”. Embora valha fazer constar, desde já — e para evitar os ‘ataques’ de pretensos defensores da moralidade social –, que não questionamos o problema que envolve dita norma, ou seja, a alcoolemia de motoristas, mas sim sua maneira intempestiva, abusiva e sem critérios claros com que se redigiu, votou e sancionou tal ditame.

Ressalvada esta questão, o caso é que esse processo iniciou com a tão decantada MP 415, que proibia a venda e o consumo de bebida alcoólica em todas as rodovias do País. Da noite para o dia, todos os estabelecimentos situados sobre rodovias federais tiveram (em tese) que retirar de suas prateleiras todo o estoque de bebidas alcoólicas à venda, bem como passaram a se abster (também em tese) da venda no balcão para seu consumo, sob pena de pesada multa – o velho ‘terror’, argumento típico de sistemas autoritaristas.

Veja bem, caro leitor: em momento algum, o legislador sequer imaginou o trabalho imposto e inesperado de fazer movimentação de estoques de produtos assim qualificados, por parte dos empreendedores proprietários desse tipo de estabelecimento — que, diga-se de passo, existem aos milhares. Tampouco imaginou o prejuízo econômico causado a esses empresários, uma vez que a proibição (de exposição e de venda) requeria seu desaparecimento do estabelecimento, não obstante fosse um produto adquirido legalmente e estocado em função de cálculos do binômio oferta x demanda. Primeiro grande erro de visão e de estratégia, típico de um sistema governamental oportunista e que parece legislar ao acaso.

Ditos estabelecimentos passaram a ostentar, no outro dia — e sob o ‘terrorismo’ da penalização, com multa de R$ 1.500 — inúmeros avisos dando conta da proibição, a fim de conscientizar a população usuária, que tampouco é pouca. É óbvio que, na prática, certas casas tradicionais e de grande porte, situadas à beira das rodovias federais, sequer piscaram para o mandamento — nem foram importunadas pela PRF, em sua nova tarefa de fiscalizar a atenção à norma, já que seria humanamente impossível realizar tal intento, sem deixar escapar um estabelecimento. Afinal, o efetivo da PRF não foi dimensionado para tal e, mais a mais, não é pouco o trabalho que devem executar, com tão parca equipe, no tocante ao atendimento de acidentes e penalização de infrações. Segundo grande erro: normalizar sem prever a viabilidade de aplicação da norma.

Passado o primeiro momento de apreensão, elevaram-se vozes em toda a nação condenando tal medida — com justa razão e como seria de se esperar; afinal, vivemos (pelo menos, supostamente) numa democracia de livre mercado. Não porque alguém, em sã consciência, pudesse atacá-la — pois que, em seu cerne, é mais do que salutar, como já salientamos –, mas sim pela inviabilidade de, intempestivamente, impor-se aos empresários toda uma reformulação dos seus negócios; isto sem contar os indefectíveis e desgastantes confrontos que devem ter ocorrido entre usuários truculentos e ignaros (comuns, em nossa sociedade), e pasmos e impotentes atendentes, gerentes e donos de estabelecimentos, graças à incompetência e ignorância legislativa.

Num segundo momento e diante dos reclamos generalizados, o próprio Legislativo que acolhera a discutível MP, teve que revisar sua posição e voltar atrás – aliás, isso é comum em nosso País, pois legislar (seja em nível municipal, estadual ou federal) aparentemente funciona sob a égide do princípio: “se colar, colou; se não colar, muda-se e pronto”, algo parecido com a outra deprimente prática do “achismo”. Ou seja, se o engodo é deglutido pela sociedade (mesmo que contenha algo antiético ou imoral), fica como está; se a gritaria é muita, corrige-se e pedem-se desculpas (quando se pede, o que, saliente-se, é bastante difícil, senão impossível).

Em fase a essa revisão, no dia 20 de maio do corrente o Senado aprovou a liberação da venda de bebidas alcoólicas em todas as rodovias do País. A desculpa para tal incômoda reviravolta? “O foco da lei tem de ser o motorista. A proposta inicial era bem intencionada (sic), mas provocou conflitos e embaraços”, sustentou em defesa da infame trapalhada o líder do governo no Senado, Romero Jucá (PMDB-RR). Lá foi o coitado do empresário readequar, novamente, seu estabelecimento. Afinal, os incômodos estão longe de sensibilizar o governo em Brasília, como se este se localizasse noutro país – não só nestes casos, como em incontáveis outros.

