Limites do poder – Leia projeto que muda a lei de abuso de autoridade

por Priscyla Costa

A autoridade que submeter pessoa sob sua guarda a constrangimento ou vexame poderá ser criminalmente processada e pegar até oito anos de prisão. É o que prevê minuta de projeto que altera a lei de abuso de autoridade, apresentada nesta quarta-feira (23/7) pelo presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado da Câmara dos Deputados, deputado Raul Jungmann (PPS-PE), ao ministro da Justiça, Tarso Genro.

O projeto foi apresentado uma semana depois de o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, se reunir com o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e defender as mudanças. A audiência teve a participação também de Tarso Genro. No encontro, Gilmar propôs alterações na legislação sobre abuso de autoridade depois dos vazamentos de conteúdo de gravações feitas pela Polícia Federal, com autorização da Justiça, e da “espetacularização” de operações de busca e apreensão feitas pela PF.

Pelo projeto criado por Jungmann, o abuso será caracterizado quando a autoridade praticar, omitir ou retardar ato, no exercício da função pública, para prejudicar, embaraçar ou prejudicar os direitos fundamentais do cidadão garantidos na Constituição Federal, como, por exemplo, a liberdade individual, a integridade física e moral, a intimidade, a vida privada e a inviolabilidade da casa.

A pena para quem praticar o crime de abuso de autoridade, de acordo com a proposta de Jungmann, é de quatro a oito anos de prisão e multa equivalente a 24 meses de salário da autoridade. A lei atual — Lei 4.898, de 1965 — prevê pena de, no máximo, seis meses de prisão.

O projeto de Jungmann destaca entre os principais casos de abuso de autoridade atos que violem a igualdade entre homens e mulheres; a integridade física e moral das pessoas, por meio da chamada “espetacularização” das operações; a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação.

O texto prevê o enquadramento como abuso de casos como a ridicularização de inocentes, vulgarização e quebra de sigilo, ordem ou execução de medida privativa da liberdade individual sem as formalidades legais, entre outros pontos. Também será considerado abuso de autoridade fazer afirmação falsa em ato praticado em investigação policial ou administrativa, inquérito civil, ação civil pública, ação de improbidade administrativa ou ação penal pública.

Jungmann considera o projeto uma “trincheira do cidadão”, para que ele tenha meios de se defender contra eventuais abusos estatais. A proposta, segundo deputado, permite ao cidadão entrar com uma ação na Justiça no caso de omissão da autoridade que investiga o caso de abuso de poder que não tome qualquer providência em 60 dias. “O próprio cidadão passa a ter o direito de entrar com uma ação contra qualquer autoridade”, explicou.

O deputado não vê semelhanças da sua proposta a uma “lei da mordaça” para restringir a atuação de autoridades. Segundo ele, sua preocupação é garantir que não se use informações oficiais com má-fé. “Tenho a preocupação de evitar o conluio que possa haver entre determinados órgãos ou instituições, enfim, são amplas garantias constitucionais que estão aqui dentro [no projeto de lei] e que são favoráveis à atuação tanto da Procuradoria-Geral da República, dos procuradores que não terão em nada limitado o seu trabalho, como também da Polícia Federal”, afirmou.

Jungmann disse que o ministro da Justiça vai estudar a proposta, e se possível fazer um projeto único para servir de base para um texto sobre o mesmo tema em elaboração no ministério.

Leia a minuta do projeto

PROJETO DE LEI Nº , de 2008

Do Sr. Raul Jungmann

Dispõe sobre a defesa dos direitos e garantias fundamentais nos casos de abuso de autoridade.

Art. 1º O abuso de autoridade no exercício de função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la é punido na forma desta Lei, quando praticado por agente público de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios.

DO ABUSO DE AUTORIDADE CONTRA DIREITOS E GARANTIAS FUNDAMENTAIS

Art. 2º Praticar, omitir ou retardar ato, no exercício de função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la, com o intuito de impedir, embaraçar ou prejudicar o gozo de qualquer dos direitos e garantias fundamentais constantes do Título II da Constituição, em especial aqueles perpetrados contra:

I — a igualdade entre homens e mulheres (art. 5º, inciso I, da Constituição);

II — a liberdade individual (art. 5º, inciso II, da Constituição);

III — a integridade física e moral da pessoa (art. 5º, inciso III, da Constituição);

IV — a liberdade de pensamento, consciência, crença, culto e expressão (art. 5º, incisos IV a IX, da Constituição);

V — a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, inciso X, da Constituição

VI — a inviolabilidade da casa, da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas (art. 5º, incisos XI e XII, da Constituição);

VII — a liberdade de trabalho, ofício ou profissão (art. 5º, inciso XIII, da Constituição);

VIII — o acesso de todos à informação, na forma da Constituição e da legislação (art. 5º, incisos XIV e XXXIII, da Constituição);

