Ordem de fazer – MP pode mandar abrir inquérito policial, mas não presidir

por Aline Pinheiro

O Ministério Público não pode presidir inquéritos policiais, mas pode determinar sua abertura e uma série de outros atos durante seu andamento. Ao julgar um pedido de Habeas Corpus, o ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou que a tarefa de presidir inquéritos policiais é exclusiva da Polícia.

“Essa especial regra de competência — que outorga a presidência do inquérito policial à autoridade policial — não impede, contudo, que o Ministério Público determine a abertura de inquéritos policiais, ou, então, requisite diligências ou informações complementares, ou, ainda, acompanhe a realização, por organismos policiais, de atos investigatórios”, entendeu Celso de Mello. Ele lembrou que essa possibilidade já foi reconhecida pelo Supremo em outras ocasiões.

O poder de o MP conduzir investigações criminais está sendo julgado pelo Supremo no pedido de Habeas Corpus 84.548. Dois ministros já votaram quando a matéria foi levada a julgamento em junho do ano passado. O relator, Marco Aurélio, entendeu que só a Polícia pode presidir inquérito, enquanto o ministro Sepúlveda Pertence (já aposentado) reconheceu o poder do MP para fazer investigações. O ministro Cezar Peluso pediu vista. São conhecidos outros três votos, todos a favor do poder de investigação do MP — Joaquim Barbosa, Eros Grau e Carlos Britto.

Na decisão monocrática tomada nesta sexta-feira (1/8) pelo ministro Celso de Mello, ele mostra que não admite que o MP presida o inquérito policial, mas ao negar a liminar indica que pode acompanhar os três colegas que votaram a favor do poder de investigação criminal do MP. Isso porque os autores do pedido de liminar requeriam o trancamento a ação penal justamente porque a investigação “fora levada a cabo exclusivamente pelo Ministério Público”. Seria legítima, então, a investigação ministerial, sem a participação da polícia.

O Supremo discute o poder de investigação do MP no pedido de Habeas Corpus do empresário Sérgio Gomes da Silva, o Sombra, acusado de mandar matar o então prefeito de Santo André (SP), Celso Daniel, em janeiro de 2002.

A discussão sobre o poder investigatório do MP já havia ganhado corpo no inquérito criminal contra o deputado Remi Trinta (PL-MA). O caso começou a ser votado no Supremo em 2003, mas perdeu o objeto quando Remi Trinta deixou de ser parlamentar e perdeu o direito ao foro privilegiado. Quando o processo foi arquivado no STF e remetido à Justiça Estadual, a votação estava em três votos a dois a favor do MP. Os ministros Joaquim Barbosa, Eros Grau e Carlos Britto votaram pela legitimidade do poder investigatório do MP em oposição ao voto dos ministros Marco Aurélio e Nelson Jobim (aposentado).

Leia a decisão

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 94.173-7 BAHIA

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): ANTÔNIO THAMER BRUTOS OU ANTÔNIO THAMER BUTROS

PACIENTE(S): MARCO ANTONIO SILVEIRA

IMPETRANTE(S): ABDON ANTONIO ABBADE DOS REIS E OUTRO(A/S)

COATOR(A/S)(ES): RELATORA DO HABEAS CORPUS Nº 88993 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

EMENTA: PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO. A QUESTÃO DE SUA LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL: MATÉRIA AINDA PENDENTE DE DEFINIÇÃO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (HC 84.548/SP). A INVESTIGAÇÃO PENAL, QUANDO REALIZADA PELA POLÍCIA JUDICIÁRIA, É PRESIDIDA POR AUTORIDADE POLICIAL. DOUTRINA. PRECEDENTE DO STF. A PESSOA INVESTIGADA PELO PODER PÚBLICO JAMAIS SE DESPOJA DE SUA CONDIÇÃO DE SUJEITO DE DIREITOS E DE GARANTIAS INDISPONÍVEIS (HC 86.059-MC/PR, REL. MIN. CELSO DE MELLO). AS ATUAÇÕES POSSÍVEIS DO MINISTÉRIO PÚBLICO NO ÂMBITO DO INQUÉRITO POLICIAL. PRETENDIDA INCONSTITUCIONALIDADE DE INVESTIGAÇÃO PRELIMINAR, QUANDO PROMOVIDA, EXCLUSIVAMENTE, PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. DOUTRINA. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.

