Nepotismo: o STF pode legislar?

No nosso livro Do Estado de Direito constitucional e transnacional: riscos e precauções (Gomes, L. F. e Vigo, R.L., São Paulo: Premier, 2008, p. 157) analisamos, detalhadamente, os dezoito mais preocupantes riscos que rondam o denominado Estado de Direito constitucional. Um deles diz respeito à “judicialização do Direito”, ou seja, os juízes é que dão a configuração final do Direito e isso pode ser feito de modo equivocado e autoritário. Particularmente no que diz respeito ao STF, ele pode criar normas obrigatórias, a partir de textos constitucionais, sem a interposição da lei e do legislador? Numa espécie de ativismo normatizante, ele pode invadir competência alheia e disciplinar assuntos ainda não cuidados pelo Poder Legislativo?

Nos últimos tempos nossa máxima Corte, sob o império do neoconstitucionalismo (Alexy, Dworkin, Zagrebelsky, Ferrajoli, Nino etc.), vem assumindo, com toda clareza, essa anômala função. Fez isso na regulamentação da fidelidade partidária, disciplinou depois os limites do uso das algemas (Súmula Vinculante 11) e, agora, acaba editar a Súmula Vinculante 13, que cuida da proibição do nepotismo, direto ou cruzado (nos três poderes).

O Senado havia aprovado regras sobre o nepotismo em 1997. Desde essa época a Câmara dos Deputados “empurra o assunto com a barriga”. Uma das principais razões para a edição da Súmula Vinculante 13, pelo STF, reside nessa omissão legislativa. Durante décadas essa Corte Suprema, sob o império da visão legalista (todo o Direito está fundado na lei), sempre aceitou servilmente a renitente omissão do legislador. Dizia-se: sem lei nada pode ser feito.

Agora, com a vigência da matriz constitucionalista, considerando-se que a lei foi destronada e que a importância do legislador foi mitigada, uma vez constatado o vácuo legislativo, vem o STF assumindo uma nova postura, a de regrador geral do país. Ou seja: tolerância zero para as omissões legislativas! Se quem dá as regras tem as rédeas na mão, parece lícito concluir que o STF, decisivamente, no século XXI, está assumindo o posto de “senhor do Direito”.

Alguns parlamentares, pouco afeitos ao novo paradigma do neoconstitucionalismo, vêm se insurgindo contra as recentes decisões do STF. Falam em invasão de competência, esvaziamento do legislativo etc. As críticas, de um modo geral, não procedem porque o STF, ao editar súmulas vinculantes, está agindo dentro do que lhe permite a Constituição Federal (aprovada pelo próprio Congresso Nacional).

De qualquer modo, é certo que o novo ativismo judicial (do STF) está impregnado de vários riscos. O primeiro reside no enfraquecimento da democracia. Os parlamentares são os legítimos e diretos representantes do povo. Seu produto legislativo, portanto, quando compatível com a Constituição, é muito mais democrático que uma norma do judiciário. Atuando o STF como “legislador ativo”, há sempre também o risco de “aristocratização do Direito” (ou seja: o Direito pode derivar de uma casta elitizada, não da vontade dos representantes do povo). Conforme a composição do STF, pode-se ademais descambar para uma “hipermoralização do Direito” (que significa priorizar as regras morais sobre o direito positivado).

Caso os magistrados do STF venham a se engajar com as ondas involutivas do Estado de Polícia, há também o risco de “hitlerização do Direito” (direito nazista). Se conferirem primazia para a religião, em detrimento das regras jurídicas, há o risco da “fundamentalização do Direito” (direito fundamentalista). Se não observarem nenhuma regra vigente no momento das decisões, pode-se chegar à “alternativização do Direito” (direito alternativo). O Direito construído pelo STF, de outro lado, pode resultar absurdamente “antigarantista” (aliás, essa é a censura que muitos já estão fazendo em relação à Súmula Vinculante n. 5, que dispensa a presença de advogado nos processos disciplinares).

Para se evitar a ocorrência de qualquer um desses riscos, quais precauções podem ser tomadas? Várias: o Poder Legislativo não pode ser um poder omisso. De outro lado, impõe-se melhorar a técnica legislativa e, ao mesmo tempo, o legislador não pode ter pretensões monopolizantes (deve fazer leis mais modestas, mais genéricas). É preciso, ademais, justificar melhor suas opções legisferantes, evitando-se a produção autoritária de normas. O Poder Legislativo, embora eleito diretamente pelo povo, não deveria nunca mandar a sanção presidencial uma nova lei, sem antes ouvir, depois de redigido o texto, uma comissão de especialistas no assunto.

E os magistrados do STF, que devem fazer? Se os juízes dão a última configuração do Direito, impõe-se descobri-lo profundamente. De outro lado, mais cultura constitucional, mais filosofia jurídica e, acima de tudo, vigilância permanente no seu “autocontrole”. O self-restaint deve conduzir tais juízes à ponderação, ao equilíbrio e à reflexão. O confronto de opiniões é inevitável, assim como a consulta à jurisprudência constitucional dos tribunais e países que contam com similitude cultural com o Brasil.

Por ora o STF vem “legislando” adequadamente, mas no exercício dessa função não pode se julgar soberano, nem soberbo. O risco de uma produção legislativa autoritária nunca pode ser menosprezado.

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Luiz Flávio Gomes
doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN), consultor, parecerista, fundador e presidente da Cursos Luiz Flávio Gomes (LFG) – primeira rede de ensino telepresencial do Brasil e da América Latina, líder mundial em cursos preparatórios telepresenciais

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