IX — a liberdade de locomoção e de reunião (art. 5º, incisos XV e XVI, da Constituição);

X — a liberdade de associação para fins lícitos (art. 5º, inciso XVII a XXI, da Constituição);

XI — a propriedade e sua função social (art. 5º, incisos XXII a XXXI, da Constituição);

XII — a promoção da defesa do consumidor, na forma da legislação pertinente (art. 5º, inciso XXXII, da Constituição), inclusive do usuário de serviços públicos (art. 37, § 3º, da Constituição);

XIII — o direito de petição aos poderes públicos e a obtenção de certidões em repartições públicas (art. 5º, inciso XXXIV, da Constituição);

XIV — o acesso ao Poder Judiciário e aos remédios constitucionais (art. 5º, incisos XXXV e LXVIII a LXXVII, da Constituição);

XV — o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5o, inciso XXXVI, da Constituição);

XVI — o devido processo legal e seus consectários, inclusive a presunção de inocência (art. 5º, incisos XXXVII a XLIV e LI a LXVII, da Constituição);

XVII — a dignidade do condenado (art. 5º, incisos XLV a L, da Constituição);

XVIII — a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação (art. 5º, inciso LXXVIII, da Constituição):

Pena — reclusão de quatro a oito anos e multa equivalente ao valor de dois a vinte e quatro meses de remuneração ou subsídio devido ao réu.

§ 1º Consideradas as circunstâncias a que se refere o art. 59 do Código Penal, o juiz também poderá decretar:

I — a perda do cargo, emprego ou função; e

II — a inabilitação para o exercício de qualquer outro cargo, emprego ou função pelo prazo de até oito anos.

§ 2º As penas cominadas neste artigo serão aplicadas autônoma ou cumulativamente de acordo com as regras dos arts. 59 a 76 do Código Penal.

§ 3º Quando o abuso for cometido por agente de autoridade policial, civil ou militar, de qualquer categoria, poderá ser cominada pena autônoma ou acessória de não poder o acusado exercer funções de natureza policial ou militar no município da culpa, por prazo de até doze anos.

§ 4º São também crimes de abuso de autoridade quaisquer atentados contra outros direitos e garantias decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição e tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte (art. 5º, § 2º, da Constituição).

DO ABUSO DE AUTORIDADE EM SITUAÇÕES ESPECÍFICAS

Art. 3º Nas mesmas penas incorre quem:

I — ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

II — submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento

III — deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;

IV — deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;

V — levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança permitida em lei;

VI — cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa sem previsão legal, quer quanto à espécie, quer quanto ao seu valor;

VII — recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

VIII — lesar a honra ou patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;

IX — prolongar a execução de prisão cautelar qualquer, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade;

X — empregar a força, salvo quando indispensável em razão de resistência ou tentativa de fuga do preso (Código de Processo Penal, art. 284);

XI — atuar com inobservância da repartição de competências funcionais;

XII — fazer afirmação falsa ou negar ou calar a verdade em ato praticado em investigação policial ou administrativa, inquérito civil, ação civil pública, ação de improbidade administrativa ou ação penal pública, que esteja sob sua presidência ou de que participe;

XIII — deturpar o teor de dispositivo constitucional ou legal, de citação doutrinária ou de julgado, bem como de depoimentos, documentos e alegações (art. 34, inciso XIV, da Lei no 8.906, de 4 de julho de 1994 – Estatuto da Advocacia);

XIV — omitir-se na apuração dos abusos perpetrados por subordinados seus ou sujeitos ao seu poder correcional.

DO CONCEITO DE AUTORIDADE

Art. 4º Considera-se autoridade, para os efeitos desta Lei, o ocupante de cargo, função ou emprego público da Administração Pública direta, autárquica ou fundacional, o membro de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, do Ministério Público ou da Defensoria Pública e o detentor de mandato eletivo.

DO PROCESSO

Art. 5º O direito de representação será exercido por meio de petição:

I — dirigida à autoridade superior que tiver competência legal para aplicar, à autoridade civil ou militar implicada, a respectiva sanção;

II — dirigida ao órgão do Ministério Público que tiver competência para iniciar processo—crime contra a autoridade culpada.

Parágrafo único. A representação será feita em duas vias e conterá a exposição do fato constitutivo do abuso de autoridade, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado e o rol de testemunhas, no máximo de três, se as houver.

Art. 6º É facultado ao ofendido ou seu representante legal intervir, como assistente do Ministério Público, em todos os termos do inquérito policial e da ação penal (Código de Processo Penal, arts. 268 a 274).

§ 1º Na hipótese de o Ministério Público não oferecer denúncia no prazo de até sessenta dias da ocorrência do fato, o assistente poderá intentar ação penal privada (art. 5º, inciso LIX, da Constituição).

§ 2º No caso do § 1º, o Ministério Público atuará como custos legis.

