A Companhia de Cigarros Souza Cruz sofreu pesada condenação por danos morais e materiais causados a uma consumidora de seus produtos. A sentença, que arbitrou reparação de R$ 500 mil pelas lesões extrapatrimoniais e indenização de todas as despesas com tratamento médico, foi proferida pelo juiz Mauro Caum Gonçalves, da 3ª Vara Cível do Foro Central de Porto Alegre.
A ação foi proposta contra a Souza Cruz por uma usuária de cigarros que contou ter começado a fumar aos 14 anos de idade e ficado viciada, passando a consumir cerca de uma carteira por dia durante 40 anos.
Segundo a fumante, “o incentivo ao vício veio propagandas televisivas que incentivavam o hábito de fumar, por meio de imagens de atores e atrizes famosos que esbanjavam saúde e demonstravam como era bem sucedido quem fumava”. Assim, disse ela, acreditou que o fumo propiciava saúde, bem estar e vigor.
A autora narrou que mais tarde veio a sofrer de doença pulmonar obstrutiva crônica, em fase avançada e evoluindo com piora progressiva, tornando-se dependente de uso contínuo de gás oxigênio e sujeita a espera em programa de transplante de pulmão. Após o ajuizamento, sobreveio a morte da autora, substituída, então, pelo espólio.
Em síntese, a Souza Cruz contestou alegando que “seus produtos e suas propagandas sempre foram regulares, legais e dirigidos a adultos, tendo a autora começado a fumar por vontade própria e ciente dos riscos do hábito”. Ainda, sustentou que inexistia nos autos prova de que a doença estaria associada ao tabagismo.
De acordo com a indústria, há muito tempo são veiculadas informações sobre os riscos à saúde associados ao consumo de cigarro, sendo que os consumidores sabiam do risco desde antes de se tornar obrigatória a divulgação dessa informação.
Ao sentenciar, o julgador anotou que o laudo pericial foi conclusivo ao afirmar que a patologia da autora foi atestada a partir de 1999, avançando até estágio em que foi necessário um transplante pulmonar, seguindo-se ao óbito, havendo relação preponderante entre tabagismo e a doença mortal.
“No caso dos autos, há diversos atestados médicos (vide documentos que instruem a inicial) que apontam nexo de causalidade entre as causas da doença da autora do espólio e o tabagismo, pelo que se exclui a possibilidade de que outros fatores fossem condicionantes ao desenvolvimento da moléstia”, referiu o juiz Mauro Caum, ao afastar a sustentação da Souza Cruz de que o tabagismo não seria a causa única da doença.
Após verificar que não houve nos autos prova de que o cigarro não é droga e não causa dependência, o julgador asseverou que o risco, “inexoravelmente, é do produto ou do serviço. Assim se dá em qualquer área, seja no mercado tabagista, seja na prestação de serviços aéreos. As indústrias tabagistas não formam categoria à parte, e não se sujeitam a normas distintas (de exceção), senão à Teoria do Risco Criado, de Caio Mário.”
Interessante aspecto da decisão é aquele em que o juiz reconheceu que a indústria tinha conhecimento desde o ano de 1964 dos malefícios e riscos do cigarro e estava obrigada, por dever de boa-fé objetiva e contratual, “a ser transparente e advertir a respeito, o que visivelmente e declaradamente não fez”. A sentença ainda explica que “não se está a falar de segurança absoluta do produto, por óbvio, mas de uma segurança mínima, que estava e está ao alance da demandada, de cujo dever de cautela se omitiu e vêm se omitindo” .
Desse modo – e inexistindo provas de que a vítima tenha fumado cigarros de outras indústrias -, o magistrado concluiu pela ocorrência de dano moral reparável pecuniariamente em R$ 500 mil, com correção monetária a partir da sentença e juros de mora de 1% ao mês, desde a data da primeira internação hospitalar da autora.
Os danos materiais, por sua vez, foram mandados ressarcir, mediante indenização dos valores despendidos com o tratamento da doença, a serem apurados em liquidação de sentença, com correção monetária desde cada desembolso e juros de 1% ao mês desde a data da primeira internação.
Os honorários advocatícios foram arbitrados em 20% sobre o valor total da soma da condenação atualizada. Cabe recurso de apelação ao TJRS.
Atuam em nome da parte autora seis advogados: Francisco Antonio de Oliveira Stockinger, Carla Nunes de Souza, Itamara Duarte Stockinger, Francisco Tiago Duarte Stockinger, Cristiana Campos Gross e Tatiana Lima Soares Lumertz. (Proc. nº 001/1.05.0525891-2).