DECISÃO: A presente impetração insurge-se contra decisão monocrática, que, emanada do E. Superior Tribunal de Justiça, foi assim ementada (Apenso, fls. 274):

“CONSTITUCIONAL – PROCESSUAL PENAL – RECURSO EM ‘HABEAS CORPUS’ – PODER INVESTIGATÓRIO DO MINISTÉRIO PÚBLICO – POSSIBILIDADE – ORDEM DENEGADA, RESSALVANDO-SE POSICIONAMENTO CONTRÁRIO DA RELATORA.

1. Na esteira dos precedentes desta Corte, o Ministério Público, como titular da ação penal pública, pode realizar investigações preliminares ao oferecimento da denúncia.

2. Sendo peça meramente informativa, o inquérito policial não é pressuposto indispensável à formação da ‘opinio delicti’ do ‘Parquet’.

3. Ordem denegada, ressalvando-se posicionamento contrário da Relatora quanto à impossibilidade de investigações preliminares pelo Ministério Público.”

(HC 88.993/BA, Rel. Min. JANE SILVA – grifei)

Os autores deste “writ” constitucional alegam, em síntese, a falta de justa causa viabilizadora da instauração de processo penal contra os ora pacientes, em razão da “ilegitimidade do Ministério Público para instaurar e conduzir investigação criminal” (fls. 21 – grifei), como revela trecho da presente impetração (fls. 04/05):

“(…) a investigação criminal no caso vertente, investigação esta pré-processual, cuja titularidade, constitucionalmente assegurada, pertence à Autoridade Policial Administrativa, fora levada a cabo exclusivamente pelo Ministério Público.

Registre-se, de logo, que a Portaria administrativa de investigação criminal no caso em apreço (cf. cópia integral da ação penal na origem que compõe o acervo probatório do HC impugnado) fora exarada pelo nobre membro do ‘Parquet’, a Douta Karinny Virgínia Peixoto de Oliveira, membro este que, além de registrar a portaria, presidiu a persecução criminal até então, chegando a própria a oferecer a peça acusatória inicial (Denúncia).” (grifei)

O exame dos fundamentos em que se apóia a decisão ora impugnada – que reconhece, ao Ministério Público, a prerrogativa de promover, por direito próprio, sob sua autoridade e direção, investigações penais – parece descaracterizar, ao menos em sede de estrita delibação, a plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pelos ilustres impetrantes.

Reconheço que o tema suscitado na presente impetração assume indiscutível relevo jurídico-constitucional, muito embora a pretensão deduzida nesta causa encontre sérias objeções no plano doutrinário (BRUNO CALABRICH, “Investigação Criminal pelo Ministério Público – fundamentos e limites constitucionais”, p. 232, item n. 7.9, 2007, RT; FERNANDO CAPEZ, “Curso de Processo Penal”, p. 103/107, item n. 10.23, 13ª ed., 2006, Saraiva; MARCELLUS POLASTRI LIMA, “Manual de Processo Penal”, p. 67/73, item n. 2.1, 2007, Lumen Juris; EDILSON MOUGENOT BONFIM, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 30, 2007, Saraiva; HUGO NIGRO MAZZILLI, “Regime Jurídico do Ministério Público”, p. 239 e 421/422, 3ª ed., 1996, Saraiva; PEDRO HENRIQUE DEMERCIAN e JORGE ASSAF MALULY, “Curso de Processo Penal”, p. 78/86, item n. 4.1.10.5, 3ª ed., 2005, Forense; CARLOS FREDERICO COELHO NOGUEIRA, “Comentários ao Código de Processo Penal”, vol. 1/179-185, item n. 54.3, 2002, Edipro; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Processo Penal”, p. 77, item n. 3.1.2, 4ª ed., 1995, Atlas; RÔMULO DE ANDRADE MOREIRA, “Direito Processual Penal”, p. 203/214, 2003, Forense; ALEXANDRE DE MORAES, “Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional”, p. 1.716/1.718, 7ª ed., 2007, Atlas, v.g.).

É claro que o Ministério Público sempre poderá requisitar a instauração de inquérito policial. Contudo, se assim proceder, não lhe caberá presidi-lo, pois, como se sabe, a presidência do inquérito policial incumbe, exclusivamente, à própria autoridade policial, consoante adverte JULIO FABBRINI MIRABETE (“Código de Processo Penal Interpretado”, p. 86, item n. 4.3, 7ª ed., 2000, Atlas).