Em 20 de junho de 2008 (portanto, um mês depois), é então aprovada a Lei 11.705, cujo teor altera a Lei 9.503/97, que institui o Código de Trânsito Brasileiro, ademais da Lei 9.294/96, “que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígeros, bebidas alcoólicas, medicamentos, terapias e defensivos agrícolas, nos termos do § 4o do artigo 220 da Constituição Federal, para inibir o consumo de bebida alcoólica por condutor de veículo automotor, e dá outras providências”. O processo de terror voltou a reinar, mas agora, de maneira mais incisiva, desconexa e claramente embasada em fundamentos discutíveis, em razão do seu escopo. Terceiro grande erro: o famigerado “remendo” normativo, usual à prática legislativa.

Por que tais fundamentos parecem discutíveis? Ora, por várias razões:

(a) Da noite para o dia, o tão decantado ‘canetaço’ presidencial sanciona a supracitada norma legal, num verdadeiro processo de “caça às bruxas”, pois, antes como agora, dito texto vira do avesso o sistema de vida social, impondo pesada punição a toda a sociedade, quando é mais do que sabido que o número de acidentes em decorrência de alcoolemia é desprezível, diante daqueles derivados do uso de drogas (os famosos “rebites” dos caminhoneiros, por exemplo), de imprudência e imperícia (veja-se o escândalo que é a concessão de CNHs sem a devida preparação, através de um curso inócuo e de um exame mais inócuo ainda), de irresponsabilidade criminosa (a falta de educação dos jovens no trânsito, associada ao descaso dos pais e ao modus vivendi propiciador às aventuras noturnas e que passam, historicamente, incólumes diante de uma passiva atuação dos órgãos de segurança pública e de trânsito) etc.

(b) De repente, não mais que de repente, a fraca atividade da PM, da PRF e das Guardas Municipais de Trânsito se inverte em todo o território federal e, como quando da MP 415, a fiscalização, por um milagre, se multiplica e sai às ruas penalizar “gregos e troianos”. Um simples bombom de licor detecta o ‘perigoso’ infrator e submete-o ao mais exemplar vexame de ser instado a ficar em posição de meliante (“abra as pernas, braços esticados sobre o capô do carro”), diante das sedentas câmeras de TV e máquinas fotográficas da imprensa sensacionalista, pronta a ser a primeira a dar ‘o furo’. Enquanto isso, a droga consumida corre solta, os crimes hediondos se multiplicam, os subterfúgios legais continuam a liberar marginais sabidamente contumazes no crime e por ai afora. Aquele pai que foi ao casamento da filha e, merecidamente, o festejou bebendo alguns cálices de champanha pode estar seriamente comprometido em sua fama de trabalhador honesto, cumpridor das leis, pagador de impostos. O executivo, depois de um exaustivo dia de trabalho, ao fazer um ‘happy hour’ com seus colegas num shopping (costume mais do que arraigado em nossa sociedade, assim como em tantas outras do mundo democrático), estará correndo sério risco de ser preso por ter ultrapassado o nível da “Lei Seca”: 0,1 miligramas de álcool por litro de ar (ou o equivalente a aproximadamente um cálice de vinho), tendo sua CNH suspensa por um ano e pagando a ‘insignificante’ multa de R$ 952. A incauta dona de casa, que se reúne quinzenalmente com as amigas para um momento de relax e de bate-papo, quando consomem um litro de vinho ou algumas caipirinhas, corre similar risco de ser detida numa blitz e passar por todos esses vexames (em quanto a marginalia anda livre, leve e solta, assaltando, estuprando, matando ao bel-prazer). Que se dirá, então, de festas nacionais tradicionais (como o carnaval, a oktoberfest e todas as festas de outubro que caracterizam o nosso Vale do Itajaí, apenas para citar um par de exemplos), quando dita norma legal se torna impraticável, ou então, ditas festas perdem seu principal atrativo (a bebida). Ou seja, cancelam-se, por decreto, tais festividades, ou o governo vai criar um exército de fiscais à espera dos alegres festeiros que, alta madrugada, retornam aos seus lares ‘encharcados’ de álcool?

Em sã consciência, caro leitor, você acredita nisso? Quantos irão ser penalizados? 0,0000000001%? Acho que esse percentual ainda é muito elevado. É, em verdade, um ‘jogo de roleta russa’.

