O artigo 265, do Código de Processo Penal, prevê multa ao defensor que abandonar a causa a não ser que haja um motivo “imperioso” e que seja comunicado, previamente, ao juiz. A multa varia de 10 a 100 salários mínimos. O Conselho Federal da OAB já entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, no Supremo Tribunal Federal, contra o dispositivo. Enquanto não há uma resposta da Corte, a Comissão de Defesa, Assistência e Prerrogativas da OAB do Rio de Janeiro tem pedido a suspensão da aplicação da multa.
A presidente da Cdap, advogada Fernanda Tórtima, conta que a comissão passou a se deparar com casos concretos envolvendo a condenação de advogados por suposto abandono de processo. Os advogados, afirma, procuraram a Cdap, que começou a atuar nesses casos, apresentando Mandados de Segurança.
“Já obtivemos duas vitórias”, afirma. Em um dos casos, a Cdap apresentou Mandado de Segurança, no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio de Janeiro e Espírito Santo) em favor de três advogados de Santa Catarina. Eles haviam sido condenados pelo juízo da 8ª Vara Federal Criminal do Rio.
O juízo entendeu que os três abandonaram a causa. Segundo a decisão, depois de já ter vencido o prazo, os advogados apresentaram petição em que pedia a remessa da cópia das alegações finais do Ministério Público Federal e a nomeação de defensor público para oferecer alegações finais, já que o réu não teria condições financeiras de arcar com o deslocamento dos advogados ao Rio. Considerando o tamanho da ação penal, que envolvia 20 réus presos, o juízo condenou os advogados a pagar multa de 20 salários mínimos cada um.
De acordo com a ação apresentada pela Cdap, os advogados ainda tentaram argumentar, pedindo a reconsideração da decisão e dizendo que havia dificuldades financeiras que impediram a defesa de apresentar as alegações no prazo. O juízo negou o pedido. Afirmou que os advogados poderiam ter acompanhado o processo pelo sistema eletrônico e deveriam ter informado a situação no início do prazo e não depois de a secretaria da Vara entrar em contato por telefone com a defesa.
Na ação, assinada pelos membros da Comissão Renato de Moraes, Alexandre Lopes de Oliveira, Eduardo de Moraes, Renato Hallak e Pedro Maurity, além da presidente, a Cdap afirma que os advogados pediram que as alegações do MPF fossem enviadas por e-mail e, caso o pedido fosse negado, a apresentação de defesa pelo defensor público.
Segundo a Cdap, antes mesmo da situação que levou os advogados a serem condenados, já havia sido comunicado ao juízo os problemas que a defesa vinha enfrentando. Uma delas, disse, foi a impossibilidade de participação efetiva nas audiências do réu e dos demais acusados. Outro argumento foi o de que o próprio juízo reconheceu que não houve abandono de causa. Isso porque, embora os advogados tivessem sido condenados por esse motivo, em abril de 2010, apresentaram apelação da sentença condenatória, publicada em junho do mesmo ano, recurso que foi recebido pelo juízo.
“Abandonar, segundo os léxicos, significa ir embora, deixar, desistir, núcleos incompatíveis com a responsabilidade profissional de quem, oportunamente, tanto que recebido, interpôs recurso contra decisão desfavorável ao constituinte”, argumentaram os membros da Cdap.
O desembargador Abel Gomes, relator do Mandado se Segurança no TRF-2, concedeu a liminar, por constatar os requisitos do fumus bonis iuris e periculum in mora. Em parecer, assinado pela procuradora da República Cristina Romano, o entendimento foi o de que não cabia ao juiz avaliar se as justificativas para o atraso eram pertinentes ou não, mas à OAB, levando-se em conta as normas éticas. A procuradora criticou o comportamento dos advogados, que considerou reprovável, mas entendeu que não tal situação não representava abandono processual.
A 1ª Turma Especializada do TRF-2 confirmou a liminar. Segundo Abel Gomes, ficou demonstrado por documentos que os advogados já haviam sinalizado dificuldades em atuar no caso, por serem de outro estado. Embora também tenha considerado a conduta dos advogados um tanto “negligente”, o tribunal entendeu que não cabia a condenação. “Tais embaraços ao trâmite do processo originário, em que, destaco, havia prazo assinalado por este e. Tribunal para que o Juízo a quo proferisse sentença, não são de monta a configurar abandono do processo”, entendeu.