ÍNTEGRA DA SENTENÇA Comarca de Poro Alegre – 3ª Vara Cível do Foro Central
Rua Márcio Veras Vidor (antiga Rua Celeste Gobato), 10
Nº de Ordem:0420 – 2010
Processo nº: 001/1.05.0525891-2 (CNJ:.5258911-98.2005.8.21.0001)
Natureza:Ordinária
Autor: ESPÓLIO DE MILIAN CURY SIVIERI
Réu:CIA DE CIGARROS SOUZA CRUZ
Juiz Prolator:MAURO CAUM GONÇALVES
1.0) RELATÓRIO:
Inicialmente MILIAN CURY SIVIERI, qualificada na inicial, moveu a presente Ação, nominada como de REPARAÇÃO DE DANOS MORAIS E PATRIMONIAIS, em face de CIA DE CIGARROS SOUZA CRUZ, igualmente qualificada, alegando que nasceu em 22/11/1950, e que começou a fumar aos 14 anos de idade. Referiu que, naquela época, as propagandas televisivas incentivavam ao hábito de fumar, através de imagens de atores e atrizes famosos que esbanjavam saúde e demonstravam o quão bem sucedido era quem fumava, induzindo à crença de que o fumo propiciava saúde, bem estar e vigor. Afirmou, assim, que, iludida pela falsa propaganda, viciou-se e permanece fumando, desde lá, uma carteira de cigarros por dia (como média), durante cerca de 40 anos de sua vida – todos de marcas produzidas pela demandada (Holywood, Continental e Carlton); que, atualmente, padece de doença pulmonar obstrutiva Crônica, em fase avançada e evoluindo com piora progressiva, o que lhe fazia dependente de uso contínuo de gás oxigênio e lhe sujeitara a espera em programa de transplante de pulmão. Referiu que, conforme atestado por médicos, sua doença decorreria do longo período de vício pelo tabagismo; que, acaso tivesse sido alertada dos riscos daquele hábito, certamente não o teria provado, evitando o vício. Aduziu que o tabaco conteria nicotina e outras mais de 4.700 substâncias tóxicas, responsáveis pela dependência química (a falta acarretaria irritação, inquietação, ansiedade, insônia etc) e psicológica (fumar deixa mais relaxado, menos triste, menos sozinho etc), que agiriam em cerca de 9 segundos após uma tragada, sendo que nenhuma outra droga agiria com tal rapidez. Afirmou que o tabaco seria considero droga e que o tabagismo seria considerado uma dependência desde 1970, pelo National Institute in Drug Abuse. Fez referências da doutrina médica a respeito da sistemática do vício e das consequências da exposição contínua das células do organismo ao agente toxicológico. Citou algumas frases e textos propagandeados pelas indústrias tabagistas, para respaldar sua tese de que serviriam para idealizar a vinculação do produto a status profissional e pessoal; e, assim induzir ao consumo e ao vício. Afirmou que o tabagismo seria responsável por 90% dos casos de enfisema pulmonar; e que as probabilidades de um fumante desenvolver essa moléstia seria 18 vezes maior do que um abstêmio. Referiu que a demandada, como fabricante, responderia, em razão de culpa concorrente, pelos danos provocados à sua saúde. Referiu que, não pretendendo discutir a licitude ou ilicitude da atividade desenvolvida pela demandada, esposa entendimento de que a demandada seria responsável em razão da exposição ao consumo de produto nocivo à saúde, capaz de causar inclusive a morte do usuário. Argumentou, ainda, que, hoje em dia, o perigo do uso do produto à saúde dos consumidores seria objeto de muitos estudos científicos, e tão verossímel que as próprias indústrias tabagistas já admitiriam os males decorrentes, a ponto de, atualmente, já imprimirem avisos e fotos nas embalagens, advertido dos riscos. Contudo, segundo referiu, tais advertências e informações não eram exibidas ao tempo em que iniciou o hábito de fumar e adquiriu o vício, senão meras campanhas de incentivo ao consumo progressivo. Aduziu que o Estado de Minnesota, nos Estados Unidos da América do Norte, teria firmado acordo com a requerida e outras indústrias tabagistas, impondo-lhes compromisso de custear um fundo para amparo da rede de saúde pública e um outro fundo de amparo à pesquisa, em ambos os casos voltados aos casos que envolviam tabagismo; e que acordo semelhante foi celebrado com o Estado do Texas. Sustentou que a responsabilidade da demandada seria objetiva, na forma do art. 12 do CDC, ante o defeito do produto e a inexistência, à época, de qualquer informação a respeito dos riscos de prejuízo à saúde; e que sofreu danos morais e materiais em razão do doença a que fora exposta. Postulou a inversão do ônus da prova e a concessão da gratuidade judiciária. Requereu, com o julgamento de procedência da ação, a condenação da demandada à obrigação de pagar indenização, para reparação de danos morais, em valor a ser arbitrado pelo juízo; danos pessoais, equivalentes à perda de sua capacidade física por decorrência da moléstia; e danos materiais (referidos como patrimoniais), relativos ao pagamento de despesas com tratamento de saúde, a serem apurados em liquidação de sentença. Instruiu a inicial com os documentos de fls. 25/251.