Essa especial regra de competência – que outorga a presidência do inquérito policial à autoridade policial – não impede, contudo, que o Ministério Público, que é o “dominus litis” – e desde que indique os fundamentos jurídicos legitimadores de suas manifestações (CF, art. 129, VIII) –, determine a abertura de inquéritos policiais, ou, então, requisite diligências ou informações complementares, ou, ainda, acompanhe a realização, por organismos policiais, de atos investigatórios, em ordem a prover a investigação penal, quando conduzida pela Polícia Judiciária, com todos os elementos necessários ao esclarecimento da verdade real e essenciais à formação, por parte do representante do “Parquet”, de sua “opinio delicti”.

Essa possibilidade – que ainda subsiste sob a égide do vigente ordenamento constitucional – foi reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, quando esta Corte, no julgamento do RHC 66.176/SC, Rel. Min. CARLOS MADEIRA, ao reputar legítimo o oferecimento de denúncia baseada em investigações acompanhadas pelo Promotor de Justiça, salientou, no que se refere às relações entre a Polícia Judiciária e o Ministério Público, que este pode “requisitar a abertura de inquérito e a realização de diligências policiais, além de solicitar esclarecimentos ou novos elementos de convicção a quaisquer autoridades ou funcionários (…)”, competindo-lhe, também, “acompanhar atos investigatórios junto aos órgãos policiais”, embora não possa “intervir nos atos do inquérito e, muito menos, dirigi-lo, quando tem a presidi-lo a autoridade policial competente” (RTJ 130/1053 – grifei).

Todos sabemos que o inquérito policial, enquanto instrumento de investigação penal, qualifica-se como procedimento administrativo destinado, ordinariamente, a subsidiar a atuação persecutória do próprio Ministério Público, que é – nas hipóteses de ilícitos penais perseguíveis mediante ação penal de iniciativa pública – o verdadeiro destinatário das diligências executadas pela Polícia Judiciária (RTJ 168/896, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Trata-se, desse modo, o inquérito policial, de valiosa peça informativa, cujos elementos instrutórios – precipuamente destinados ao órgão da acusação pública – visam a possibilitar a instauração da “persecutio criminis in judicio” pelo Ministério Público (FERNANDO DE ALMEIDA PEDROSO, “Processo Penal – O Direito de Defesa”, p. 43/45, item n. 12, 1986, Forense; VICENTE DE PAULO VICENTE DE AZEVEDO, “Direito Judiciário Penal”, p. 115, 1952, Saraiva; JOSÉ FREDERICO MARQUES, “Elementos de Direito Processual Penal”, vol. I/153, 1961, Forense, v.g.).

Não constitui demasia rememorar, neste ponto, que a investigação penal promovida pela Polícia Judiciária, a despeito de seu caráter inquisitivo, não autoriza práticas abusivas contra a pessoa investigada, não importando se indiciada ou não.

É que, mesmo na fase pré-processual da “informatio delicti”, a pessoa sob investigação não se despoja de sua essencial condição de sujeito de direitos e de garantias indisponíveis, cujo desrespeito põe em evidência a censurável face arbitrária do Estado.

Cabe relembrar, no ponto, por necessário, a jurisprudência firmada pelo Supremo Tribunal Federal em torno da matéria pertinente à posição jurídica que a pessoa sob investigação, indiciada ou não, ostenta em nosso sistema de direito positivo:

“INQUÉRITO POLICIAL – UNILATERALIDADE – A SITUAÇÃO JURÍDICA DO INDICIADO.

……………………………………………….

A unilateralidade das investigações preparatórias da ação penal não autoriza a Polícia Judiciária a desrespeitar as garantias jurídicas que assistem ao indiciado, que não mais pode ser considerado mero objeto de investigações.

O indiciado é sujeito de direitos e dispõe de garantias, legais e constitucionais, cuja inobservância, pelos agentes do Estado, além de eventualmente induzir-lhes a responsabilidade penal por abuso de poder, pode gerar a absoluta desvalia das provas ilicitamente obtidas no curso da investigação policial.”

