O futuro da inteligência artificial no direito brasileiro

Escreveu:
Gustavo Rinaldi
Partner da empresa Acorn Advisory
https://acornad.com.br/


À medida em que inteligência artificial avança, o campo do Direito enfrenta uma transformação semelhante à disputa “Táxi x Uber”. Advogados que resistirem às novas tecnologias e tendências correm o risco de obsolescência, de forma que a adaptação é crucial para evitar ficar para trás no dinâmico ambiente jurídico atual.


A discussão sobre a Inteligência Artificial (IA) e os impactos que terá no cotidiano, é, atualmente, uma das pautas mais relevantes no que diz respeito ao futuro da sociedade. A ascensão do ChatGPT, por exemplo, sinaliza uma marcante era de mudanças, caracterizada pelo aumento da acessibilidade e democratização da informação.

Diversos setores sofrerão os impactos da nova tecnologia, principalmente no Brasil, que graças ao seu vasto mercado e ecossistema de inovação em desenvolvimento engloba as condições necessárias para se posicionar como uma potência em IA. Os efeitos da implementação desse mecanismo no setor jurídico evidencia as transformações provocadas pela tecnologia e suas implicações futuras no ambiente legal.

A análise a seguir abordará o uso da IA no ecossistema jurídico, explorando o desenvolvimento e as aplicações práticas dessas tecnologias no Brasil.

A IA como Ferramenta de Ampliação da Capacidade Analítica e Decisória.
Desde a criação da inteligência artificial, há uma crescente preocupação no debate público, com a potencial substituição dos seres humanos por máquinas. Este tema se estende por diversos setores, incluindo o campo do Direito, onde a IA promete transformar radicalmente as práticas e estruturas tradicionais. À medida em que a tecnologia evolui, ela oferece a capacidade de automatizar tarefas complexas e realizar análises de dados em uma escala que desafia a capacidade humana, suscitando tanto oportunidades quanto desafios significativos.

Um estudo realizado pelo Goldman Sachs em 2023 estima que a IA generativa poderá substituir, até um quarto dos empregos atuais, em uma escala global impactando cerca de 300 milhões de pessoas. Os setores mais afetados incluem trabalhos administrativos e de escritório, profissionais da área de Direito, arquitetura e engenharia.

Conforme descrito anteriormente, o relatório em questão destaca, por meio do gráfico abaixo a tendência observada nos dados analisados.

Percentagem de emprego na indústria exposta à automação por IA: USA

Fonte: Goldman Sachs

Os setores de “Office and Administrative Support” e “Legal” serão os mais afetados, apresentando índices significativamente mais altos que outros setores.

Com base no estudo do Goldman Sachs, os economistas apresentaram uma projeção específica para o Brasil: estima-se que 25% da força de trabalho brasileira poderia ser substituída por automações de IA, uma proporção que supera a média global. Esta tendência é acompanhada por países como China, Índia e México.

À medida em que inteligência artificial avança, o campo do Direito enfrenta uma transformação semelhante à disputa “Táxi x Uber”. Advogados que resistirem às novas tecnologias e tendências correm o risco de obsolescência, de forma que a adaptação é crucial para evitar ficar para trás no dinâmico ambiente jurídico atual.

O surgimento exponencial das empresas Tech jurídicas e a redefinição do panorama nacional
O Brasil se destaca como um dos principais mercados globais de empresas que desenvolvem serviços tecnológicos voltados para o mercado jurídico impulsionado pela alta demanda de advogados e pelo volume de processos judiciais em um sistema legal complexo. Desde 1995, o número de cursos de Direito aumentou de 235 para quase 1.900, um aumento de mais de 700%. Com mais de 1,3 milhões de advogados, o Brasil possui a maior proporção de advogados por habitante no mundo, com um advogado para cada 164 habitantes. A existência de mais de 80 milhões de processos judiciais em curso cria um ambiente propício para o treinamento de inteligência artificial, onde a abundância de dados contribui para a precisão dos algoritmos. Este cenário único posiciona o Brasil de forma vantajosa no panorama mundial de tecnologia jurídica.

A evolução tecnológica acelerada e o grande surgimento de empresas do setor levaram a Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs (AB2L), uma associação sem fins lucrativos fundada em 2017, a realizar uma separação na classificação dessas empresas entre LawTechs e LegalTechs. As LawTechs são empresas que oferecem soluções para facilitar ações relacionadas ao universo das leis, criando produtos e serviços que abordam problemas específicos. Um exemplo são as empresas que oferecem análise e compilação de dados (analytics). As LegalTechs, por sua vez, se concentram nos operadores do Direito, buscando melhorar a produtividade de advogados, escritórios de advocacia e outros agentes envolvidos no sistema jurídico. Como exemplo, podemos citar empresas que agilizam a gestão e automatização de contratos e sistemas ERP (Enterprise Resource Planning ou sistemas de gestão integrado) para escritórios de advocacia.

