Lei fora de uso – Juiz não pode mudar tipificação de ação contra imprensa

por Priscyla Costa

Os artigos da Lei de Imprensa que tratam de calúnia e difamação — assim como outros dispositivos — foram suspensos, não revogados. Por isso, o juiz não pode receber ação movida com base na Lei de Imprensa e julgá-la com base no Código Penal. O entendimento é do ministro Ricardo Lewandowski, que entendeu que não é legal mudar a tipificação do crime para processar e julgar a ação.

O ministro suspendeu o trâmite da ação penal movida pelo deputado federal Arlindo Chinaglia Júnior (PT-SP) contra o comentarista Arnaldo Jabor, da Rede Globo e da Rádio CBN. Essa é a primeira decisão do STF sobre um caso concreto no sentido de confirmar a suspensão dos processos que tem como base a Lei de Imprensa.

Advogados especialistas no tema ouvidos pela reportagem do Consultor Jurídico afirmaram que os juízes têm obedecido a liminar que impõe a suspensão dos processos.

O presidente da Câmara dos Deputados entrou com queixa-crime com base nos artigos 21 e 22 da Lei 5.250/67 (Lei de Imprensa — calúnia e difamação) por causa de um comentário feito à Rádio CBN, no dia 24 de abril, que começava com a frase: “com dois meses de gastos com gasolina, deputados poderiam ter dado a volta ao mundo e ido à Lua várias vezes”. Jabor comentava sobre o direito dos deputados de receber de volta o dinheiro gasto com gasolina e sobre os abusos verificados na apresentação de notas fiscais pedindo reembolso por esse tipo de despesa.

Chinaglia se sentiu ofendido e entrou com a queixa-crime. A defesa de Jabor, então representado pela advogada dativa Beatriz Elizabeth, pediu a suspensão do processo com base na decisão do Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental contra dispositivos da Lei de Imprensa.

Na ocasião, o ministro Carlos Britto, relator, suspendeu alguns dispositivos da lei. Depois, o Plenário do STF decidiu que ficariam suspensas as ações movidas que tinham como base nesses dispositivos, até decisão final sobre a constitucionalidade da norma.

No caso da ação movida contra Jabor, a defesa do deputado, representada pela Procuradoria Regional da União da 3ª Região, requereu o indeferimento do pedido e solicitou que a ação continuasse tramitando com fundamento nos artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, que também tratam de crime contra a honra.

A 4ª Vara Federal Criminal de São Paulo acolheu o pedido da Procuradoria. Recebeu a denúncia e mudou a tipificação. A ação que tramitava com base na Lei de Imprensa passou a ser processada com base no Código Penal. A defesa de Jabor apelou. A decisão foi mantida pelo Tribunal Regional Federal da 3ª Região. O entendimento foi de que se aplicaria a lei geral para o caso — Código Penal — e não a Lei de Imprensa, que seria a lei especial.

“O Plenário do STF referendou a decisão liminar para o efeito de suspender a vigência dos artigos legais citados, mas não o referendou em relação à determinação de suspensão dos feitos referentes a citados artigos. Além disso, no caso dos autos, os fatos narrados na queixa foram classificados nos artigos 21, 22 c.c. artigo 23, inciso I da Lei de Imprensa por aplicação do princípio da especialidade em face dos artigos idênticos do Código Penal. Como é cediço, a acusação e eventual recebimento da queixa têm como objetos fatos e não tipos penais indicados na peça inicial e, com a suspensão somente da vigência dos tipos penais especiais, é claramente cabível eventual continuidade do feito em relação aos fatos, com nova classificação dos delitos narrados na lei geral”, descreveu o TRF-3.

Arnaldo Jabor entrou com Reclamação no STF — peça assinada pelos advogados Nilson Jacob, da TV Globo, e Bruna Manfredi. Alegou afronta à decisão do STF que suspendeu artigos da Lei de Imprensa. Outro argumento foi o de que embora, em tese, os crimes contra a honra do Código Penal se assemelham aos previstos na Lei de Imprensa, existem diferenças nos procedimentos.

Na Lei de Imprensa, além de o prazo prescricional ter aplicação diferente do Código Penal, existe a possibilidade da apresentação de defesa prévia antes do recebimento da queixa, o que não ocorre nos crimes previstos no Código Penal. Isso geraria, de acordo com os advogados, constrangimento ilegal.

Ricardo Lewandowski acolheu os argumentos. “Transportar os fatos descritos na queixa-crime ao enquadramento genérico do Código Penal, frente ao teor da decisão desta Corte, não me parece decisão acertada, principalmente em se tratando de ação penal privada. Neste tipo de ação, como se sabe, a sistemática processual confere ainda maior poder à iniciativa do ofendido, descabendo ao magistrado a nova adequação típica, à margem do pleito inicial”, decidiu.

