por Valacir Marques Gonçalves
As polícias brasileiras estão vivendo uma situação surrealista. Os delegados de polícia estão lutando para implantar algo difícil de ser imaginado até mesmo pelos novelistas mais consagrados do horário nobre. Tal qual os autores televisivos, eles estão escrevendo um folhetim em que o enredo está sendo tramado somente por eles.
Este tipo de proposta idealizada pelos delegados não ajuda em nada o nosso país a encontrar soluções para o grave problema da segurança pública. Nosso povo está sendo trucidado pelos bandidos, enquanto pessoas que ocupam cargos importantes como eles não se preocupam em apresentar soluções para que isso tenha um fim.
Milhares de policiais estão vendo alguns tentarem implantar, através de uma Emenda Constitucional, um sistema em que “executivos de inquérito” serão promovidos a “agentes políticos”. No ideário dos beneficiados, os policiais que estão na linha de frente, que investigam e prendem, passarão a ser “usados” como uma mão de obra barata e “desqualificada”, que ficará à disposição da emergente classe, agora equiparada aos membros do Ministério Público e do Judiciário, principalmente na parte referente aos salários.
Os delegados estão tentando fazer passar no Congresso uma Proposta de Emenda Constitucional totalmente desconectada da realidade. Quando tomei conhecimento dela, fiquei impressionado com a competência dos novos alquimistas, pois pretendem transformar em coisas ruins (para não dizer coisa pior) o pouco de bom que ainda resta no sistema policial brasileiro.
Preocupam-se somente em consolidar uma estratégia que impede qualquer avanço que ajude o país a sair dessa crise de segurança que atormenta a todos. Acham que todos devem engolir esse produto (mal) acabado que apresentaram para um Congresso que precisa saber exatamente o que está decidindo e a importância da transformação que estão tentando implantar quando, entre outros absurdos, tentam modificar o artigo da Constituição Federal que prevê a Polícia Federal como uma instituição instituída em carreira única.
Como tantos outros, tenho amigos entre os delegados. Mas uma questão precisa ser colocada na mesa: na reunião feita em Brasília para elaborarmos uma proposta de Lei Orgânica para a Polícia Federal foi impossível qualquer tipo de acordo, pois foram evidentes os espetáculos de arrogância explícita e intimidatória, sendo inviabilizado qualquer tipo de entendimento. Agora, no Congresso Nacional, é realizado mais um capítulo dessa disputa que não precisaria estar acontecendo, pois toda vez que nos apresentamos desunidos — nos mais variados fóruns — fomos vencidos. Quanto isso não aconteceu e houve um arremedo de união, conseguimos avançar.
A desunião voltou com força. Perdoem-me os interessados, mas esta Proposta de Emenda Constitucional que pretende transformar delegados em juristas me fez lembrar da piada do turco. Acreditem, não é desrespeito, não é ironia, mas é inevitável a associação. Assisti a um filme iraniano com o nome de “Gosto de Cereja” no qual é contada a tal piada que reproduzo agora. Dizem que um turco foi ao médico e disse: “Quando toco meu pescoço, dói; quando toco minha cabeça, dói; quando toco meu corpo, dói”. O médico respondeu: “Não tem nada de errado com seu corpo, é seu dedo que está machucado”. Está aí a associação: fazer parte das carreiras jurídicas deve ser bom, ser chamado de “Excelência” deve fazer bem ao ego, ganhar um salário (sempre) competitivo, melhor ainda. Como podemos ver, os delegados se preocupam com vários detalhes importantes e sadios, mas o que está doente é a idéia, a absurda idéia de transformar policiais em juristas. Ela está doente por uma simples razão: a insistência em olhar as coisas com apenas uma perspectiva, a egoísta e elitista perspectiva deles.
A segurança do Brasil já tem problemas demais, ela não funciona, ninguém precisa deixá-la pior ainda. Para acabar de vez com a tranqüilidade dos brasileiros, não precisamos de uma proposta como esta, que implantará o caos em todas as polícias, pois aumentará, entre os policiais, distâncias já inaceitáveis. Está na cara que estão sofrendo do problema do turco — querem aumentar prerrogativas, querem ganhar bem mais do que seus pares, mas o que está doente é o dedo; o dedo que apontou para alguém criar esse monstrengo.
Ainda há tempo das coisas serem mudadas. Se isso não for possível, só nos restará o confronto. Vamos mostrar aos congressistas que o Brasil precisa de uma polícia que seja polícia. Eles precisam saber o que é melhor para a sociedade. Policiais, promotores, juízes, advogados; todos sabem ou deveriam saber suas atribuições. O país precisa ter certeza de que eles não desconhecem seus ofícios.
Não poderia concluir sem um último comentário. Sou do tempo em que não existia grampo. Andei dezenas de quilômetros a pé, e até jumento era usado para os deslocamentos em lugares remotos. Entrei jovem para a instituição e muito tempo passou. Desde o início convivi com coisas boas e também com todo tipo de vaidade e prepotência. Com alegria e orgulho vejo, hoje, uma Polícia Federal forte, respeitada e reconhecida como uma das instituições em que o povo mais confia. Para chegar nesse ponto não foi preciso o auxílio de “juristas”. Não foi preciso termos em nosso meio “agentes políticos”. Fizemos concurso para policiais e é o que temos orgulho de ser. Está na hora de entendermos que, se estivermos unidos numa carreira única, a PF será mais forte ainda. Todos precisam entender que os nossos adversários precisam estar do outro lado. Chega de confronto. Chega de discórdia.
O dedo do turco precisa ser curado…
Revista Consultor Jurídico