As empresas que prestam serviços para o setor jurídico são projetadas para assegurar a privacidade dos dados utilizados, oferecendo uma segurança e especialização superiores em comparação com as Inteligências Artificiais Generativas, como o ChatGPT e o Gemini. Essas tecnologias são essenciais para atender necessidades específicas do mercado, como a criação de petições ou análise de documentos especializados, por exemplo.

Muitas pessoas acreditavam que o surgimento dessas empresas era uma ‘moda passageira’ e, que o advogado era insubstituível na tarefa. A pandemia nos mostrou justamente o contrário. Sem as Legaltechs e as Lawtechs, seria difícil manter o funcionamento eficiente da justiça brasileira, bem como dos escritórios de advocacia, departamentos jurídicos e tribunais. Essas tecnologias têm sido fundamentais para sustentar e melhorar as operações jurídicas no país. As empresas passaram a coexistir com os advogados e proporcionaram um aumento de produtividade e facilidade para todos os agentes da rede.

De acordo com a AB2L, o setor tem mostrado um crescimento robusto. Inicialmente, a organização contava com apenas 20 membros entre Lawtechs e Legaltechs, mas hoje reúne mais de 600 empresas, escritórios, departamentos jurídicos e profissionais autônomos.
Utilização da Inteligência Artificial no Setor Jurídico Global
No setor jurídico, as IAs podem ser utilizadas para análises rápidas, criando resumos e auxiliando na elaboração de documentos, petições e argumentos jurídicos. Esse processo não apenas economiza tempo, como também introduz uma precisão técnica que necessita de menor intervenção humana posteriormente. As ferramentas de IA são especialmente valorizadas por sua capacidade de oferecer sugestões baseadas em dados e direcionamentos específicos.

A IA tem sido amplamente utilizada pelos advogados através da jurimetria, que é a estatística aplicada ao direito. Essa ferramenta auxilia os profissionais a entenderem melhor as tendências e padrões em processos judiciais através da análise de dados, como, por exemplo, o histórico de decisões de um juiz sobre determinado assunto. A estatística aplicada à predição de sentenças possibilita a elaboração de petições mais assertivas e direcionadas, aumentando as chances de sucesso. Essas plataformas permitem que advogados e juristas obtenham “insights” valiosos sobre o tempo de espera de um processo judicial e outros aspectos processuais, melhorando a previsão de resultados e otimizando a gestão de casos.

A implementação de IA no Direito também envolve desafios significativos, especialmente em relação à confiabilidade e segurança dos dados. A integração de novas tecnologias exige uma infraestrutura robusta e um design cuidadoso para garantir que os dados sejam manuseados de forma segura e que as sugestões das IAs sejam precisas e úteis. Existe uma grande discussão sobre a aplicação de IA no Direito, em que muitas vezes inclui um debate sobre o equilíbrio entre inovação tecnológica e a necessidade de manter a integridade e a confidencialidade das informações jurídicas.

A IA está redefinindo o papel do profissional jurídico, assim como a estrutura do setor público legal. Com a automação de tarefas rotineiras e a introdução de sistemas que podem analisar e gerir dados de forma mais eficiente, tanto escritórios de advocacia quanto tribunais estão passando por uma transformação nos seus processos internos.

A execução das atividades jurídicas é mais rápida e uniforme, reduzindo o viés humano e melhorando a consistência das operações jurídicas. Esta evolução não só beneficia grandes escritórios com alto volume de trabalho, mas também estende suas vantagens aos pequenos escritórios, aumentando a eficiência do setor como um todo.

O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luís Roberto Barroso, falou a jornalistas em maio de 2024 que, atualmente, o STF utiliza a inteligência artificial para agrupar processos por temas para verificar se os recursos abordam questões que já foram consolidadas em tema de repercussão geral, e, portanto, não devem subir para a Corte.

Em entrevista, o ministro mencionou sua expectativa de, no futuro, aprofundar o uso de IA na identificação e no respeito a precedentes vinculantes no STF. Além disso, pretende utilizar os sistemas que resumem processos com qualidade, mas sempre sob a supervisão de um magistrado. Abaixo, uma passagem da sua conversa com os jornalistas sobre a sua visão da utilização da inteligência artificial:

“Em um futuro não muito distante, pelo menos a primeira minuta de uma decisão judicial será feita pela inteligência artificial. Até porque a inteligência artificial tem mais capacidade de processar informações. Ou seja, o faz em maior volume e em maior velocidade. E temos de nos beneficiar disso. Portanto, não devemos temer o progresso. Apenas ter certeza de que conseguimos canalizá-lo para uma trilha ética”, avaliou Barroso.

A REGULAMENTAÇÃO E O DESAFIO ÉTICO NO USO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL NO DIREITO

Atualmente, existem duas grandes abordagens em relação à regulamentação da IA: os Estados Unidos e a Inglaterra adotam uma postura mais pragmática, focando em normativas relacionadas à segurança nacional que possam mitigar danos ao país. Por outro lado, a União Europeia está desenvolvendo leis para regular a Inteligência Artificial com base em diferentes níveis de risco, o que implica em mais ou menos regulamentação conforme o potencial de impacto da tecnologia. O grande desafio da ampla regulamentação proposta pela UE, que está sendo discutida de forma semelhante em projetos de lei no Brasil, é conseguir abarcar a utilização de IA, uma vez que a tecnologia não está necessariamente embutida em um produto ou serviço específico.

