O foro privilegiado, também intitulado foro especial ou foro por prerrogativa de função, é objeto de grande controvérsia doutrinária. Para alguns, representa uma garantia necessária à governabilidade, bem como ao exercício de determinados cargos, enquanto outros vêem nele cristalina e odiosa ofensa ao princípio da isonomia.
O instituto encontra fundamento no fato de que certas pessoas exercem cargos de especial relevância no cenário político-jurídico do Estado. Em atenção a tais cargos, gozam de foro especial, ou seja, não são processadas e julgadas como qualquer do povo, pelos órgãos comuns, mas pelos órgãos superiores, de instância mais elevada. [01]
O foro especial pode ser analisado tanto à luz de seu alcance material quanto temporal. Conforme magistério de Vicente Paulo,
o alcance material diz respeito à definição de quais ações estão protegidas pelo foro especial, vale dizer, em que ações judiciais a autoridade pública será julgada perante o foro definido no texto constitucional. O alcance temporal diz respeito à delimitação do prazo durante o qual a autoridade pública fará jus ao foro especial, isto é, se só durante o exercício da função pública, ou se permanece o direito ao foro mesmo depois de expirado o exercício da função pública. [02]
Em relação ao alcance material, atualmente o foro especial somente alcança ações de natureza penal. Não abrange, por exemplo, ações civis públicas, ações populares e ações de improbidade administrativa.
Quanto ao alcance no âmbito temporal, previa a súmula 394 do STF que “cometido o crime durante o exercício funcional, prevalece a competência especial por prerrogativa de função, ainda que o inquérito ou a ação penal sejam iniciados após a cessação daquele exercício”. Ocorre que na sessão plenária de 25/08/1999, o STF cancelou tal súmula, passando a competência a se definir pela regra da atualidade do mandato. Ou seja, o foro especial existe somente enquanto o agente estiver no exercício da função.
O tema gerou grande repercussão com o advento da Lei 10.628, de 24 de dezembro de 2002, que acrescentou dois parágrafos ao art. 84 do Código de Processo Penal. O parágrafo 1º estabelecia a prorrogação do foro especial após a cessação do exercício da função pública, e o § 2º previa foro especial para ações de improbidade administrativa.
A doutrina quase unânime apontou a inconstitucionalidade das alterações, sendo ajuizadas ações diretas de inconstitucionalidade pela Associação Nacional dos Membros do Ministério Público – CONAMP (ADI 2797) e pela Associação dos Magistrados Brasileiros – AMB (ADI 2860). O Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade dos dispositivos:
Entendeu-se que o § 1º do art. 84 do CPP, além de ter feito interpretação autêntica da Carta Magna, o que seria reservado à norma de hierarquia constitucional, usurpou a competência do STF como guardião da Constituição Federal ao inverter a leitura por ele já feita de norma constitucional, o que, se admitido, implicaria submeter a interpretação constitucional do Supremo ao referendo do legislador ordinário. Considerando, ademais, que o § 2º do art. 84 do CPP veiculou duas regras — a que estende, à ação de improbidade administrativa, a competência especial por prerrogativa de função para inquérito e ação penais e a que manda aplicar, em relação à mesma ação de improbidade, a previsão do § 1º do citado artigo — concluiu-se que a primeira resultaria na criação de nova hipótese de competência originária não prevista no rol taxativo da Constituição Federal, e, a segunda estaria atingida por arrastamento. Ressaltou-se, ademais, que a ação de improbidade administrativa é de natureza civil, conforme se depreende do § 4º do art. 37 da CF, e que o STF jamais entendeu ser competente para o conhecimento de ações civis, por ato de ofício, ajuizadas contra as autoridades para cujo processo penal o seria. [03]
Desta forma, a definição da competência passou novamente a reger-se pela regra da atualidade do mandato. Ou seja, somente existiria foro especial enquanto o agente estivesse no exercício da função.
Todavia, ao que tudo indica, o assunto ainda será objeto de muita controvérsia. É que a Proposta de Emenda à Constituição nº 358, de 2005, conhecida como segunda parte da reforma do judiciário, visa restituir o foro privilegiado para ex-autoridades e para ações de improbidade. Seu art. 2º da proposta assim dispõe:
“A Constituição Federal passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 97-A, 105-A, 111-B e 116-A:
‘Art. 97-A. A competência especial por prerrogativa de função, em relação a atos praticados no exercício da função pública ou a pretexto de exercê-la, subsiste ainda que o inquérito ou a ação judicial venham a ser iniciados após a cessação do exercício da função.
