por Wesley Ribeiro Carvalho
O Poder Constituinte Originário é o poder de elaborar uma nova constituição. Estabelece uma nova ordem jurídica fundamental para o Estado em substituição à anteriormente existente.
Por sua vez, o poder constituinte constituído ou derivado se insere na Constituição, é órgão constitucional, conhecendo limitações tácitas e expressas, como veremos a seguir, e se define como poder primordialmente jurídico, que tem por objetivo a reforma do texto constitucional. É subordinado, encontrando-se abaixo do poder constituinte originário, limitado por este; e condicionado, uma vez que deve manifestar-se de acordo com o preestabelecido pelo poder constituinte originário.
O Poder Constituinte derivado e até mesmo o originário não pode chocar-se com as concepções de uma sociedade, porque se isto fizer a Constituição não será mais do que uma folha de papel, no dizer de Ferdinand Lassalle.
O Poder Constituinte originário não sofre limitações jurídicas, como é lógico, de vez que sua natureza, como vimos, é a de um Poder originário, supremo e dotado de soberania. Apenas está sujeito a certas limitações sociológicas, latentes na infra-estrutura, devendo elaborar uma Constituição coerente com essas determinantes.
Quanto ao Poder Constituinte derivado — trata-se aqui do processo de elaboração da emenda constitucional —, além dessas mesmas limitações sociológicas, há os limites jurídicos, impostos pelo próprio Poder Constituinte originário, ao ensejo da elaboração constitucional e que podem ser assim esquematizados: limites materiais, limites temporais e limites processuais.
Como bem elucidou Ingo Wolfgang Sarlet (2001, p. 354):
“A garantia de intangibilidade desse núcleo ou conteúdo essencial de matérias (nominadas de cláusulas pétreas), além de assegurar a identidade do Estado brasileiro e a prevalência dos princípios que fundamentam o regime democrático, resguarda também a Carta Constitucional dos ‘casuísmos da política e do absolutismo das maiorias parlamentares’.” E isto força o Estado a cumprir sua finalidade, que é promover o bem comum, como apregoa José Luiz Quadros de Magalhães (2002, p. 220).
Embora seja sabido que o legislador dispõe de uma margem de liberdade em uma democracia, não se pode admitir que se possa ignorar o conteúdo da Constituição e legislar no sentido de desconstruir ou dissolver a vontade do legislador originário. Aqui reside o cerne deste artigo, abordando o princípio da vedação de retrocesso. Como visto com Sieyès — sua vontade (do povo) é sempre a lei suprema.
Ingo Wolfgang Sarlet (2004, p. 162) ainda aponta:
“Negar reconhecimento do princípio da proibição de retrocesso significaria, em última análise, admitir que os órgãos legislativos (assim como o poder público de modo geral), a despeito de estarem inquestionavelmente vinculados aos direitos fundamentais e às normas constitucionais em geral, dispõem do poder de tomar livremente suas decisões mesmo em flagrante desrespeito à vontade expressa do Constituinte.”
O direito à proibição de retrocesso social consiste em importante conquista civilizatória. O conteúdo impeditivo deste princípio torna possível brecar planos políticos que enfraqueçam os direitos fundamentais.
O poder constitucional é limitado aos valores-base em que fora sedimentado. Por oportuno, cumpre citar Oscar Vilhena Vieira (1999, p. 224), por abordar mais uma premissa deste artigo, aduzindo: Não mais é possível pensar a Constituição — e mais ainda as suas cláusulas constitucionais intangíveis — sem levar em conta suas qualidades intrínsecas, seu valor ético.
O valor intrínseco de uma Constituição não pode ser desprezado ou subjugado, sob pena de ruir o conteúdo normativo da mesma.
A constituição requer unidade de sentidos.
A unidade da Constituição precisa ser preservada, evitando-se a descaracterização dos preceitos nela contidos. Tanto isto é verdadeiro, que o legislador constituinte estabeleceu vedações para o poder reformador, protegendo sua obra e evitando a desvirtuação e o esvaziamento do conteúdo constitucional pelo legislador ordinário.
O poder das emendas constitucionais limita-se primordialmente ao respeito às garantias conquistadas pelos cidadãos, resultado de árduas lutas. Não se trata de obrigar uma geração a acatar os anseios das gerações anteriores, emendas constitucionais podem existir, desde que não violem ou não caminhem em direção diametralmente oposta àqueles princípios e valores que clamaram e sedimentaram a construção do novo texto constitucional.