O ministro concedeu liminar para suspender a Ação Penal até julgamento final da ADPF pelo Supremo Tribunal Federal.

Ação e julgamento

A decisão de suspender alguns dispositivos da Lei de Imprensa foi tomada pelo STF em fevereiro passado. A liminar de Carlos Britto suspendeu, por exemplo, as penas de prisão para jornalistas por calúnia, injúria ou difamação. Outros artigos suspensos foram os que prevêem censura para espetáculos e diversões públicas, os que trazem a possibilidade de se apreender periódicos e os que impedem que estrangeiros sejam proprietários de empresas de comunicação no Brasil também foram suspensos. Na prática, contudo, muitos desses dispositivos já haviam caído em desuso.

A suspensão dos processos foi decidida uma semana depois da liminar de Carlos Britto. Na sessão, os ministros discutiram em Medida Cautelar a possibilidade de não suspender o andamento dos processos. Neste caso, os juízes poderiam usar regras dos Códigos Penal e Civil para analisar processos baseados em dispositivos que estão sem eficácia. Mas, depois de debates acalorados e confusos, a sugestão não vingou.

No julgamento, Carlos Britto repetiu os fundamentos da liminar dada dia 21 de fevereiro. De acordo com o ministro “a atual Lei de Imprensa não parece mesmo serviente do padrão de democracia e de imprensa. Bem ao contrário, cuida-se de modelo prescritivo que o próprio Supremo Tribunal Federal tem visto como tracejado por uma ordem constitucional (a de 1967/1969) que praticamente nada tem a ver com a atual”.

Segundo ele, alguns dos pilares da democracia brasileira são a informação em plenitude e a transparência do poder. “Por isso que emerge da nossa Constituição a inviolabilidade da liberdade de expressão e de informação (incisos IV, V, IX e XXXIII do artigo 5º) e todo um capítulo que é a mais nítida exaltação da liberdade de imprensa”, disse.

Exceto Marco Aurélio, que não referendou a liminar de Britto por entender que não caberia ADPF, os ministros formularam votos acalorados em defesa da liberdade de imprensa. O mais comedido foi Gilmar Mendes que considerou que a liberdade de informação tem de estar compatibilizada com valores constitucionais como o direito à privacidade, imagem e honra.

O ministro Eros Grau disse que votava por suspender a eficácia de toda a lei não por ser da época da ditadura, mas por não ter sido recepcionada pela Constituição Federal. Celso de Mello, em extenso voto, afirmou que nenhuma lei pode constituir embaraço a liberdade jornalística.

Leia a decisão de Lewandowski

MED. CAUT. EM RECLAMAÇÃO 6.180-9 (634)

PROCED.: SÃO PAULO

RELATOR: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI

RECLTE.(S): ARNALDO JABOR

ADV.(A/S): NILSON JACOB E OUTRO(A/S)

RECLDO.(A/S): JUIZ FEDERAL DA 4ª VARA CRIMINAL FEDERAL DA SEÇÃO JUDICIÁRIA DE SÃO PAULO (PROCESSO Nº 2007.61.81.008608-2)

RECLDO.(A/S) : RELATOR DO HC Nº 2008.03.00.021110-0 DO TRIBUNAL REGIONAL FEDERAL DA 3ª REGIÃO

INTDO.(A/S) : ARLINDO CHINAGLIA JÚNIOR

ADV.(A/S) : ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

Trata-se de Reclamação ajuizada por ARNALDO JABOR, contra ato do juiz da 4ª Vara Criminal Federal da Seção Judiciária de São Paulo, que, nos autos do processo nº 2007.61.81.008608-2, indeferiu o pedido de suspensão do feito, bem como contra ato Desembargador Federal do Tribunal Regional Federal de Terceira Região, que negou liminar no HC nº 2008.03.00.02110-0, impetrado em favor do ora reclamante.

Diz a inicial, em síntese, que “Arlindo Chinaglia Júnior ingressou com queixa crime em face do Reclamante atribuindo-lhe os crimes previstos nos artigos 21 e 22 da Lei 5.250/67 em virtude de matéria jornalística declarada na Rádio CBN em 24 de abril de 2007” (fl. 03).

Assenta, mais, que, em defesa prévia, o ora reclamante requereu “a suspensão do feito com base na decisão do Supremo Tribunal Federal na Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130-7” (fl. 03). Narra, ainda, que a autoridade reclamada, de primeiro grau, negou o pedido de suspensão do feito, determinando seu prosseguimento, “agora com adequação do procedimento para os novos tipos classificados na queixa, artigos 138, 139 e 140 do Código Penal, e o procedimento previsto nos artigos 519 e seguintes do Código de Processo Penal” (fl. 05).

