Na base da escuta – Apuração de crime depende da utilização de grampo

A prisão de chefes de organizações criminosas no Brasil depende de métodos especiais de investigação, como escutas telefônicas, buscas e apreensões e até infiltração de agentes. Sem isso, diz o juiz federal Sérgio Fernando Moro, só serão presos a “mula [pessoa que transporta] num caso de contrabando”, nunca os chefes”.

A afirmação foi feita pelo juiz em entrevista à repórter Lilian Christofoletti, do jornal Folha de S.Paulo, publicada na edição desta segunda-feira (28/7). Moro foi um dos primeiros juízes a comandar vara especializada no combate à lavagem de dinheiro e atuou no ruidoso caso Banestado.

Assim como aconteceu com seu colega mais famoso, Fausto Martin De Sanctis, a Vara da qual Moro é titular, em Curitiba, já entrou em rota de colisão com decisões do Supremo Tribunal Federal. Em janeiro de 2006, para manter presos três empresários no caso Banestado, a primeira instância sobrepôs decisão que anulou um Habeas Corpus concedido pelo ministro Sepúlveda Pertence (HC 86.758).

O ministro Nelson Jobim, à época presidente da Corte, ao tomar conhecimento do fato, afirmou que cabe ao juiz de primeira instância cumprir as determinações do Supremo e não analisar o mérito de suas decisões. A liminar, que fora deferida pelo ministro Pertence em dezembro de 2005, deu liberdade provisória ao empresário Eliott Maurice Eskinazi.

Na decisão, Pertence também estendeu os efeitos da liminar aos co-réus Dany Lederman e Hélio Renato Laniado. No entanto, Moro decretou nova prisão preventiva de Laniado, que estava no exterior e foi preso na República Tcheca. Segundo sustentou o juiz, o relaxamento da prisão preventiva dos envolvidos no caso coloca em risco a possibilidade da futura aplicação da lei penal.

O ministro Jobim ressaltou que o juiz deixou de cumprir a decisão e passou a analisar o processo. “Nesse momento não lhe competia adentrar o mérito de decisão do Supremo Tribunal Federal”, concluiu Jobim na análise do Habeas Corpus.

No caso da investigação contra Daniel Dantas, segundo Sérgio Fernando Moro, o que causou indignação à magistratura foi o fato de, depois de mandar soltar Daniel Dantas pela segunda vez, o ministro Gilmar Mendes ter encaminhado o caso para análise do Conselho Nacional de Justiça. “A indignação foi justificada porque não se pode punir um juiz que pense diferente. Sem liberdade, não há juízes independentes”, afirmou moro na entrevista.

Ele ainda disse que não houve afronta ao STF. “O que havia primeiro era uma prisão temporária. Depois, a preventiva. Os fundamentos de cada uma são diferentes.” Juiz há 12 anos, Moro rechaça comparação entre o juiz engajado brasileiro e o juiz de instrução da Itália, que participa de toda a investigação. Sobre o projeto de lei que torna inviolável o escritório de advogados, o juiz diz que isso traz o risco de transformar o escritório em um “depósito de provas de crimes”.

Leia a entrevista concedida ao jornal Folha de S.Paulo

Até que ponto o juiz pode se envolver no combate ao crime sem perder a imparcialidade?

Sérgio Fernando Moro — A função do juiz é muito clara, ele julga os casos que lhe são apresentados. Em alguns casos, a investigação depende de certas ordens judiciais, como a interceptação telefônica ou a quebra do sigilo bancário. Aí o juiz se vê envolvido já na fase de investigação. A função dele é autorizar ou não. Como juiz, ele tem um compromisso de fazer justiça aplicando a lei. As pessoas falam da neutralidade do juiz. Isso é correto. Mas o juiz também tem um compromisso com o bom resultado do processo.

O juiz engajado se aproxima do juizado de instrução da Itália?

Moro — Não, nem caminhamos para isso. Na Europa, alguns países já abandonaram esse modelo, que é diferente da nossa tradição. É mais útil tentar arrumar os erros do nosso modelo. Nosso problema não passa pelo juizado de instrução.

E por onde passa?

Moro — O grande problema da Justiça criminal é que muitas vezes ela é disfuncional. Os recursos disponíveis são escassos e mal focalizados. Há mil processos contra “mulas” do tráfico, mas poucos contra o chefe da organização. A vantagem da especialização é permitir que uma unidade do Judiciário, a vara especializada, foque recursos nos casos mais complicados. Quando eu trabalhava em varas não especializadas, sempre procurava dar atenção aos processos mais complicados. Na prática, o juiz, oprimido pela estatística, acaba julgando os mais simples. Ao especializar, cuidará dos complicados.

O Ministério Público é eficiente contra o crime organizado?

Moro — O Ministério Público é um órgão muito heterogêneo. Tem bons procuradores e outros nem tanto. É preciso maior envolvimento de uma parcela do Ministério Público com a investigação e o processo.

E a PF? Há “espetacularização” das operações?

Moro — O combate e a prevenção ao crime têm muito de simbólico porque não há a possibilidade de se investigar e punir todos os crimes. Existe um efeito preventivo nas investigações, há a expectativa de que se coíba a prática de crimes. Por isso, alguma publicidade é importante. Porém, quando transcende a mera publicidade e se busca a “espetacularização”, deve ser reprovado.