(c) Doravante e segundo os ditames bizarros desta lei, se você quiser beber (seja qual for o objetivo), deverá: (i) ou pegar um táxi (o que, nalguns centros, é temerário, pois poderá ser assaltado ou assassinado pelo motorista); neste caso, haverá a necessidade de se multiplicar aos milhares o número atual de táxis, em base a uma demanda extremamente superior à oferta; (ii) ou contratar um motorista particular (coisa que hoje e sempre foi benesse apenas de políticos e empresários de elevado calibre); (iii) ou combinar com seu grupo (se é que você não for beber sozinho, apenas para afogar uma mágoa) que a nova norma é um não beber para estar apto a conduzir; se o grupo for grande, coitado desse um, pois terá que fazer inúmeras viagens até poder deitar em sua cama (correndo o risco de ser escorraçada por sua nobre consorte, altas horas da matina); (iv) ou, caso ainda seja em grupo, alugar uma van (a um custo exorbitante e também demandando que, da noite para o dia, as locadoras multipliquem milagrosamente o número de suas vans), para poder fazer um simples drink de final de tarde; (v) ou… não beber, simplesmente. Daí o nome da lei: “Lei Seca” ou “Álcool Zero”. Voltamos aos anos 30 do século passado, em meio aos tenebrosos confrontos entre chefões da máfia norte-americana, só que com uma grande diferença: o problema, naqueles anos de chumbo, não era o trânsito, mas sim o contrabando de bebidas – graças às manipulações político-policialescas corriqueiras que, historicamente, comandam o bas-fond da sociedade.

(d) Quando começarem a ‘pipocar’ os novos reclamos e muitos destes advierem de ‘figuras importantes’ da sociedade nacional, a exemplo do que ocorreu com a gênese desta lei – a MP 415 –, teremos, então, um progressivo arrefecimento dessa onda desvairada de blitze por todo o País, devidamente antecedida por uma enxurrada de processos de dano moral e material entulhando a já assoberbada e lerda justiça brasileira. Como em incontáveis casos de normas anteriormente sancionadas, em base oportunista, a carnificina no trânsito retornará aos seus níveis ‘normais’ e, pior que isso, poderá até aumentar, diante da permanência renitente de problemas como: ausência de efetivo policial nas ruas; fragilidade dos critérios para concessão de CNHs; manipulações políticas espúrias para o benefício de alguns; e assim por diante.

(e) Mas, reforçando ainda o oportunismo e inocuidade da lei em comento, caberia lembrar que o povo tem memória curta. Eis uma premissa que bem representa a nossa sociedade. Se não, vejamos: alguém lembra da imposição legal do porte, nos veículos, do famoso “kit de pronto-socorro”? Então como agora, o ‘terror’ correu entre os motoristas, pois quem não tivesse o tal kit, era admoestado e multado severamente. E onde andam esses kits? Quem os possui, hoje? Lembram também das normas (e conseqüente ‘caça às bruxas’) impostas para o uso de películas nos vidros dos veículos? (hoje há um número incontável de veículos com películas que nada deixam ver em seu interior, mas continuam circulando livre e impunemente). Ou do indevido rebaixamento de suspensão? Ou do excessivo som automotivo (válido até hoje, mas que ninguém respeita e, muito menos, a força policial reprime)? Já que a ordem é controlar e punir, quem, por acaso, controla a velocidade assassina de caminhões de grande porte, que circulam nas rodovias (federais e estaduais) a mais de 120 km/hora? Que ultrapassam em faixa dupla e abusam do poder que lhes confere o tamanho e o peso, matando e alijando sem que nada ocorra com seus irresponsáveis motoristas (salvo raríssimos casos de flagrante)? Quem inibe e pune os abusos ostensivos, escancarados dos motoqueiros (em todo o País) que quebram praticamente todas as regras de trânsito (ultrapassam em faixa dupla, circulam permanentemente em excesso de velocidade, “costuram” usual e irresponsavelmente, fazem e desfazem a seu bel-prazer)?

Se fossem, enfim, quantificados os ditames legislativos que deram em nada ou que, mesmo em sendo sancionados, são olimpicamente ignorados, teríamos matéria para uma extensa e inusitada obra – o que não é o caso deste já longo artigo. O que se quer mostrar, em suma, é o modismo torpe de se legislar de maneira oportunista, sem se ter o cuidado de analisar detidamente o que se pretende normalizar, como fiscalizar, como punir, quem punir etc.