Apenas uma fase
No segundo caso, foi apresentado Mandado de Segurança em favor de um advogado que havia sido contratado apenas para impetração de Habeas Corpus em favor de um acusado em ação penal. “O juiz presumiu de forma absolutamente arbitrária que ele teria a obrigação de atuar na defesa do sujeito no âmbito da ação penal”, afirma. Para ela, este caso é mais grave. “Qualquer operador do direito sabe — ou deveria saber — que sequer é necessário receber procuração para impetração de Habeas Corpus”, afirma.
De acordo com a ação apresentada pela Cdap, o advogado foi contratado pela família do acusado, que, em primeira instância, estava sendo defendido pela Defensoria Pública, para apresentar um Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e, diante da negativa, outro HC no Superior Tribunal de Justiça. Em primeira instância, o juízo de Iguaba Grande, na região dos Lagos, aplicou multa ao advogado por não ter apresentado a defesa preliminar. Dois dias depois da decisão, a Defensoria Pública apresentou resposta preliminar.
No início de fevereiro, o desembargador Paulo de Oliveira Lanzellotti Baldez, da 6ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça fluminense, concedeu a liminar para a suspender a cobrança da multa. “Verifica-se a presença do fumus bonis iuris e do periculum in mora, consubstanciado o primeiro na plausibilidade da alegação, consoante se depreende da documentação acostada aos autos, repousando o perigo da demora na possibilidade de imediata execução da multa imposta ao causídico, fator capaz de causar-lhe agressão grave e de difícil reparação”, entendeu o desembargador.
Dispositivo inconstitucional
Em março de 2010, o Conselho Federal da OAB entrou com uma ADI pedindo a declaração de inconstitucionalidade do artigo 265, do CPP. O relator da ADI é o ministro Dias Toffoli. Para a OAB, o dispositivo permite a aplicação de sanção sem observância ao devido processo legal. “O advogado é condenado ao pagamento de determinada multa sem que tenha a possibilidade de se defender”, diz Fernanda Tórtima.
Na ADI, a OAB explica que o CPP foi alterado com a Lei 11.719/2008, embora a essência do dispositivo que prevê multa ao advogado por abandono do processo continue a mesma. “Muito embora já existisse tal regramento no ordenamento jurídico não havia notícias de sua aplicação, nem de condenação de advogado no pagamento das multas que estipulava”, afirmou o Conselho Federal na ação. O efeito prático do artigo 265, diz a Ordem, era autorizar o juiz a não adiar audiência ou ato processual devido à ausência do advogado.
“A nova redação tornou a advocacia criminal um risco desmedido, pois é a única previsão legislativa existente no país que dispensa, para aplicação de uma pena, todas as garantias constitucionais do cidadão”, diz a OAB. Isso porque, sustenta, o contraditório e a ampla defesa são descartados. Segundo a Ordem, a aplicação da multa não pode ser discutida previamente e nem revista em sede recursal.
O Ministério Público Federal, em parecer na ADI, opinou pela improcedência da ação. Segundo o parecer, assinado pela vice-procuradora geral da República Deborah Duprat, a norma atende ao princípio da proporcionalidade. “É adequada, porque tem em vista uma prestação jurisdicional célere, com a garantia de uma defesa efetiva; é necessária, como único meio efetivo de inibir a desídia de advogados e os prejuízos processuais daí decorrentes; e é proporcional, porque permite ao juiz no caso concreto, dentro dos limites legais, aplicar o quantum adequado à conduta que se busca reprimir”, entendeu.
A Advocacia-Geral da União também se manifestou pela improcedência. Para a AGU, o contraditório e a ampla defesa foram assegurados. “A penalidade pecuniária somente será aplicada se o advogado colocar-se deliberadamente em posição omissa”, diz a AGU, em documento assinado pelo advogado-geral da União Luís Inácio Adams, a secretária-geral de Contencioso Grace Maria Mendonça e o advogado da União Álvaro Simeão. “Estando razoavelmente justificada a falta, não haverá abandono e, consequentemente, não será aplicada multa”, diz a AGU.
“A partir do momento em que é oportunizado o contraditório ao advogado, em muitos casos, o Judiciário reconhece que a aplicação da multa é indevida”, constata. Fernanda Tórtima afirma ser importante que as seccionais da OAB passem a questionar a aplicação indevida das multas. “Assim fazendo, estarão fortalecendo o argumento utilizado na Adin, no sentido de que artigo 265 do CPP é inconstitucional por permitir a aplicação de sanção sem o devido processo legal”, diz.
A presidente da Cdap afirma que, durante o Colégio de Presidentes de Comissões de Prerrogativas, ocorrido em outubro do ano passado, sugeriu que as Seccionais passassem a impugnar as condenações em casos concretos. A sugestão foi aprovada.