Uma sugestão é a criação de regulamentações específicas a partir de problemas concretos, evitando, assim, a abrangência excessiva que pode dar margem a interpretações variadas.

Podemos tomar como exemplo o Rio de Janeiro, que já utiliza a inteligência artificial com reconhecimento facial na segurança pública, podendo servir de base para a criação de uma regulamentação nacional específica para identificação de pessoas com imagens utilizando IA.

No cenário global, a importância recai sobre os debates em torno dos marcos regulatórios da IA. O maior desafio desses marcos é permitir a evolução da tecnologia sem restringi-la com um excesso de normativas, como as de proteção de dados (LGPD).

O grande desafio ético na criação das Inteligências Artificiais, que emulam o comportamento humano e a capacidade de raciocínio, está em garantir que elas recebam uma quantidade significativa de dados, analisem esses dados, extraiam “inputs” e incorporem valores morais e éticos sem discriminação ou vieses. Os algoritmos precisam ser frequentemente revisados para evitar vícios e falhas que possam resultar em julgamentos errôneos. Será necessário criar uma forma de coexistência entre a tecnologia emergente e os direitos já consagrados em nosso sistema.

MOVIMENTOS RECENTES DE M&A DO SETOR

A integração da IA nas Lawtechs e Legaltechs que representam o domínio de transações, é um testemunho do potencial transformador da tecnologia no setor.

Empresas como a Vela Software e a Softplan, por exemplo, têm expandido suas operações através de aquisições estratégicas que não só ampliam seu alcance no mercado, mas também incorporam capacidades avançadas da IA que podem oferecer soluções mais eficientes para desafios legais. Estas movimentações indicam uma clara tendência de que a IA está se tornando uma parte integrante e crucial da infraestrutura tecnológica no ambiente legal.

Além disso, transações como a aquisição recente da Lexion pela Docusing nos Estados Unidos evidenciam uma tendência global de valorização da IA na gestão de contratos e na análise de grandes volumes de dados legais. Embora essa transação seja internacional, ela tem implicações para o mercado brasileiro, indicando como as práticas internacionais podem influenciar e acelerar a adoção da IA no Brasil.

Ao integrar a tecnologia de IA, as empresas não apenas buscam eficiência, mas também configuram uma nova era de prática jurídica caracterizada pela precisão e pela capacidade de responder dinamicamente às necessidades legais complexas.

Veja algumas das transações mais relevantes:

Transações majoritária no Brasil

As transações destacadas acima não apenas refletem a consolidação em curso no mercado, mas também revelam as estratégias das empresas líderes para expandir suas capacidades e alcançar novos mercados.

• 2024: Dura Software adquiriu a Promad/Publicações Online, conforme detalhado no site da Promad, marcando um avanço significativo na oferta de soluções digitais para advogados.

• 2022: Em uma transação notável, a LawFinder comprou a Future Law, com foco na expansão de serviços jurídicos no metaverso, como informado pela BizNews.

• 2022: A Vela Software adquiriu a LD Software, ampliando seu portfólio de soluções tecnológicas para o setor jurídico, detalhado no IT Forum.

• 2022: Softplan fortaleceu sua posição no mercado ao adquirir Projuris, visando expandir seu portfólio com a inclusão da Projuris, que é especializada em soluções jurídicas.

As movimentações de M&A no setor jurídico refletem um compromisso mais amplo com a inovação tecnológica e preparam o terreno para um futuro em que a IA será uma ferramenta fundamental no direito.

Conclusão
Em direção a um futuro em que a inteligência artificial se torna cada vez mais fundamental na esfera jurídica, não apenas como um instrumento facilitador, mas também como um elemento transformador, com capacidade de analisar dados em escala e otimizar processos, a IA tem o potencial de redefinir as normas e a prática legal. Contudo, essas mudanças trazem consigo desafios éticos e regulatórios significativos que exigem atenção cuidadosa para garantir que os benefícios da tecnologia sejam maximizados sem comprometer a equidade e a justiça.

Walter Longo, renomado estrategista e visionário no campo da comunicação e da tecnologia e Sócio-Diretor na Unimark Comunicação, em sua abordagem sobre a IA, sugere que a verdadeira sabedoria no uso da tecnologia não reside em substituir o humano, mas em complementar suas capacidades e suprir suas limitações. Isso é iminente no âmbito do direito, em que a precisão e a imparcialidade são fundamentais. Assim, ao incorporar IA no Direito, devemos nos esforçar para que ela funcione como um amplificador das qualidades humanas, e não como uma substituta.

Portanto, o caminho a seguir com a IA no Direito é marcado pela necessidade de uma governança ética e uma vigilância regulatória que alinhe a inovação tecnológica com os princípios fundamentais da justiça. Somente por meio de uma integração cuidadosa que considera tanto as capacidades tecnológicas quanto as implicações morais poderemos efetivamente lidar com os desafios da nova era jurídica.


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