Diante da inércia do Congresso, o Supremo Tribunal Federal pode legislar. O entendimento, que já foi pacificado pela Corte, foi tema de reportagem da Folha de S.Paulo, deste domingo (10/8). O texto aponta uma mudança no perfil do STF e diz que tribunal tem adotado uma posição mais ativa na apreciação de questões políticas de ampla repercussão, “antes rechaçadas sob o argumento de interferência na autonomia entre os Poderes”.
O jornal entrevistou seis dos 11 ministros que compõem o Supremo para falar sobre as mudanças na Corte na última década. De acordo com a reportagem, todos foram unânimes em dizer que hoje existe um STF mais sintonizado com os temas que mobilizam a opinião pública. Um ministro explicou à Folha que essas ações que geram grandes repercussões chegam à Corte principalmente via Adin (Ação Direta de Inconstitucionalidade) e ADPF (Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental).
Antes da Constituição de 1988, apenas o procurador-geral da República podia submeter esse tipo de apreciação à Corte. Depois dela, partidos políticos, Congresso e organizações da sociedade civil ganharam esse poder. Foi por esse caminho que a Corte entendeu, por 6 votos a 5, que é constitucional a lei que permite experiências com células-tronco.
Além disso, mudanças introduzidas na Constituição em 2004 criaram a súmula vinculante, instrumento que desafoga a Justiça com base nas decisões do STF. As decisões pacificadas pela Corte são consideradas como julgadas nas demais instâncias.
Hoje o STF recebe cerca de 1.200 processos por ano — volume que, para ser apreciado por 11 ministros, praticamente inviabiliza o aprofundamento nas questões de interesse público. O julgamento das células-tronco levou à primeira convocação de uma audiência pública na história do STF para discutir um tema. A segunda foi em 27 de junho, sobre a importação de pneus usados.
“Acho que teremos espaço para lidar com os processos de uma maneira diferenciada. A tendência agora é assumirmos uma postura de humildade e buscarmos mais subsídios das audiências públicas, dos peritos”, disse o presidente da Corte, ministro Gilmar Mendes.
“A maior participação social não é restrita ao STF. É um movimento mundial, uma tendência do nosso tempo. São as Cortes Supremas participando das soluções de questões que dividem a sociedade, nas quais os parlamentos têm dificuldade natural de tratar”, disse o ministro Joaquim Barbosa.
Entre os marcos da mudança está o momento em que o STF determinou ao Congresso que fossem nomeados, contra a vontade da base aliada, que compunha a maioria na ocasião, os membros para integrar a CPI dos Bingos, em 2005.
Na última semana, a Corte acolheu pedido das companhias telefônicas, que lhes reconheceu o direito de não fornecer à CPI dos Grampos informações sobre quem são seus clientes alvos de escutas telefônicas. Os ministros vêem neste tipo de questionamento uma judicialização da política, fato que os têm levado a atuar de maneira mais intensa nas querelas entre as esferas de poder da República.
“Hoje o Supremo Tribunal Federal se transformou em um protagonista relevante de grandes questões que compõem a agenda pública. Um dos exemplos claros dessa mudança decorre da judicialização das relações políticas, como ocorreu no caso da CPI dos Bingos. A Corte cumpriu sua missão, nos limites da competência constitucional, de garantir os direitos da minoria, até porque a maioria não investiga a si mesma”, afirmou o decano do tribunal, Celso de Mello.
Outro ponto a se considerar foi a apreciação do STF de um pedido de autorização do funcionalismo público para fazer greve. Pediam o aval do STF, diante da inexistência de uma lei para regulamentar a situação que deveria ter sido elaborada e votada pelo Congresso, mas não foi.
“Em certos temas, a inapetência legislativa do Congresso beirava a anorexia, e o STF ficava inerte também. Nós nos limitávamos a dizer que o Congresso estava em mora legislativa. Pela primeira vez dissemos: não é por falta de lei que vamos deixar de decidir”, disse o ministro Carlos Ayres Britto.
Nomeações de Lula
Ainda de acordo com reportagem da Folha, os ministros entrevistados — Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa, Ayres Britto, Celso de Mello, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio Mello — negam veementemente que o fato de o presidente Luiz Inácio Lula da Silva ter nomeado 7 dos 11 ministros tenha aparelhado a Corte. Em conjunto, tecem elogios à qualidade dos escolhidos.
No limite, como Ayres Britto, admitem que a nomeação de um maior número de ministros voltados para o Direito público possa ter pesado na mudança do perfil do Supremo.
“Não vejo impacto político, não, porque não se agradece com a toga. Temos aí o exemplo do mensalão, que demonstrou votos contrários a figuras importantes da política governamental em curso. O ideal é que não haja uma concentração tão grande. Mas foi uma circunstância”, afirma o ministro Marco Aurélio Mello.
Todos os entrevistados dizem que o STF não vota em blocos. No máximo, admitem tendências, como a progressista, segundo o presidente da Corte, que tende a dar a liberdade a presos sempre que haja respaldo nos termos da legislação processual penal.
Mendes procedeu dessa forma na Operação Satiagraha, quando concedeu, quase simultaneamente, dois habeas corpus que livraram da cadeia o banqueiro investigado Daniel Dantas, do Opportunity.
“Isso corresponde um pouco à tradição do STF, que tem se mostrado garantista, apesar de muito contestado. O tribunal é inequívoco na linha de evitar abusos. Se fosse para agradar a opinião pública, estariam aqui parlamentares, e não juízes”, declarou Mendes.
Revista Consultor Jurídico