§ 3º A assistência a que se refere o caput também pode ocorrer em processo administrativo disciplinar, salvo nos casos de sigilo.

Art. 7º Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias (Lei dos atos de improbidade, art. 17, § 7º).

§ 1º Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do abuso de autoridade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita (Lei dos atos de improbidade, art. 17, § 8º).

§ 2º Recebida a petição inicial, será o réu citado para apresentar contestação (Lei dos atos de improbidade, art. 17, § 9º).

§ 3º Da decisão que receber a petição inicial, caberá agravo (Lei dos atos de improbidade, art. 17, § 10).

§ 4º Em qualquer fase do processo, reconhecida a inadequação da ação, o juiz extinguirá o processo sem julgamento do mérito (Lei dos atos de improbidade, art. 17, § 11).

§ 5º Aplica-se aos depoimentos ou inquirições realizadas nos processos regidos por esta Lei o disposto no art. 221, caput e § 1º, do Código de Processo Penal (Lei dos atos de improbidade, art. 17, § 12).

DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS E CÍVEIS

Art. 8º A sanção administrativa será aplicada de acordo com a gravidade do abuso cometido e consistirá em:

I — advertência;

II — repreensão;

III — suspensão do cargo, função ou posto por prazo de cinco a trezentos e sessenta dias, com perda de vencimentos e vantagens;

IV — destituição de cargo comissionado ou função gratificada; ou

V — demissão, a bem do serviço público.

Parágrafo único. O processo administrativo não poderá ser sobrestado para o fim de aguardar a decisão da ação penal ou civil.

Art. 9º A sanção civil, caso não seja possível fixar o valor do dano, consistirá no pagamento de uma indenização de R$ 1.000,00 (mil reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).

Parágrafo único. Proferida a sentença condenatória, a União exercerá, no prazo de trinta dias, o seu direito de regresso contra o responsável (art. 37, § 6o, da Constituição).

DAS DISPOSIÇÕES FINAIS

Art. 10. Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Art. 11. Fica revogada a Lei no 4.898, de 9 de dezembro de 1965.

Sala das Sessões, em de 2008.

Deputado RAUL JUNGMANN

PPS/PE

JUSTIFICAÇÃO

A Lei no 4.898, de 9 de dezembro de 1965, relativa ao abuso de autoridade, está defasada. Precisa ser repensada, em especial para melhor proteger os direitos e garantias fundamentais constantes da Constituição de 1988 (mais rica no particular do que a Constituição de 1946, vigente quando da promulgação da Lei no 4.898, de 1965), bem assim para que se possam tornar efetivas as sanções destinadas a coibir e punir o abuso de autoridade.

Assim, o projeto de lei ora apresentado define como crimes de abuso de autoridade o praticar, o omitir e o retardar ato, no exercício de função pública, em razão dela ou a pretexto de exercê-la, com o intuito de impedir, embaraçar ou prejudicar o gozo de qualquer dos direitos e garantias fundamentais constantes do Título II da Constituição. Com isso, há evidente ganho de minúcia e rigor, o que vem a favor de uma tipificação mais exata de condutas, o que é essencial à boa técnica de elaboração de tipos penais (art. 2º).

O projeto também atualiza os crimes de abuso de autoridade em situações específicas, mormente para coibir e punir condutas que escapem ao Estado de Democrático de Direito, ao pluralismo e à dignidade da pessoa humana (art. 3º).

Quanto aos aspectos processuais da matéria, o projeto permite que o ofendido ou seu representante legal acompanhem ou, até mesmo, assumam o pertinente processo administrativo ou judicial, se acaso as autoridades competentes para tanto não vierem a concorrer nos prazos próprios (art. 6º).

Vale destacar que o projeto também se preocupa em não deixar a autoridade pública sujeita a feitos temerários, motivados por rixas ou disputas político-partidárias. Para tanto, adota o bem sucedido mecanismo de defesa prévia havido nos processos de improbidade administrativa (art. 7º).

Enfim, as multas e outras penas cominadas são redimensionadas para que venham a se tornar efetivas, ou seja, para que verdadeiramente concorram para coibir o abuso de autoridade ou para punir melhor aqueles que venham a constranger, com abuso de autoridade, o seu semelhante.

É preciso acabar — de parte a parte — com a cultura do “você sabe com quem está falando?” Uma disciplina como a que consta do projeto não se assimila de uma hora para outra. Ao contrário. Veja-se: tão-só a sua premência já aponta para estágio ainda discreto de civilidade. É preciso mudar a cultura. Para tanto, nos primeiros passos, uma legislação de escopo pedagógico é imprescindível, ainda que – insista-se – a sua necessidade deponha menos a favor do grau de civilidade da sociedade do que se poderia desejar.

Em razão do exposto, roga-se aos nobres pares apoio para o projeto de lei ora apresentado.

Revista Consultor Jurídico

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