Parágrafo único. A ação de improbidade de que trata o art. 37, § 4º, referente a crime de responsabilidade dos agentes políticos, será proposta, se for o caso, perante o tribunal competente para processar e julgar criminalmente o funcionário ou autoridade na hipótese de prerrogativa de função, observado o disposto no caput deste artigo.’ ”
Em audiência pública realizada em 2006, na Câmara dos Deputados, sobre a emenda constitucional da reforma do Judiciário, o atual presidente do STF, Gilmar Mendes, e a ministra Ellen Gracie Northfleet, defenderam a ampliação do foro privilegiado para ações de improbidade administrativa e a sua extensão a ex-autoridades. “Estou cada vez mais convicto de que a prerrogativa de foro na verdade é uma questão de governabilidade”, alegou Mendes, que considera incoerente que o Presidente da República responda criminalmente perante o STF, mas possa ser afastado do cargo por liminar de juiz da primeira instância, em ação de improbidade movida por um procurador da República [04].
Entendemos que tais modificações, ainda que fruto de emenda, seriam inconstitucionais, por ofensa ao princípio da isonomia. Outra não é a opinião de Pedro Lenza:
Convém anotar, contudo, que, mesmo se introduzido por emenda constitucional, em nosso entender, o pretendido ‘privilégio’ violaria o princípio da isonomia, na medida em que se estaria tratando desigualmente pessoas iguais, quais sejam ex-ocupantes de cargo ou função pública e cidadãos comuns [05].
A nova situação criaria aos ex-exercentes de funções públicas tratamento diferenciado em relação aos demais cidadãos, tratando desigualmente pessoas que se encontram em situação igual. Se a justificativa para o foro especial por prerrogativa de função está no exercício de determinadas funções públicas, e a finalidade é o interesse público, observar-se-ia o desvirtuamento da medida. Nesta esteira, ensina Luiz Flávio Gomes que o foro especial só se justifica enquanto o autor do crime está no exercício da função pública. Cessado tal exercício, não importa o motivo, perde o sentido, transformando-se em odioso privilégio pessoal, que não se coaduna com a vida republicana ou com o Estado Democrático de Direito. [06]
As críticas feitas por Hugo Nigro Mazzili à Lei 10.628/02 são perfeitamente cabíveis à hipótese ora discutida:
[…] a Lei nº 10.628/02 é apenas mais uma atitude própria da cultura de privilégios que infelizmente tem sido freqüente em nosso País, pois os administradores e parlamentares não se conformam em ser processados, mesmo na área cível e ainda que depois de terem deixado os cargos, perante os mesmos juízes que julgam os demais brasileiros. [07]
Em sentido diametralmente contrário ao referido projeto, tramita na Câmara dos Deputados a Proposta de Emenda à Constituição 130-A, de 2007, de autoria do deputado Marcelo Itagiba, que prevê a revogação dos dispositivos que garantem o foro privilegiado. Foi designada uma comissão especial para analisar a proposta, a qual, em 11 de junho de 2008, aprovou o substitutivo do relator, deputado Regis de Oliveira. De acordo com o substitutivo aprovado, todas as autoridades responderão no juízo de 1º grau, mas as denúncias apresentadas contra os titulares em exercício de poder serão recebidas, primeiramente, pelo tribunal competente. No caso de detentores de cargo federais, por exemplo, a denúncia será analisada pelo Supremo Tribunal Federal e remetida ao juiz do estado de domicílio do acusado [08].
Em nosso sentir, a modificação é salutar. Se todos são iguais perante a lei, é injustificável que o acusado seja afastado do juízo competente para julgar os casos semelhantes àquele que foi praticado. Nesta esteira, vale consignar a lição de Alexandre de Moraes:
A Constituição Federal de 1988 adotou o princípio da igualdade de direitos, prevendo a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais, ou seja, todos os cidadãos têm o direito de tratamento idêntico pela lei, em consonância com os critérios albergados pelo ordenamento jurídico. [09].