(RTJ 168/896-897, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Essa orientação – que reflete a própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, construída sob a égide da vigente Constituição – encontra apoio na lição de autores eminentes, que, não desconhecendo que o exercício do poder não autoriza a prática do arbítrio (ainda que se cuide de mera investigação conduzida sem a garantia do contraditório), enfatizam que, em tal procedimento inquisitivo, há direitos titularizados pelo indiciado que não podem ser ignorados pelo Estado.

Cumpre referir, nesse sentido, dentre outros, o magistério de FAUZI HASSAN CHOUKE (“Garantias Constitucionais na Investigação Criminal”, p. 74, item n. 4.2, 1995, RT), de ADA PELLEGRINI GRINOVER (“A Polícia Civil e as Garantias Constitucionais de Liberdade”, “in” “A Polícia à Luz do Direito”, p. 17, 1991, RT), de ROGÉRIO LAURIA TUCCI (“Direitos e Garantias Individuais no Processo Penal Brasileiro”, p. 383, 1993, Saraiva), de ROBERTO MAURÍCIO GENOFRE (“O Indiciado: de Objeto de Investigações a Sujeito de Direitos”, “in” “Justiça e Democracia”, vol. 1/181, item n. 4, 1996, RT), de PAULO FERNANDO SILVEIRA (“Devido Processo Legal – Due Process of Law”, p. 101, 1996, Del Rey), de ROMEU DE ALMEIDA SALLES JUNIOR (“Inquérito Policial e Ação Penal”, p. 60/61, item n. 48, 7ª ed., 1998, Saraiva) e de LUIZ CARLOS ROCHA (“Investigação Policial – Teoria e Prática”, p. 109, item n. 2, 1998, Saraiva).

Impende salientar, no entanto, sem prejuízo do exame oportuno da questão pertinente à legitimidade constitucional do poder investigatório do Ministério Público (matéria objeto do HC 84.548/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, cujo julgamento se acha suspenso em virtude de pedido de vista formulado pelo Ministro CEZAR PELUSO), que o “Parquet” não depende, para efeito de instauração da persecução penal em juízo, da preexistência de inquérito policial, eis que lhe assiste a faculdade de apoiar a formulação da “opinio delicti” em elementos de informação constantes de outras peças existentes “aliunde”.

Esse entendimento – que se apóia no magistério da doutrina (DAMÁSIO E. DE JESUS, “Código de Processo Penal Anotado”, p. 07, 17ª ed., 2000, Saraiva; FERNANDO DA COSTA TOURINHO FILHO, “Código de Processo Penal Comentado”, vol. I/111, 4ª ed., 1999, Saraiva; JULIO FABBRINI MIRABETE, “Código de Processo Penal Interpretado”, p. 111, item n. 12.1, 7ª ed., 2000, Atlas; EDUARDO ESPÍNOLA FILHO, “Código de Processo Penal Brasileiro Anotado”, vol. I/288, 2000, Bookseller, v.g.) – tem, igualmente, o beneplácito da jurisprudência dos Tribunais em geral (RT 664/336 – RT 716/502 – RT 738/557 – RSTJ 65/157 – RSTJ 106/426, v.g.), inclusive a desta Suprema Corte (RTJ 64/342 – RTJ 76/741 – RTJ 101/571 – RT 756/481):

“- O inquérito policial não constitui pressuposto legitimador da válida instauração, pelo Ministério Público, da ‘persecutio criminis in judicio’. Precedentes.

O Ministério Público, por isso mesmo, para oferecer denúncia, não depende de prévias investigações penais promovidas pela Polícia Judiciária, desde que disponha, para tanto, de elementos mínimos de informação, fundados em base empírica idônea, sob pena de o desempenho da gravíssima prerrogativa de acusar transformar-se em exercício irresponsável de poder, convertendo, o processo penal, em inaceitável instrumento de arbítrio estatal. Precedentes.”

(RTJ 192/222-223, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Sendo assim, tendo em vista decisões anteriores por mim proferidas (HC 85.419-MC/RJ e HC 89.837-MC/DF) e sem prejuízo da ulterior apreciação da controvérsia em referência, notadamente em face do julgamento plenário, ainda em curso, do HC 84.548/SP, que discute a tese exposta na presente impetração, indefiro o pedido de medida liminar.

2. Achando-se adequadamente instruída a presente impetração, ouça-se a douta Procuradoria-Geral da República.

Publique-se.

Brasília, 1º de agosto de 2008.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

Revista Consultor Jurídico

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