Editorial de O Estado de S. Paulo
Por causa da omissão do Congresso, que até hoje não elaborou todas as leis complementares exigidas pela Constituição de 88, 57 pequenos municípios estão vivendo uma situação de surrealismo institucional. Eles foram criados a partir de 1996, depois que o próprio Congresso e o Supremo Tribunal Federal decidiram que novos municípios somente poderiam ser criados após a regulamentação do parágrafo 4º do artigo 18 da Constituição. Incluído no capítulo da organização político-administrativa do estado, o dispositivo trata da criação, fusão e desmembramento de municípios e exige estudos de viabilidade fiscal e consulta prévia à população envolvida.
Em 1996, o Congresso aprovou a Emenda Constitucional 15, que determinou que novas cidades só poderiam ser criadas após a regulamentação desse dispositivo por lei complementar. Essa lei não foi aprovada até hoje, mas algumas unidades da Federação disciplinaram a matéria em suas Constituições estaduais, permitindo o desmembramento e a emancipação de municípios. Na época, o Ministério Público Federal entrou com recurso no STF, impugnando a criação de 57 cidades, sob a justificativa de que, pelo princípio da hierarquia das leis, as Cartas estaduais não podem contrariar a Constituição Federal.
Em 2006, o STF acolheu o recurso, decidiu que a criação desses 57 municípios era inconstitucional e fixou o prazo de dois anos para que o Congresso regulamentasse o parágrafo 4º do artigo 18 da Carta Magna. O prazo se esgota em outubro e, se o Senado e a Câmara não votarem às pressas essa lei, os 57 municípios perderão a autonomia jurídica e terão de voltar a ser distritos. O problema é que, dez anos após sua emancipação, essas cidades já têm instituições consolidadas, recebem regularmente da União as cotas do Fundo de Participação dos Municípios, mantêm um corpo de servidores selecionados por concurso e os órgãos públicos locais são responsáveis pela prestação de serviços essenciais de educação e saúde à comunidade.
O fato é que, ainda que quase todos os 57 municípios dependam de recursos federais para sobreviver, eles existem de fato, e terão de passar por um complicado processo de reversão de seu status jurídico, caso o Congresso não cumpra até outubro o que foi determinado pelo STF. “Vivemos na incerteza. Nem sei se faço campanha para as próximas eleições. Não sabemos mais se seremos uma cidade ou não”, diz o presidente da Câmara Municipal de Campo Limpo, antigo distrito de Anápolis, em Goiás. “A gente já está no mapa”, afirma o prefeito Joaquim Duarte. A cidade tem uma receita mensal de R$ 600 mil, dos quais só R$ 150 mil são provenientes da arrecadação de impostos municipais. Os restantes R$ 450 mil vêm de repasses federais.
Entre uma situação de fato e a decisão que tomou há dois anos, para evitar a proliferação desenfreada de municípios sem condições de sobreviver com recursos fiscais próprios, o STF está numa posição difícil. “O direito não pode ser lírico, deve ter conteúdo. Ficamos com uma Constituição que não tem eficácia”, diz o ministro Marco Aurélio Mello. No julgamento do recurso impetrado pelo Ministério Público Federal, em 2006, alguns ministros defenderam a tese de que “não se anulam fatos”. Segundo eles, apesar da criação dos 57 municípios ter violado regra constitucional, não haveria como reverter a situação por meio de decisão judicial. A tese acabou sendo rejeitada após acirrados debates, sob o argumento de que a admissão de fatos consumados contra a Constituição compromete a segurança jurídica e o Estado de Direito.
Reconhecendo a responsabilidade do Legislativo na criação de situações absurdas, como a em que se encontram os 57 municípios cuja criação foi declarada inconstitucional pelo STF, o presidente da Câmara, Arlindo Chinaglia (PT-SP), anunciou a criação de uma comissão encarregada de identificar as leis complementares que precisam ser feitas em regime de urgência. A idéia é aprovar o mais rapidamente possível o que deveria ter sido votado há 20 anos, logo após a promulgação da Constituição. Os levantamentos mostram que precisam ser regulamentados 51 dispositivos da Carta. A insegurança jurídica e o permanente risco de confusões institucionais são o preço que o país tem de pagar pela omissão do Congresso.
Editorial do jornal O Estado de S. Paulo, originalmente publicado na edição de sábado (31/5).
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