Em coerente análise, Guilherme de Souza Nucci critica a existência do foro pivilegiado:
Se à justiça cível todos prestam conta igualmente, sem qualquer distinção, natural seria que a regra valesse também para a justiça criminal. O fato de se dizer que não teria cabimento um juiz de primeiro grau julgar um Ministro de Estado que cometa um delito, pois seria uma ‘subversão de hierarquia’ não é convincente, visto que os magistrados são todos independentes em no exercício de suas funções jurisdicionais, não se submetem a ninguém, nem há hierarquia para controlar o mérito de suas decisões. Logo, julgar um Ministro de Estado ou um médico exige do juiz a mesma imparcialidade e dedicação, devendo-se clamar pelo mesmo foro, levando em conta o lugar do crime e não a função do réu. […] Quanto à pretensão proteção que se busca, não vemos base para tanto. O juiz de 2º grau está tão exposto quanto o de 1º grau em julgamentos dominados pela política ou pela mídia. […] Por que não haveria sentido, como muitos afirmam, que um juiz julgasse um Ministro do Supremo Tribunal Federal? Não está julgando o cargo, mas sim a pessoa que cometeu um delito. Garantir que haja o foro especial é conduzir justamente o julgamento para o contexto do cargo e não ao autor da infração penal. […] Entretanto, por ora, a competência por prerrogativa de função está constitucionalmente prevista, razão pela qual deve ser respeitada. No futuro, havendo amadurecimento suficiente, tal situação merecerá ser alterada [10].
Em parecer à PEC do Fim do Foro Privilegiado, o relator Regis de Oliveira se manifesta no mesmo sentido:
Não posso crer, pela experiência longa na magistratura, situação que vivi por longos trinta anos, que o juiz devidamente investido na jurisdição, com longo preparo intelectual e forte sentimento de justiça, possa amedrontar-se diante de poderosos ou de se intimidar pelos julgamentos que deve proferir em razão da pessoa.
Outro aspecto importante foi ressaltado pelo presidente da Comissão que analisou a PEC, deputado Dagoberto. Ele observou que, entre 1998 e 2006, foram iniciados 613 processos contra autoridades com foro privilegiado, sendo que somente 22 foram julgados e 84 foram arquivados. Para ele, “não há sensação de impunidade, é a verdadeira impunidade”, e, com a aprovação do projeto, “aqueles poucos que procuram o mandato para fugir dos processos não terão mais espaço na Câmara e no Senado” [11].
Diante de todo o exposto, conclui-se que seria benéfica a supressão do foro privilegiado, pois tal instituto não tem se prestado à consecução do interesse público, além de ferir de forma gritante o princípio da igualdade, consagrado na Carta Magna de 1988. Tal alteração contribuiria, inclusive, para atenuar o descrédito que a população brasileira tem em relação às instituições e aos agentes políticos, que, muitas vezes, preocupam-se somente com os próprios interesses.
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Notas
TOURINHO FILHO. Fernando da Costa. Processo Penal. v. 2. São Paulo : Editora Saraiva, 2005. p 129.
Aulas de Direito Constitucional. 8 ed. rev. atual. Niterói : Ed. Impetus, 2006. p. 382.
v. Informativo 362 do STF.
Fonte: Jornal FolhaOnline. Disponível em
Direito Constitucional Esquematizado. 9. ed. São Paulo : Editora Método, 2006. p.252.
Reformas penais : foro por prerrogativa de função. Disponível em:
O foro por prerrogativa de função e a lei n. 10.628/02. Revista Jurídica. Porto Alegre, v. 51, n. 304, p. 54-58, fev. 2003.
Notícia veiculada no Portal da Câmara dos Deputados. Disponível em:
Constituição do Brasil interpretada e legislação constitucional. 5 ed. São Paulo : Editora Atlas, 2005. p. 180.
Código de processo penal comentado. 5. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 256.
Notícia veiculada no Portal da Câmara dos Deputados. Vide supra.
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Grasielle Borges Vieira de Carvalho
Advogada. Mestranda em Direito Penal pela PUC/SP. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo
Jamil Chaim Alves
Advogado criminalista. Mestrando em Direito Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Especialista em Direito Penal pela Escola Superior do Ministério Público de São Paulo. Bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.