Para os advogados, as algemas e as prisões temporárias são usadas para humilhar o investigado.

Moro — Para os policiais, o uso de algemas é questão de segurança pessoal. A prisão temporária é de cinco a dez dias. Nas grandes operações, quando há necessidade de se realizar buscas e apreensões, o investigado solto pode destruir provas.

Há exagero na decretação de prisões preventivas?

Moro — Direito não é matemática. Pessoas razoáveis podem divergir sobre a necessidade da prisão preventiva. Essas divergências não devem levar a uma conclusão no sentido de que quem decreta [a prisão] é arbitrário e quem concede a liberdade age de maneira inadequada. Se examinarmos os casos envolvendo criminosos de colarinho branco, a grande maioria responde em liberdade. Eu não vejo esse excesso de prisão como é alardeado.

Existe um uso indiscriminado de escutas telefônicas?

Moro — Tem muita mistificação. Os crimes complexos, como os de colarinho branco, estão envoltos em um manto de segredo. No mundo inteiro, é necessário o uso de métodos especiais de investigação para que esses crimes sejam descobertos. Entre eles está a interceptação telefônica. Pode-se limitar mais o uso desse recurso, mas com uma conseqüência negativa para a investigação. Num caso de tráfico, por exemplo, o objetivo não é a mera apreensão de drogas, mas a identificação de toda a organização criminosa.

Por que são comuns interceptações de dois, três anos?

Moro — Num juízo abstrato, dois anos de escuta podem parecer abusivos, mas os casos concretos demandam tratamentos especiais. Nos EUA, não se faz tanta interceptação. Mas eles usam a escuta ambiental, instalam dispositivos nas casas dos mafiosos. Usam a delação premiada e a infiltração de agentes. Isso acontece porque o crime hoje é muito mais complexo. Sem esses métodos, não há condições de se desenvolver um bom processo contra os chefes. Pegamos a “mula” num caso de contrabando, nunca os chefes. Nós podemos abdicar desses métodos, porém iremos processar só quem está na base da pirâmide.

Como o senhor avalia o Brasil no combate ao crime organizado?

Moro — Evoluiu bastante nos últimos anos. A PF deu um salto grande. O Ministério Público se profissionalizou. A Justiça também vai melhorando. Agora, na perspectiva de copo meio cheio e copo meio vazio, temos no máximo um quarto de copo cheio. Ainda precisa melhorar. O grande problema é a morosidade e, para resolver isso, só alterando o sistema de recursos. Somos o país dos recursos. É a Justiça que nunca termina.

Como a Justiça nunca termina, as prisões com o uso de algemas acabam sendo a punição?

Moro — Em boa parte dos casos, é isso que vai acontecer. O processo não vai terminar. A punição que houve, que é uma coisa inadequada, é a prisão temporária ou preventiva que não tenha chegado até o final do processo. Infelizmente é a realidade, com exceções.

O senhor acha que deveria diminuir o número de instâncias?

Moro — Com certeza. Estou numa vara especializada desde 2003 e tenho processos que foram julgados ainda em 2003. É um trâmite até que bastante rápido para a primeira instância. Mas, até hoje, não tenho processo que percorreu todas as instâncias. Quando a pessoa recorre, mesmo quando a prova é cabal, não transita em julgado porque o sistema não funciona.

Como deve ser a postura do magistrado?

Moro — A lei é para ser a expressão da vontade popular. O juiz não pode ser um alienado do que acontece. O juiz deve decidir segundo a lei, mas deve ser inserido no seu contexto social, tem de ser engajado. Não pode ser um burocrata que fique satisfeito com estatísticas, não pode esquecer da necessidade de os julgamentos se refletirem na modificação da realidade.

No caso Dantas, o juiz de 1ª instância mandou prender o banqueiro, o Supremo mandou soltar. Como o senhor avalia o que ocorreu?

Moro — Não comento decisão judicial. O que causou indignação foi o fato de, após a decisão do ministro Gilmar Mendes, ele ter solicitado a adoção de medidas disciplinares. A indignação foi justificada porque não se pode punir um juiz que pense diferente. Sem liberdade, não há juízes independentes. Mas o ministro voltou atrás e o episódio foi encerrado.

Mendes pulou as instâncias ao julgar um caso de 1º grau?

Moro — Não comento isso.

Houve afronta ao STF?

Moro — De forma nenhuma. O que havia primeiro era uma prisão temporária. Depois, a preventiva. Os fundamentos de cada uma são diferentes.

Um mesmo habeas corpus poderia anular as duas?

Moro — [risos] Não comento.

O que o senhor acha do projeto que torna o escritório do advogado inviolável?

Moro — O risco é transformar o escritório de advogados em um depósito de provas de crimes. A Associação dos Juízes Federais do Brasil se posicionou contra. É forçoso reconhecer que é necessária a proteção da relação entre cliente e advogado, mas não ao extremo. Se isso for feito, criminosos e, às vezes, advogados mal intencionados podem se valer desse expediente para evitar a investigação.

Revista Consultor Jurídico

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