[Editorial publicado em O Estado de S.Paulo deste sábado (9/8)]
O Brasil se tornou um país melhor esta semana graças a duas límpidas decisões do Supremo Tribunal Federal — uma, contrariando uma opinião pública compreensivelmente revoltada com a desenvoltura dos políticos corruptos que se mantêm impunes; outra, restringindo a situações excepcionais uma prática corriqueira no trabalho policial, apreciada com sabor de desforra por setores dessa mesma opinião pública quando dirigida contra figuras notórias que simbolizam os privilégios da política ou do capital. Ambas as decisões eram esperadas nesse período em que o Supremo tomou a si a incumbência civilizatória de promover “uma pedagogia dos direitos fundamentais”, nas palavras do seu presidente e principal porta-voz da causa entre os seus pares, ministro Gilmar Mendes.
A primeira decisão, tomada por 9 votos a 2 na terça-feira, ratificou o entendimento do Tribunal Superior Eleitoral — vitorioso, é bem verdade, por um único voto de diferença — de que ninguém pode ser privado do direito de disputar uma eleição em razão de acusações pregressas que acabaram levando o candidato ao banco dos réus, enquanto ele não for inapelavelmente condenado em razão de alguma delas. A segunda decisão, adotada por unanimidade no dia seguinte, limitou a eventualidades claramente enunciadas o uso legítimo de algemas no cumprimento de um mandado de prisão e em circunstâncias posteriores – quando houver fundados receios de que o acusado ou poderá fugir ou poderá agredir o agente policial (ou atentar contra a própria vida).
No caso dos chamados “fichas-sujas”, o STF não cedeu ao movimento das autoridades eleitorais regionais para negar registro às candidaturas dos políticos que respondem a processos, geralmente por corrupção, em qualquer esfera do sistema judicial. Tampouco cedeu à influente Associação dos Magistrados do Brasil (AMB) que encampou a bandeira do banimento dos candidatos sub judice, com maciço apoio da sociedade – da ordem de 80% da população, ao que se estima.
O apoio se estendeu à iniciativa da AMB de passar a identificar no seu site os políticos que respondem a ações penais públicas ou de improbidade administrativa (com as respectivas informações). Não admira. Sendo o que são os estratagemas que permitem aos que têm meios para tal arrastar um processo até o Dia de São Nunca, e chegando até onde chega a sangria do dinheiro público no Brasil, é salutar o espírito moralizador do eleitorado.
Não fosse pelo proverbial pequeno detalhe: entre as situações de inelegibilidade previstas em lei não figura a de se ter processos em curso. E não figura por causa do princípio constitucional da presunção de inocência até a eventual condenação transitada em julgado.
Os “fichas-sujas” poderão ser barrados das eleições apenas se uma nova lei considerar que a norma não se aplica por inteiro à vida pública, porque o direito de ser votado não é absoluto. Do contrário, apontou o ministro Celso de Mello, “a legitimidade dos fins, por mais dignos que sejam, não justifica a ilegalidade dos meios”. Sem falar que 28% das condenações de instâncias inferiores caem no STF. Em tese, portanto, “um quarto dos postulantes ficaria impedido de concorrer e, só seria reabilitado depois de passadas as eleições”, argumentou o seu colega Ricardo Lewandowski.
Já no caso das algemas, o ponto de partida foi o recurso de um condenado a 13 anos e meio de prisão por homicídio. Ele pediu a anulação do julgamento, alegando que o “constrangimento ilegal” de ter sido algemado no tribunal influenciou o corpo de jurados. Mas o que levou o Supremo a impor as restrições a serem seguidas doravante pelas polícias foi evidentemente o abuso dos federais da Operação Satiagraha ao algemar o empresário Daniel Dantas, o especulador Naji Nahas e o ex-prefeito Celso Pitta ao serem presos – e filmados. Eles “foram apenados sem o devido processo legal, mediante a imposição das algemas”, criticou o ministro Marco Aurélio Mello.
Decerto não faltaram aqueles que acharam a violência um ato de nivelamento social: eis um trio de bacanas sendo tratado como o povão. O Supremo repôs as coisas nos devidos lugares. “A pedagogia dos direitos fundamentais”, ressaltou Gilmar Mendes, “se faz em função de todos, ricos e pobres.”
Revista Consultor Jurídico