O Supremo Tribunal Federal fez história esta semana ao concluir, depois de sete meses, o julgamento da ação movida por dois senadores de Roraima contra o decreto de 2005 do presidente Lula que homologou a reserva indígena Raposa Serra do Sol, em terra contínua, e determinou a saída dos não índios dessa área de 1,7 milhão de hectares, na fronteira do estado com a Guiana e a Venezuela.
A reserva, onde vivem cerca de 19 mil indígenas de cinco etnias, havia sido demarcada em 1998, no governo Fernando Henrique. Desde então, agravaram-se dramaticamente conflitos de décadas entre os aborígines e os agricultores do Sul que ali se haviam instalado, atraídos por incentivos fiscais, formando nessas terras públicas um arquipélago de arrozais. Outros plantadores se agregaram a eles mesmo depois da demarcação, apostando que a sua presença na reserva criaria um fato consumado. Perderam.
A questão estava tecnicamente liquidada desde dezembro, quando o julgamento no Supremo foi interrompido por um pedido de vista do ministro Marco Aurélio, em razão do voto de oito dos seus colegas pela constitucionalidade da configuração contínua da reserva, com a consequente retirada compulsória dos arrozeiros que reivindicavam para si uma área de 100 mil hectares. Dos três ministros que faltavam votar, apenas Marco Aurélio se manifestou contra a reserva, com o que o resultado final foi de 10 a 1 em apoio à posição do governo.
Na ordem do dia está agora a saída — “imediatamente a curto prazo”, na expressão do relator do processo, Carlos Ayres Britto — das cerca de 50 famílias de agricultores que permanecem na região. Já na escala das grandes questões nacionais, o fundamental foram as regras fixadas pelo STF para as reservas existentes e as diretrizes para as futuras demarcações. Nisso reside o caráter histórico da decisão.
Com 19 pontos, o “estatuto das reservas”, ou o “modelo demarcatório”, como o conjunto vem sendo chamado, impede a formação de verdadeiros Estados indígenas. Os índios têm o usufruto das terras demarcadas, mas elas continuam pertencendo à União. Com autorização do Congresso, o governo federal poderá explorar os recursos hídricos e riquezas minerais da área. O ingresso, a qualquer momento, das Forças Armadas e da Polícia Federal, bem como a construção de instalações militares, não dependerá de consulta nem às comunidades indígenas nem à Funai. O usufruto tampouco impedirá a União de criar nas reservas redes de comunicação, vias de transporte e outros serviços públicos. Os indígenas não poderão explorar recursos energéticos, garimpar, cobrar tarifas ou pedágios nem arrendar terras. Já a presença de não índios nas áreas demarcadas deverá obedecer a normas da Funai. E em nenhuma hipótese eles poderão caçar, pescar ou exercer ali atividades agropecuárias.
Duas inovações são especialmente significativas. Uma proíbe a ampliação de reservas já demarcadas. A outra assegura “a efetiva participação dos entes federativos (União, Estados e municípios) em todas as etapas do processo de demarcação”. Já não sem tempo, a norma acaba com o poder discricionário da Funai de implantar reservas.
No seu solitário voto vencido, o ministro Marco Aurélio ressaltou que “a demarcação correta” só pode resultar do devido processo legal e não de iniciativas de alegado resgate da dívida do país com as suas populações ancestrais. As reservas criadas a partir disso contêm inevitavelmente vícios de origem. A Funai, até agora agindo a seu bel-prazer, decide demarcar determinada área indígena e então dá os passos necessários que justificariam a existência da reserva, como a emissão de laudos antropológicos sob medida. Faz, em suma, uma conta de chegar, em vez de examinar primeiro os pedidos de demarcação para, aí sim, se manifestar sobre a sua procedência. Não é à toa que 22 ações a respeito deram entrada no Supremo Tribunal.
“O processo de demarcação é muito sério para ser tratado pela Funai”, observou o presidente do STF, Gilmar Mendes, ao proferir o seu voto. E, se depender de um projeto dos deputados Aldo Rebelo (PC do B-RJ) e Ibsen Pinheiro (PMDB-RS), além da participação dos entes federativos no seu trâmite, as futuras demarcações precisarão ser aprovadas pelo Congresso Nacional.