Operação Condor – Marco Aurélio aplica Lei da Anistia para negar extradição

por Lilian Matsuura

O seqüestro é considerado crime permanente, que dura enquanto a pessoa estiver em cativeiro. No caso do major do Exército uruguaio Manuel Juan Cordero Piacentini, acusado de participar do sumiço de um cidadão argentino há 32 anos, durante a Operação Condor, o ministro Marco Aurélio afastou a acusação de seqüestro. Como relator do assunto, aplicou a presunção de morte em caso de desaparecimento, prevista na Lei de Anistia, o que caracteriza o crime de homicídio, e não de seqüestro. O pedido de Extradição feito pelo governo da Argentina e do Uruguai foi rejeitado pelo ministro.

A Lei 9.140, de 4 de dezembro de 1995, também reconheceu como mortas pessoas desaparecidas por conta da participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988. Além disso, Marco Aurélio explicou que o crime de homicídio, pela legislação brasileira, prescreve em 20 anos.

“Presente o sentido vernacular do vocábulo desaparecimento — ato de sumir, desaparecer —, não há como cogitar da dupla tipicidade relativamente ao disposto no Código Penal brasileiro sobre o seqüestro, a revelar a existência de crime permanente”, escreveu o relator em seu voto.

“Não podemos conceber que, depois da modificação do regime de governo dos países que teriam participado da Operação Condor, o cidadão ainda esteja guardado. Ele já teria aparecido”, declarou Marco Aurélio à revista Consultor Jurídico, nesta quinta-feira (11/9). Segundo o ministro, a operação tinha o objetivo de alijar as pessoas que pudessem colocar em perigo o regime em vigor à época. Portanto, não faz sentido que ele estivesse seqüestrado ainda hoje.

Piacentini é acusado de formação de quadrilha e seqüestro de um cidadão argentino em 1976, durante os anos da Operação Condor, plano de repressão montado por governos de países da América do Sul durante a ditadura militar. Ele foi preso no Brasil em 2007, em Santana do Livramento, fronteira com Rivera, Uruguai. O major estava foragido, com um pedido de prisão expedido pela Justiça uruguaia.

O crime de formação de quadrilha já estava prescrito, de acordo com o parecer do próprio Ministério Público.

Há no Supremo Tribunal Federal quatro votos, incluindo o de Marco Aurélio, contra a extradição do major. O ministro Ricardo Lewandowski abriu divergência. Cezar Peluso pediu vista dos autos. Celso de Mello, Carlos Britto e Joaquim Barbosa não estavam presentes à sessão.

Marco Aurélio declarou que tanto a legislação brasileira quanto a argentina contemplam a figura da morte presumida. No Brasil, está prevista na Lei 6.683/79, que anistiou os que cometeram crimes políticos ou conexos com estes, de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979. Além disso,

O relator observou que se o major uruguaio tivesse cometido o crime no Brasil ele não estaria sujeito à persecução criminal, de acordo com a Lei de Anistia. Aceitar o pedido de Extradição do major do Exército uruguaio Juan Manuel Cordero Piacentini seria o mesmo que anular a anistia, disse Marco Aurélio. “Afastar a lei de anistia é um retrocesso dos mais nefastos. A anistia é definitiva, é uma virada de página”, disse o ministro como uma forma de aviso aos que participam de um movimento que pretende reabrir esta discussão.

“Em última análise, o Supremo está a enfrentar, neste caso, na via indireta, é certo, a problemática alusiva a tema que, há pouco, esteve em voga — o alcance da anistia. Se deferida esta extradição, assentar-se-á a viabilidade de persecução criminal, de responsabilidade administrativa e civil, no tocante a fatos cobertos pela anistia e, então, esvaziada na essência será esta última, não mais implicando a suplantação de quadra indesejada”, escreveu o relator.

Menezes Direito, Cármen Lúcia e Eros Grau seguiram o voto do relator. Direito observou que o entendimento de afastar a acusação de seqüestro terá repercussão na tipificação do crime de seqüestro. “É uma questão extremamente relevante”, disse ao acompanhar Marco Aurélio.