Foi deferida a gratuidade judiciária à autora (fl. 258).
Intimada a emendar a inicial, indicando valores à pretensão de reparação por dano moral, respondeu atribuindo à causa o valor equivalente a 300 Salários Mínimos Nacionais para cada filho, e 500 para o cônjuge (fls. 260/261).
Noticiado o óbito da autora (fl. 266), determinou-se substituição processual pelo Espólio (fl. 273 e 274, verso).
Esclarecido e facultado à autora que acaso entendesse pertinente, deveria fazer nova emenda (fl. 273), para que, tendo em vista a manifestação de fls. 260/261, incluísse no polo ativo os terceiros em favor de que pretenderia demandar danos (filhos e esposo).
Não houve nova emenda.
Citada (fl. 278, verso), a demandada contestou (fls. 279/358), alegando que sua propaganda nunca fora irregular, mas sempre dirigida a adultos; que a autora, assim como qualquer consumidor, teria começado a fumar por ser de sua vontade pessoal, estando ciente dos riscos inerentes; e que inexistiria nos autos prova de que a doença da autora estaria associada ao tabagismo. Referiu que o cigarro seria um produto de risco inerente, modo que qualquer risco não teria sido criado pelo produtor, inaplicável, pois, a Teoria do Risco Criado à espécie; que o cigarro é um produto lícito, e que as pessoas o fumam apenas porque o querem, e são responsáveis por sua escolha. Argumentou que pretensões como a da autora vêm sendo reiteradamente desacolhidas por tribunais pátrios (5ª, 6ª, 9ª e 10ª Câmaras do TJRS) e estrangeiros; que os acordos celebrados com os Estados Norte-americanos não guardam nenhuma relação com o caso dos autos, e que foram propiciados por uma carga tributária inferior à praticada no Brasil. Reiterou que sua atividade seria plenamente lícita, o que por si só afastaria qualquer pretensão indenizatória (dependente e condicionada a prática de algum ilícito); que a Constituição Federal reconheceria direito subjetivo à comercialização de cigarro e à sua publicidade (art. 220, § 4º). Referiu que o CDC não teria normatizado a utopia de produtos sem risco ao consumidor. Ao contrário, os riscos à saúde e à segurança do consumidor são aceitáveis, desde que normais e previsíveis (arts. 8º e 9º); que o CDC não exige que o produto ofereça uma segurança absoluta, mas apenas a segurança que se possa legitimamente esperar. Argumentou que, a se fazer valer a tese da autora, também a comercialização de bebidas alcoólicas seria proibida, eis que capaz de levar ao alcoolismo; como também a de carne de porco, manteiga e produtos lácteos, porque associados ao aumento do colesterol e males do coração; e o sal, eis que fator de risco cardíaco para pessoas hipertensas. Referiu que, no caso do cigarro, há muito são veiculadas informações sobre os riscos à saúde associados ao seu consumo; e que os consumidores, mesmo antes da obrigatoriedade de se divulgar tal informação, já detinha ciência do risco; que cumpriu, sempre com rigor, as normas públicas disciplinadoras da publicidade e cigarros, tanto na época em que a autora começou a fumar (1964), quanto atualmente; que, em 25/08/1988, antes da Constituinte de 1988, foi editada a Portaria nº. 490 da União, que se constituiria na primeira norma atinente às advertências a serem efetuadas pelos fabricantes sobre o seu produto. Sobre esta questão, referiu que o fato de não terem sido veiculadas advertências nas propagandas anteriores àquela data, de 25/08/1988, seria insignificante ao deslinde da controvérsia, eis que não era legalmente exigível conduta diversa à época (evoca aplicação do disposto no art. 5º, II, da CF). Argumentou que os riscos associados ao consumo de tabaco seriam conhecidos há muitas décadas, de maneira que a omissão relativa ao ato de advertir seria juridicamente irrelevante; que a lei seria irretroativa, dado ao Princípio da Legalidade; que pretender responsabilizar a ré por comercializar livremente seus produtos, quando não havia qualquer balizamento no sentido de limitar suas atividades mercantis, é atentar contra a Constituição. A respeito da dependência causada pelo fumo, de que teria sido acometida a autora, referiu que somente a partir da portaria de número 695/99 que o Ministério da Saúde teria passado a exigir da indústria a veiculação da cláusula asseverando que “A nicotina é droga e causa dependência” – do que