Inconformado, o reclamante impetrou Habeas Corpus perante o Tribunal Regional Federal competente, cuja medida liminar restou indeferida.

Requer, ao final, “seja concedida a presente reclamação para determinar a Suspensão do Processo nos termos da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 130-7” (fl. 16).

É o sucinto relatório. Decido.

A liminar é de ser deferida.

Colho da decisão da autoridade judicial reclamada o trecho controverso (fl. 43):

“Também, não há que se falar em suspensão do feito diante de decisão liminar do STF em Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental determinando a suspensão dos feitos que versam sobre os artigos da Lei de Imprensa também suspensos. Incabível a suspensão do feito pois, conforme o que consta de fls. 93, o Plenário do STF referendou a decisão liminar para o efeito de suspender a vigência dos artigos legais citados, mas não o referendou em relação à determinação de suspensão dos feitos referentes a citados artigos.

Além disso, no caso dos autos, os fatos narrados na queixa foram classificados nos artigos 21, 22 c.c. artigo 23, inc. I da lei de Imprensa por aplicação do princípio da especialidade em face dos artigos idênticos do Código Penal. Como é cediço, a acusação e eventual recebimento da queixa têm como objetos fatos e não tipos penais indicados na peça inicial e, com a suspensão somente da vigência dos tipos penais especiais, é claramente cabível eventual continuidade do feito em relação aos fatos, com nova classificação dos delitos narrados na lei geral (CP)”.

Ao contrário do quanto assenta a decisão transcrita, entretanto, em 27 de fevereiro de 2008, o Plenário desta Corte referendou a liminar proferida pelo Ministro Ayres Britto, para suspender o andamento dos procedimentos referentes aos tipos penais artigos 20 a 22 da Lei de Imprensa.

Recorto trecho da decisão liminar, posteriormente referendada, que se encontra disponível no sítio eletrônico desta Corte (acrescento os negritos):

“11. É o quanto me basta para entender configurada a plausibilidade do pedido (fumus boni juris) em sede ainda cautelar. E quanto ao requisito do perigo na demora da prestação jurisdicional (periculum in mora), tenho que não se pode perder uma só oportunidade de impedir que eventual aplicação da lei em causa (de nítido viés autoritário) abalroe esses tão superlativos quanto geminados valores constitucionais da Democracia e da liberdade de imprensa. Valho-me, pois, do § 3º do art. 5º da Lei nº 9.882/99 (Lei da ADPF) para, sem tardança, deferir parcialmente a liminar requestada para o efeito de determinar que juízes e tribunais suspendam o andamento de processos e os efeitos de decisões judiciais, ou de qualquer outra medida que versem sobre os seguintes dispositivos da Lei nº 5.250/67: a) a parte inicial do § 2º do art. 1º (a expressão “… a espetáculos e diversões públicas, que ficarão sujeitos à censura, na forma da lei, nem …”); b) o § 2º do art. 2º; c) a íntegra dos arts. 3º, 4º, 5º, 6º, 20, 21, 22, 23, 51 e 52; d) a parte final do art. 56 (o fraseado “…e sob pena de decadência deverá ser proposta dentro de 3 meses da data da publicação ou transmissão que lhe der causa…”); e) os §§ 3º e 6º do art. 57; f) os §§ 1º e 2º do art. 60; g) a íntegra dos arts. 61, 62, 63, 64 e 65. Decisão que tomo ad referendum do Plenário deste STF, a teor do § 1º do art. 5º da Lei nº 9.882/99″.

Transportar os fatos descritos na queixa-crime ao enquadramento genérico do Código Penal, frente ao teor da decisão desta Corte, não me parece decisão acertada, principalmente em se tratando de ação penal privada. Neste tipo de ação, como se sabe, a sistemática processual confere ainda maior poder à iniciativa do ofendido, descabendo ao magistrado a nova adequação típica, à margem do pleito inicial.

Concedo, assim, a medida liminar para suspender a ação penal que tramita em desfavor do ora reclamante, até o julgamento final do presente feito.

Expeça-se ofício à autoridade reclamada de primeiro grau, bem como ao Desembargador do Tribunal Regional Federal de 3ª Região, relator do HC nº 2008.03.00.02110-0. Solicitem-se informações à autoridade reclamada de primeiro grau.

Após, ouça-se o Procurador-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 19 de junho de 2008.

Ministro RICARDO LEWANDOWSKI

Relator

Revista Consultor Jurídico

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