Ricardo Lewandowski votou no sentido de que se trata de crime permanente, uma vez que, embora tenha acontecido há mais de três décadas, “muitos bebês foram tirados de suas mães no cárcere”. Essas pessoas, hoje, estão em outra família, com nomes trocados e muitos ainda não sabem quem são seus verdadeiros pais.

Cezar Peluso pediu vista, por ter dúvidas em relação ao reconhecimento do crime de homicídio sem o corpo de delito.

EXT 1.079 e EXT 974

Leia o voto de Marco Aurélio

*TEXTO SUJEITO A REVISÃO

EXTRADIÇÃO 974-5 REPÚBLICA ARGENTINA

RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO

REQUERENTE(S): GOVERNO DA REPÚBLICA ARGENTINA

EXTRADITANDO(A/S): MANOEL CORDEIRO PIACENTINI OU MANUEL CORDERO PIACENTINI OU MANUEL CORDERO

ADVOGADO(A/S): JULIO MARTIN FAVERO

RELATÓRIO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO — Eis como a Assessoria sintetizou as balizas retratadas neste processo:

O Governo da Argentina formalizou pleito de extradição do nacional uruguaio Manoel Cordeiro Paicentini ou Manuel Cordero Piacentini ou Manuel Cordero, a fim de submetê-lo a processo judicial no qual lhe é imputada a prática dos crimes previstos nos artigos 210 — “Será reprimido com prisão ou reclusão de três a dez anos, aquele que fizesse parte de uma associação ilícita ou banda de três ou mais pessoas, destinadas a cometer crimes, pelo só fato de serem membros da associação” — (duas vezes) e 144, alínea 1ª — “O funcionário público que, abusando das suas funções ou sem as formalidades prescritas pela lei, privasse a qualquer pessoa da sua liberdade pessoal” — (duas vezes), ambos do Código Penal argentino.

O extraditando formulou pedido de refúgio (folha 140), razão pela qual foi sobrestado o processo. Negado o requerimento (folha 159), sobreveio a prisão do extraditando (folhas 161 e 162), efetivada em 26 de fevereiro de 2007 (folha 359).

O extraditando foi interrogado (folha 450 a 464) e apresentou defesa (folha 472 a 476), na qual aduziu que o Estado requerente não teria especificado as condutas a ele atribuídas. Anotou o caráter político do pedido, ressaltando o fato de haver recebido indulto do Governo argentino por meio do Decreto nº 1.003/89. Sustenta que os crimes imputados estariam prescritos. Busca, então, o indeferimento do pleito de extradição.

Ocorreu a juntada de novos documentos pelo Estado requerente (folhas 498 a 827 e 886 a 1221) e o extraditando foi intimado a manifestar-se sobre eles (folha 1672). Não houve o acolhimento do pleito de liberdade provisória apresentado pelo extraditando (folha 1467 a 1471).

Ante a possibilidade de coincidência de pedidos, Vossa Excelência determinou fosse anexado a este processo o da Extradição nº 1.079, em que o Governo do Uruguai objetiva a entrega do extraditando para ser julgado pelos delitos de privação de liberdade e de associação para delinqüir.

Devidamente instruídos, os processos foram encaminhados à Procuradoria Geral da República, que, no parecer de folha 1662 a 1670, traça um paralelo entre as condutas atribuídas ao extraditando pelo Governo da Argentina e pelo do Uruguai. Assevera que os fatos narrados em ambos os casos dizem respeito ao desaparecimento de Adalberto Waldemar Soba Fernandez, ocorrido em 1976 na Argentina. Estabelecida essa premissa, afirma que, nos termos do artigo 25, item 2, alínea “a”, do Tratado de Extradição celebrado entre os países integrantes do Mercosul, tem preferência na apreciação do pedido extradicional o Estado em cujo território foi cometido o delito. Daí a precedência no exame da pretensão deduzida na Extradição nº 974, do Governo da República da Argentina.