As mudanças constitucionais são prementes, sob pena de ineficácia da Carta Maior e, conseqüentemente, de instabilidade institucional, mas uma reforma visa uma mudança que, em nosso entender, deve ser para melhor, respeitando as conquistas anteriores e garantindo novos direitos à coletividade como um todo, e não visando dar privilégios a determinadas categorias. Aí entendemos estar um importante limite às emendas constitucionais, sob pena de ferir a Constituição e, conseqüentemente, a Federação, a República e o Estado Democrático de Direito.
Admitir-se que Emenda Constitucional possa contrariar o texto originário seria admitir uma Constituição suicida, porque resultaria, enfim, uma contradição, e não correspondendo à realidade social, ao substrato sociológico, não podendo evolver coerentemente com essa realidade social, acabaria violentamente vilipendiando seu próprio texto. (seria ela apenas, no dizer de Lassalle, já citado, uma folha de papel).
Os limites materiais implícitos dizem respeito à própria essência do poder de reforma. Mesmo que não existam limites expressos, a segurança jurídica exige que o poder de reforma não se transforme, por falta de limites materiais, em um poder originário. O poder de reforma pode modificar mantendo a essência da Constituição, ou seja, os princípios fundantes e estruturantes da Constituição, pois reforma não é construir outro, mas modificar mantendo a estrutura e os fundamentos.
São, portanto limites materiais implícitos o respeito aos princípios fundamentais e estruturais da constituição, que só poderão ser modificados através de outra assembléia constituinte, ou seja, através de um outro poder constituinte originário.
Os princípios inspiradores, fundamentais e estruturantes são a essência da Constituição e mesmo que não haja cláusula expressa que proíba emenda ou revisão, a essência não pode ser alterada.
Reforma significa alterar normas secundárias, as regras, mas, jamais, a estrutura, a essência, o fundamento de uma ordem jurídica.
Verificada a presença de emenda constitucional inconstitucional, se não corrigida por nossos representantes do legislativo “sponte própria”, estará sujeita ao controle de constitucionalidade pelo Judiciário.
Na verdade, a proibição de retrocesso social visa a impedir que sejam frustrados os direitos sociais já concretizados, tanto na ordem constitucional como na infraconstitucional, em atenção aos objetivos da República Federativa do Brasil, que é o de promover o bem de todos, sem quaisquer formas de discriminação, constituindo uma sociedade livre, justa, solidária, erradicando a pobreza e marginalização, reduzindo as desigualdades sociais, o que se dá através da implementação e efetivação do Estado Social de Direito. (Macedo, 2004, p.32)
Por fim, resta-nos concluir dessarrazoada a justificativa de que se socorrem os autores da PEC 471 ao argumento falacioso de que se pretende solucionar situação excepcional, criada por omissão do próprio estado, de interinos que dedicaram uma vida às serventias, prestando relevante trabalho público e social.
Pois como bem salienta a ilustre Cármen Lúcia, citando Luis Carlos Sachica (1991, p.25):
“Constituição é o instrumento que faz da normalidade normatividade, na palavra daquele autor colombiano, e quanto mais complexa a sociedade política, mais ela necessita da imperatividade que o Direito impõe às relações humanas.”
O Direito, como ciência social aplicada, deve transpassar da mera dogmática e alcançar a realidade, indo além da análise do problema, propondo soluções palpáveis, de aplicabilidade imediata, e concordes com os fundamentos constitucionais. Esta função social urge ser incessantemente perseguida, sob pena de retrocessão na própria civilização, entendida como abandono dos instintos animalescos, e seguir ao encontro do Estado Democrático de Direito prometido na Constituição.
Bibliografia
CÁRMEN Lúcia Antunes Rocha. Constituição e Constitucionalidade. Belo Horizonte: Ed. Lê, 1991.
MACEDO, Amílcar Fagundes Freitas. Reforma da Previdência – Emenda Constitucional nº 41 e supressão de regra de transição – proibição de retrocesso social. Revista da AJURIS, Porto Alegre, ano XXXI, n. 95, p. 23-35, set. 2004.
MAGALHÃES, José Luiz Quadros de. Direito constitucional. 2.ed. Belo Horizonte: Mandamentus, 2002.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
SIEYÈS, Emmanuel Joseph. A Constituinte burguesa. 3.ed., Rio de Janeiro, Editora Lumen Juris, 1997.
VIEIRA, Oscar Vilhena. A constituição e sua reserva de justiça: um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
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