Liberdade de escolha – Para ministro, mulher deve decidir se aborta anencéfalo

O ministro da Saúde, José Gomes Temporão, disse na manhã desta quinta-feira (4/9) que cabe à mãe a interrupção ou não da gravidez nos casos de fetos anencéfalos. Ele participou da audiência pública que debateu o tema no Supremo Tribunal Federal.

Temporão explicou que a anencefalia é uma má formação incompatível com a vida fora do útero e que um feto com anencefalia não sobrevive ao parto. Essa é “uma certeza médica e científica atestada pela Organização Mundial de Saúde”, afirmou.

Ele disse que a posição de sua pasta é a de apoiar a da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, que visa garantir o direito de escolha da mulher grávida sobre a antecipação do parto nesses casos.

“O Ministério da Saúde defende essa garantia fundamentado, entre outras razões, na dolorosa experiência de manejo de situações em que mães são obrigadas a levar sua gestação a termo mesmo sabendo que o feto não sobreviverá após o parto”, argumentou.

O ministro completou que atualmente o Sistema Único de Saúde (SUS) é capaz de dar um diagnóstico seguro sobre anencefalia e que está preparado para acompanhar todas as fases com a gestante, desde o momento em que é informada sobre o problema até a orientação para procurar o Judiciário, fazer o enterro do natimorto ou como planejar uma nova gestação.

Sem discriminação

A jornalista Cláudia Werneck, fundadora da organização da sociedade civil Escola de Gente – Comunicação em Inclusão, tratou de diferenciar as pessoas com deficiências físicas dos anencéfalos. Ela disse que a interrupção da gravidez de fetos sem cérebro não configura uma discriminação contra a pessoa com deficiência.

Na opinião dela, a falta de expectativa de vida fora do útero retira a anencefalia do grupo de condições aceitas como deficiências.

“Embora a anencefalia expresse a diversidade da pessoa humana, interromper a gravidez não é um caso de negação ao direito à vida, pois não há expectativa favorável de vida a partir do parto”, explicou Cláudia.

A jornalista, que atua no Conselho Nacional de Juventude da Presidência da República, disse que defende a aceitação das pessoas com deficiência da maneira mais inclusiva possível. “Mas o deficiente tem o mínimo de interação com pessoas e relação com o ambiente”, alertou.

Retrocesso e barbárie

A representante da Associação para o Desenvolvimento da Família, a médica endocrinologista Ieda Therezinha Verreschi, defendeu que o aborto de fetos sem cérebro representa “um retorno da sociedade à barbárie”.

Segundo ela, com a adoção do aborto desses fetos se corre o risco de avaliar o ser humano só pela sua eficiência. “Na intolerância diante do imperfeito perderíamos a capacidade de amar, o que diminui o ser humano”, considerou.

Ieda Verreschi explicou que o grau de anencefalia varia de acordo com o desenvolvimento do sistema endócrino-fetal, que é condicionado à formação da hipófise na base do cérebro. “De 40% a 60% nascem vivos, mas é certo que apenas 8% sobrevivem por mais algum tempo depois do parto”, disse.

A médica destacou também que alguns anencéfalos têm hipófise e que o próprio feto produz substâncias que o protegem de ser expulso do útero (por ser um corpo estranho ao da mãe), liberando esteróides que o acompanham na vida uterina e são essenciais no momento do parto. “Muitos morrem ao sair do útero por falha dessas substâncias”, disse. No feto anencéfalo, essa unidade de precursores hormonais é doente e, dependendo do grau de comprometimento dos hormônios, que é variável, o bebê vive mais ou menos tempo.

A médica ressaltou, ainda, que a anomalia tem um alto índice de ocorrências no Brasil: um a cada mil nascidos vivos é anencéfalo e a má-formação é quatro vezes mais freqüente no sexo feminino.

Gravidez e tortura

Em sua participação na audiência, a representante da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, a antropóloga Lia Zanotta Machado, apresentou casos estudados por ela sobre a reação das mães ante a descoberta de que carregavam um feto anencéfalo.

Ela conta que uma mulher chamada Érica recebeu a informação de que seu filho tinha um problema num exame. Foi informada pela clínica de que o filho não tinha massa cerebral e concluiu que “nunca um cérebro apareceria do nada”. A partir de então, a gravidez se tornou uma tortura e a mãe optou pela antecipação do parto, autorizada enquanto vigorou a liminar do ministro Marco Aurélio.