Relativamente ao mérito, aduz que o Estado requerente dispõe de competência jurisdicional para processar e julgar os crimes imputados ao extraditando, consoante o disposto no artigo 78, inciso I, da Lei nº 6.815/80. O processo está instruído com cópias do mandado de prisão expedido pela autoridade competente e dos demais documentos exigidos pelo artigo 80 do Estatuto do Estrangeiro, havendo indicações seguras sobre o local, data, natureza e circunstâncias das práticas delituosas, com cópia dos textos legais pertinentes, traduzidos para a língua portuguesa, de modo a permitir ao Supremo o exame da pretensão.

Quanto aos fatos, afirma que, segundo o Estado requerente, o extraditando — Major do Exército uruguaio —, tomando parte da denominada “Operação Condor” — identificada como “uma organização terrorista, secreta e multinacional para caçar adversários políticos” dos regimes militares do Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia nas décadas de 1970 e 1980 —, teria participado de ações militares que resultaram no seqüestro de pessoas levadas para uma fábrica abandonada e submetidas a interrogatórios e torturas. A conduta imputada ao paciente encontraria tipificação nos artigos 210, bis, e 144, bis, alínea 1ª, do Código Penal argentino e na Lei nº 24.556, mediante a qual o Estado requerente ratificou a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas, aprovada pela Organização das Nações Unidas (folha 61 a 69). Nesse último documento, os signatários se comprometeram a adotar as medidas legislativas necessárias para tipificar o desaparecimento forçado de pessoas como crime de natureza continuada ou permanente enquanto não conhecido o paradeiro da vítima (artigo 3º), que não será considerado crime político para fins de extradição (artigo 5º) e cuja ação penal e pena não estão sujeitas à prescrição (artigo 7º).

Realça o Ministério Público que, em fevereiro de 2007, o Brasil, demonstrando interesse na repressão dessa espécie de delito, também assinou a referida Convenção, mas não a ratificou. Desse modo, porque não incorporado ao direito interno, o disposto na Convenção não teria aplicação para análise do requisito da dupla tipificação quanto às pessoas desaparecidas.

Na seqüência, aponta que as condutas imputadas ao extraditando — artigo 210, bis, e 144, bis, alínea 1ª, do Código Penal argentino — corresponderiam, respectivamente, ao artigo 288, parágrafo único, levando-se em conta a associação de cerca de dez pessoas para a prática de crimes, e artigo 148, § 2º — seqüestro qualificado —, ambos do Código Penal brasileiro. Sustenta, então, o cumprimento da exigência do artigo 77, inciso II, da Lei nº 6.815/80. Ressalta que, quanto ao crime de associação ilícita, o Código Penal brasileiro prevê como pena máxima seis anos de retenção, com prazo prescricional de doze anos, conforme o artigo 109, inciso III, do mesmo Código. Os fatos noticiados teriam acontecido em 1976, ficando evidenciada a ocorrência da prescrição.

Em relação ao seqüestro, assevera não se falar em prescrição, pois se trata de crime permanente tanto no Brasil como na Argentina. Em tal hipótese, prossegue, o resultado delituoso se protrai no tempo enquanto a vítima estiver privada de liberdade e o prazo prescricional só tem início após a interrupção da ação do agente. Frisa que, de acordo com as informações prestadas pelo Estado requerente, o extraditando participou do seqüestro de diversas pessoas, principalmente em 1976, as quais não foram libertadas até os dias de hoje. A despeito do tempo decorrido, não se pode afirmar que estejam mortas porque os corpos jamais foram encontrados, de modo que ainda subsiste a ação perpetrada pelo extraditando (folha 1669).

Conclui, alfim, que o pedido extradicional, relativamente ao delito de seqüestro, atende ao disposto nos artigos 2º e 5º do Tratado de Extradição do Mercosul, pois a pena prevista para o delito, tanto na legislação brasileira quanto na argentina, é superior a dois anos, não se verificando, no caso, a natureza política do pleito. Anota que a alegação de que o extraditando teria recebido indulto do Governo argentino, apontado também como óbice à extradição, não subsiste, porquanto o ato por meio do qual concedido foi declarado inconstitucional pelas autoridades do Estado requerente. Manifesta-se, por isso, pelo deferimento parcial do pedido.