A questão que sobressai gritante, destarte, é a falta de análise do legislador quando decide lavrar uma nova norma. Não raro, seu foco acaba sendo desvirtuado ao atacar efeitos e não causas, tornando-se, por óbvio, inócua. Mas, mais do que inócua, toda ilógica norma (seja ela qual for) também provoca outros efeitos: agride o equilíbrio social, desestabiliza e confunde o cidadão, cria pânico, induz (direta ou indiretamente) à transgressão, mina a credibilidade do poder público, lato sensu. Assim é hoje, com a lei em comento, e assim o foi (e continuará a ser) por incontáveis vezes diante de outras tantas normativas de discutíveis efeitos. Até que o Legislativo (e também seus poderes co-irmãos) sejam ocupados por cidadãos cônscios e respeitadores dos seus deveres para com a sociedade que os elegeu, guiados pela ética e sujeitos à penalização quando se desviarem de tais deveres. Enquanto isso não ocorrer, dificilmente se mudará o status quo.

Qual a solução para todo esse histórico imbróglio? Não se tenha dúvida alguma: a educação, em amplo e abrangente sentido. A educação familiar e formal. Se não há uma boa base, não se poderá construir um bom cidadão. E, pela realidade insofismável em que vivemos, sabemos bem que essa base está cada vez mais fragilizada e distanciada do seu dever educativo. A desagregação familiar crescente; o descomprometimento dos educadores em sua sagrada missão de formar o indivíduo (por total falta de motivação, em alguns casos); o exemplo (cada vez mais perverso) que políticos e governantes expõem, às claras, a uma sociedade já desiludida de há muito, descrente de que existem eqüidade e justiça social, quase a incitando a transgredir, pois dificilmente haverá punição; todas essas variáveis conformam o perfil social que hoje se constata no Brasil e em tantas nações por esse mundo afora. Assim, não será uma abusiva e oportunista lei que irá resolver um problema indiscutivelmente maior, mais abrangente e histórico, que é o nosso trânsito.

Antes de cobrar, o governo teria que olhar para si e para suas incompetências:

a) Em relação às rodovias (federais, estaduais, municipais), pessimamente construídas e conservadas, subdimensionadas, superfaturadas, criminosas;

b) Em relação às normas de concessão de CNHs, hoje claramente permissivas e que não qualificam ninguém a assumir a responsabilidade de conduzir, independentemente de qual seja o porte ou tipo de veículo;

c) No tocante às suas políticas populistas (agora nos referimos, com ênfase maior, a esse governo que ai está desde 2002) de incentivo ao crédito descontrolado e, por decorrência, ao consumismo exacerbado, sob a égide de um princípio torpe e que não se sustenta (por utópico em sua pretensão): igualdade social. A partir daí, multiplicou-se às alturas o número de veículos circulando, a ponto de uma família de parcos ganhos ostentar, não raro, mais de um veículo. Em base a isto, crescem assustadoramente a inadimplência popular (são mais de 80 milhões de brasileiros hoje com dívida praticamente impagável), os níveis de poluição crescendo descontrolados, o consumo desvairado de combustível etc. Política caolha e apenas interesseira em arrecadar votos para a perpetuação no poder;

d) Na incapacidade educativa em sentido lato. Povo que não é educado desconhece seus diretos e deveres, suas responsabilidades, seus limites, sua necessidade de comprometimento para com a família e a sociedade;

e) Na ausência escancarada de zelo pelas ações éticas e morais dos seus componentes, permitindo (mais que isso, estimulando) a sociedade a também agir assim. Afinal, se o exemplo vem de cima, acaba se tornando um natural “usos e costumes” arraigado no novo locus social; entre outras tantas deturpações do seu dever fazer.

A lei em tela que motivou este artigo é, in fine, mais um absurdo legislativo que intenta, desesperadamente, sanar um problema sem que se tenham dado suficiente atenção às suas variáveis (algumas, controláveis, mas muitas incontroláveis). Tenta-se “tampar o sol com uma peneira”, como em quase tudo o que advém desse grupo hoje no poder central, posto que envolve não apenas o Executivo, mas grande parte do Legislativo e com significante incidência sobre o Judiciário.

Será, ao longo dos próximos meses, um ‘novo’ terror para a sociedade, causando prejuízos, incômodos, desmotivação, estresse, para, no final de um determinado período, comprovar que sua intenção esvaiu-se pela inocuidade da sua formulação e, mais que isso, pela fundamentação pífia e míope que em nada condiz com a realidade social hodierna.

O tempo dirá se tenho razão. Aliás, a história já mostra que tenho razão.

Revista Consultor Jurídico

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