Para a professora Lia Zanotta, os casos deixam claro que todas essas mães viveram na certeza da morte cerebral já ocorrida ou da curta duração após o parto, com vida vegetativa.

Estudo americano

A pediatra Cínthia Macedo Specian explicou que a anencefalia é um dos defeitos do fechamento do tubo neural e que o tubo neural é uma forma inicial do desenvolvimento do embrião humano, que está totalmente formado a partir do 28º dia após a concepção.

Ela apresentou um estudo feito nos Estados Unidos com doze bebês nascidos vivos com diagnóstico de anencefalia. Registrou que os mesmos mantiveram sinais clínicos de atividade cerebral por um período maior do que sete dias, sem necessidade de internação em unidades de terapia intensiva. Os sinais seriam: movimento dos olhos, resposta a reflexos, audição e respiração espontânea.

“Na verdade, são os testes clínicos exigidos para que se possa realizar e aplicar um protocolo para diagnóstico de morte encefálica”, ponderou.

Ao final, disse que o protocolo para diagnóstico de morte encefálica indicado pelo Conselho Federal de Medicina só pode ser aplicado a um paciente que tenha mais de sete dias de vida extra-uterina.

“Isso porque precisamos ter condições técnicas de fazer a avaliação de todos aqueles testes que foram apresentados aqui. Mas aplicar o protocolo de morte encefálica no feto é uma coisa que não é possível”, destacou.

Dignidade fetal

O obstetra Dernival da Silva Brandão defendeu que a gravidez de um feto sem cérebro deve ser levada adiante em respeito à dignidade da vida uterina.

“A mãe não pode ser chamada de caixão ambulante, como dizem por aí. Pelo contrário, ela tem sua dignidade aumentada por respeitar a vida do seu filho”, argumentou o médico que tem 50 anos de experiência.

Brandão comparou que as mulheres cujos fetos são retirados sofrem de remorso por conta de uma rejeição ao filho pelo qual as mães de crianças não abortadas não passam. “Essas, ao contrário, têm uma boa sensação de dever cumprido. Como podemos qualificar o valor da vida humana? O doente não é menos digno de viver?”, questionou Brandão, que preside a Comissão de Ética e Cidadania da Academia Fluminense de Medicina.

Ausência de vida

A socióloga e cientista política Jacqueline Pitanguy foi a última a falar na audiência e apresentou argumentos em favor da autorização da interrupção voluntária da gravidez na gestação de fetos anencéfalos.

Segundo ela, a Lei 9.434/97, que trata dos transplantes de órgãos, reconhece o óbito a partir da morte encefálica ou morte cerebral. “Significa que o conceito de vida está intimamente ligado às funções cerebrais que nos tornam seres humanos capazes de pensar, sentir, interpretar de diversas formas o mundo, sonhar e relacionar-se”, disse a socióloga.

Assim, a ausência de cérebro deve ser compreendida como ausência de vida e, se essa interpretação vale em caso de atropelamento, por exemplo, deve ser estendida ao anencéfalo. “Creio que não caberia, nessa circunstância, um debate filosófico sobre a vida”, afirmou.

Representando o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, a socióloga disse que “o direito de escolha é um ato de proteção e solidariedade à dor e ao sofrimento das mulheres que vivenciam uma gravidez de feto anencéfalo, anomalia incompatível com a vida em 100% dos casos”.

No entanto, esclareceu que defende a interrupção voluntária da gravidez e do direito de escolha da mulher, para que aquelas que desejarem continuar com a gravidez nessa circunstância estejam amparadas pela lei e pelo sistema de saúde.

Nova data

O relator da ADPF, ministro Marco Aurélio Mello, marcou para o próximo dia 16 de setembro uma nova rodada de debates sobre o tema. Nos dias 26 e 28 de agosto, especialistas e entidades participaram da audiência e Marco Aurélio Mello, pesando todos os depoimentos, disse esperar uma vitória “acachapante” da tese que defende a antecipação do parto.

A ação foi protocolada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS), que pede que deixe de ser considerado crime a antecipação do parto em caso de fetos anencéfalos. A entidade argumenta que carregar um feto sem cérebro, além de gerar risco para a mulher, ofende a dignidade humana da mãe, direito assegurado pelo artigo 5º da Constituição Federal.

ADPF 54

Revista Consultor Jurídico

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