O Governo da República Oriental do Uruguai, por meio do Aviso nº 560, de 13 de março de 2007, formalizou pedido de prisão preventiva para fins de extradição. O processo foi distribuído ao ministro Carlos Ayres Britto, que, ante o fato de o extraditando encontrar-se recolhido em virtude de decisão proferida na Extradição nº 974, submeteu à Presidência do Supremo a redistribuição do pedido a Vossa Excelência.

Ao extraditando, conforme documento de folha 57 a 62, é imputada a prática dos crimes previstos nos artigos 150 (Associação para delinqüir), 281 (Privação de liberdade) e 282 (circunstâncias agravantes especiais aplicáveis ao delito de privação de liberdade), todos do Código Penal da República Oriental do Uruguai.

A Procuradoria Geral da República, em face da concorrência dos pleitos de extradição e a possibilidade de identidade das imputações, pugnou pela realização de diligência no sentido de se juntar a legislação vigente à época dos fatos e apensar este processo ao Pedido de Extradição nº 974 (folha 196 a 199). Deferida a proposição (folha 208) e regularizada a instrução (folha 210 a 220), o processo foi encaminhado à Justiça Federal do Estado do Rio Grande do Sul, para interrogatório e apresentação de defesa do extraditando (folha 230). Cumprida a determinação (folha 234 a 249), retornou ao Supremo. Houve nova manifestação da Procuradoria Geral da República, que preconizou a declaração de prejudicialidade do pleito formulado pela República Oriental do Uruguai, em razão da identidade das imputações relacionadas nos processos, que contêm a mesma base fática, e, à vista do disposto no artigo 25, item 2, do Tratado do MERCOSUL, o Estado no qual ocorreu o delito, no caso a República da Argentina, tem preferência no exame do pedido (folha 258 a 262). Dessa forma, coerente com o parecer juntado ao Processo de Extradição nº 974, opina pela concessão parcial do pleito.

É o relatório.

VOTO

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) — A dualidade de pedidos de extradição resolve-se considerada a regra prevista no artigo 25, inciso II, do Tratado do Mercosul, que, por sinal, repete aquela versada no artigo 79 da Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980. Quando mais de um Estado requer a extradição da mesma pessoa, pelo mesmo fato, tem preferência aquele em cujo território a infração foi cometida. No caso, como preconizado pelo Procurador-Geral da República, prevalece o pedido do Governo da Argentina, porquanto o desaparecimento de Adalberto Waldemar Soba Fernandez, em 1976, ocorreu naquele país.

Sob o ângulo da narração das condutas, improcede o que veiculado na defesa. As peças juntadas ao pedido de extradição revelam o pano de fundo que a estaria a motivar tendo em conta a reunião de pessoas com a finalidade de imprimir o desaparecimento de cidadão que, de alguma forma, colocasse em risco o que se apontava como segurança nacional. Confiram com o que se contém às folhas 53 e 135 — tradução juramentada.

No tocante ao indulto, cumpre ter presente a declaração de inconstitucionalidade (folha 716).

Quanto à configuração de crime político, o que narrado diz respeito a organização terrorista secreta e multinacional para caçar adversários — Operação Condor —, que envolveria os regimes militares de Brasil, Argentina, Chile, Uruguai, Paraguai e Bolívia nas décadas de 1970 e 1980.

No tocante à prescrição do crime de quadrilha, procede o que consignado pela Procuradoria Geral da República. A legislação brasileira prevê como pena máxima seis anos de reclusão, verificando-se a prescrição da pretensão punitiva em doze anos. Os fatos datam de 1976. O crime de associação — quadrilha — versado no artigo 210 do Código Penal argentino estabelece a pena de três a dez anos de reclusão. Nos termos do artigo 62, itens 1 e 2, do mesmo Código, a prescrição dar-se-ia em quinze anos ou, quando decorrido o máximo de duração da pena fixada para o crime punível com reclusão, no prazo máximo de doze anos. Incidiu, pois, a prescrição.

Surge a problemática alusiva ao desaparecimento do cidadão argentino Adalberto Waldemar Soba Fernandez, ocorrido, repito, em 1976. Embora a Convenção Interamericana sobre o Desaparecimento Forçado de Pessoas não tenha sido ainda ratificada pelo Brasil, apesar de subscrita em fevereiro de 2007, é elucidador o que previsto no artigo 2º (item 19 do parecer de folha 1662 a 1670):

Entende-se por desaparecimento forçado a privação de liberdade de uma pessoa ou mais pessoas, seja de que forma for, praticada por agentes do Estado ou por pessoas ou grupos de pessoas que atuem com autorização, apoio ou consentimento do Estado, seguida de falta de informação ou da recusa a reconhecer a privação de liberdade ou a informar sobre o paradeiro da pessoa, impedindo assim o exercício dos recursos legais e das garantias processuais pertinentes.

De início, afasto, pela impossibilidade de ter-se a Convenção como a compor o ordenamento jurídico pátrio, ante a falta de ratificação, a viabilidade de considerar o artigo 7º dela constante, a revelar que o crime de desaparecimento não está sujeito à prescrição, isso sem levar em conta a época na qual acontecido e a disciplina excludente do fenômeno.

Apontou o Procurador-Geral da República a impossibilidade de falar-se em prescrição por tratar-se de crime permanente tanto no Brasil como na Argentina. A visão presta-se a prática delituosa, considerada a circunstância de projetar-se no tempo o que é enquadrável como seqüestro. A imputação feita ao extraditando, porém, ganhou contornos peculiares, ficando afastada a tipologia seqüestro. Conforme registrado à folha 54, o extraditando — Major do Exército uruguaio no Departamento III de Operações do Serviço de Informação de Defesa da República Oriental do Uruguai — teria tomado parte em ajuste criminoso voltado ao desaparecimento forçado de pessoas.

No contexto, o vocábulo desaparecimento não corresponde ao seqüestro previsto no artigo 148 do Código Penal — “privar alguém de sua liberdade, mediante seqüestro ou cárcere privado”. O desaparecimento forçado do cidadão argentino atribuído ao extraditando alcança a própria morte, ante o fim visado, ou seja, alijar pessoas que pudessem colocar em risco o regime existente. Por isso mesmo, fez-se referência a organização terrorista secreta e multinacional para caçar — com ç — adversários políticos dos regimes militares. É sintomático que, tendo ocorrido o citado desaparecimento em 1976, passados trinta e dois anos, com mudanças substanciais de regime nos países que integrariam a Operação Condor, não haja notícia do local em que se encontre o cidadão argentino. Em síntese, presente o que relatado, presente o sentido vernacular do vocábulo desaparecimento — “ato de sumir, desaparecer” —, não há como cogitar da dupla tipicidade relativamente ao disposto no Código Penal brasileiro sobre o seqüestro, a revelar a existência de crime permanente. Em outras palavras, a narração dos fatos não permite que se conclua pela simetria considerado o crime do artigo 148 do Código Penal brasileiro. Está-se diante de situação concreta diversa na qual a prática delituosa alcançou a própria vida da vítima.

A confirmar o que advém dos princípios da razão suficiente — tudo que acontece possui um motivo, uma explicação —, da causalidade — nada ocorre sem uma causa – e do determinismo — os fenômenos não se produzem arbitrariamente, mas acabam determinados por condições de existência, mostrando-se possível prevê-los se conhecidas as condições ou os fatores que os determinam —, alfim, a presunção resultante da ordem natural das coisas, cuja força é insuplantável, tem-se, considerada quer a legislação brasileira, quer a argentina, a morte presumida. Atentem, sob o ângulo do arcabouço normativo pátrio, para a Lei nº 9.140, de 4 de dezembro de 1995, que veio a reconhecer como mortas pessoas desaparecidas em virtude de participação ou acusação de participação em atividades políticas no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988. Eis a redação do respectivo artigo 1º:

Art. 1º São reconhecidas como mortas, para todos os efeitos legais, as pessoas que tenham participado, ou tenham sido acusadas de participação, em atividades políticas, no período de 2 de setembro de 1961 a 5 de outubro de 1988, e que, por este motivo, tenham sido detidas por agentes públicos, achando-se, deste então, desaparecidas, sem que delas haja notícias.

Já o artigo 2º da citada lei preceitua que:

Art. 2º A aplicação das disposições desta Lei e todos os seus efeitos orientar-se-ão pelo princípio de reconciliação e de pacificação nacional, expresso na Lei nº 6.683, de 28 de agosto de 1979 – Lei de Anistia.

No ordenamento jurídico brasileiro, é essa a disposição específica sobre a matéria. Há ainda a previsão geral decorrente do Código Civil de 2002 no que, além do instituto da simples ausência, veio a inserir no contexto a morte presumida. Consoante o artigo 7º desse diploma, pode ser declarada a morte presumida, sem decretação de ausência, quando “for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de vida”. Então, sob o ângulo da legislação brasileira, presente a simetria, forçoso é o afastamento da possibilidade de, na espécie, cogitar-se de seqüestro.

Já o artigo 22 da Lei nº 14.394/54, da Argentina, dispõe que:

A ausência de uma pessoa no lugar de seu domicílio ou residência na República, haja ou não deixado patrimônio, sem que dela se tenha notícia, findo o prazo de três anos, causa a presunção de seu falecimento. Esse prazo será contado desde a data da última notícia que se teve da existência do ausente.

Pois bem, ambas as legislações — argentina e brasileira — são conducentes a ter-se o cidadão argentino desaparecido como morto. Então, assentada a morte presumida ante os dois ordenamentos jurídicos, surge a figura do homicídio — crime instantâneo —, vindo à balha a prescrição segundo norma da República Argentina em quinze anos (Código Penal de La República Argentina, artigo 62, 1º, considerada a pena para o homicídio em 8 a 25 anos de reclusão, artigo 79 do mesmo Código) e conforme o Direito pátrio em vinte anos. Ora, o episódio retratado no processo ocorreu há mais de trinta e dois anos.

Cumpre considerar ainda que a extradição, presente a simetria, pressupõe, se cometido o crime no Brasil, a possibilidade de o extraditando vir a responder pelo ato em território brasileiro. Isso não poderia acontecer tendo em conta a anistia verificada.

Em última análise, o Supremo está a enfrentar, neste caso, na via indireta, é certo, a problemática alusiva a tema que, há pouco, esteve em voga — o alcance da anistia. Se deferida esta extradição, assentar-se-á a viabilidade de persecução criminal, de responsabilidade administrativa e civil, no tocante a fatos cobertos pela anistia e, então, esvaziada na essência será esta última, não mais implicando a suplantação de quadra indesejada. Feridas das mais sérias, consideradas repercussões de toda ordem, poderão vir a ser abertas. Isso não interessa ao coletivo. Isso não interessa à sociedade presentes valores maiores. Isso resultará em retrocesso dos mais nefastos.

Anistia é o apagamento do passado em termos de glosa e responsabilidade de quem haja claudicado na arte de proceder. Anistia é definitiva virada de página, perdão em sentido maior, desapego a paixões que nem sempre contribuem para o almejado avanço cultural. Anistia é ato abrangente de amor, sempre calcado na busca do convívio pacífico dos cidadãos.

Eis o que se faz em jogo neste julgamento. Deferida a extradição, abertas estarão, por coerência, as portas às mais diversas controvérsias quanto ao salutar instituto da anistia. Grassará o conflito sem limites.

Que a miopia não acometa jamais aqueles que estejam na última trincheira do cidadão, sendo levadas em conta, passo a passo, as palavras de Vieira no Sermão da Quinta-Feira da Quaresma, que, datando de 1669, mostram-se mais do que nunca apropriadas neste momento de tamanha perda de parâmetros, de tamanho abandono a princípios nos mais diferentes segmentos da sociedade brasileira, incluído o setor público:

A cegueira que cega cerrando os olhos, não é a maior cegueira; a que cega deixando os olhos abertos, essa é a mais cega de todas.

Que assim o seja, visando à realização plena do direito posto.

Diante desse quadro, indefiro o pleito de extradição formalizado pelo Governo da Argentina. Declaro prejudicado o pedido do Governo do Uruguai.

Revista Consultor Jurídico

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