discordaria completamente, embora cumprisse com a determinação; que a palavra vício seria sido banalizada em seu significado, eis que teria passado a alcançar qualquer atividade prazerosa, como consumo de café, chás, chocolates e refrigerantes; que, classicamente, vício significaria dependência capaz de afastar o indivíduo de práticas e hábitos considerados importantes (e exemplificou referindo que não é raro que usuários de heroína prefiram injetar a droga a manter uma relação sexual, da mesma forma que alcoólatras perdem o interesse pelos alimentos. Em contrapartida, o cigarro permite que o indivíduo tenha uma vida plenamente normal e não se afaste das atividades que normalmente desempenha). Argumentou que o conceito clássico de vício envolveria intoxicação, tolerância e síndrome de abstinência, sendo que o consumo de cigarros não preencheria nenhum desses requisitos. Sustentou que o conceito de boa-fé deveria ser aplicado de acordo com o contexto histórico, social e cultural da época – há mais de 40 anos -, modo que seria indevido aplicar o conceito atual, que repercutiria junto ao dever de informar, sobre o fato em questão. Afirmou inaplicável o CDC, eis que não vigente na época dos fatos; e inocorrente propaganda enganosa, eis que assim somente poderia ser conceituada defeituosa a propaganda que omitisse dado essencial do produto capaz de alterar a vontade do consumidor, a ponto de não fazer o negócio – no que, segundo seu entendimento, não se enquadraria o caso dos autos. Suas propagandas, referiu, atenderiam perfeitamente aos requisitos legais; e, entre elas e a decisão da autora, de fumar, inexistiria nexo de causa e efeito, por inexistência da fator determinante ou condicionante. Afirmou que as causas da morte não poderiam ser comprovadas pela certidão de óbito firmada pelo Registrador; e que a existência de atestados médicos a respeito de a autora sofrer de outros problemas respiratórios que não o enfisema pulmonar seria indicativo de fatores externos à evolução daquela doença – como a asma brônquica, que poderia ter causa genética. Ao final, alegou que cerca de 4 a 6% dos não fumantes sofrem de enfisema pulmonar, contra 10 a 15% dos fumantes, o que demonstraria que o fumo não seria causa condicionante àquela doença – e referiu que existiriam diversos outros fatores (como poluição ambiental, exposição ocupacional, dieta etc); e que seria impraticável a inversão do ônus da prova. Requereu o julgamento de improcedência. Instruiu a defesa com os documentos de fls. 359/964.
Houve réplica (fls. 969/994), em que a parte autora alegou que a matéria seria regulada não pelo CDC, eis que não vigente à época do fato primário, mas pela Lei de Introdução ao CC; que a pretensão reparatória não se basearia em defeito do produto, em em sua qualidade essencial de causar dependência e doenças como a que acometeu-lhe; que inexistiria súmula vinculante a respeito do tema, e que precedentes judiciais haveria em todos os sentidos, tanto a favor como contra a demandada (e, para este último caso, fez referência aos nomes de ADÃO SÉRGIO DO NASCIMENTO CASSIANO; NEREU JOSÉ GIACOMOLLI; LUIZ AUGUSTO COELHO BRAGA; LUIZ ARY VESSINI DE LIMA; ARTUR ARNILDO LUDWIG; UMBERTO GUASPARI SUDBRACK e UBIRAJARA MACH DE OLIVEIRA); que a ilicitude civil do ato dependeria de verificação sobre culpa, dano e causalidade, e não da permissividade da atividade empresarial desenvolvida; que estaria caracterizado dolo da demandada na intenção de colocar e manter os níveis de nicotina no produto, garantindo dependência e consumo crescente; que estaria caracterizada a culpa, também, por sujeitar consumidores a um risco de que se tinha previsão/consciência. Argumentou que, embora a atividade empresarial desenvolvida pela demandada seja lícita, eis que paga imposto e possui alvará de localização, licença à produção de cigarros; ainda assim, nenhum alvará ou licença autorizaria a produção de cigarros com incorporação de doses de nicotina capazes de causar dependência e doenças graves às pessoas, no que se revestiria a ilicitude em questão, por abuso de direito. Seguiu aduzindo que a licença de fabricação de cigarros concedida à demandada seria genérica e não serviria de excludente de sua responsabilidade por ato ilícito, segundo regra do art. 159 do CC/16. Para exemplificar sobre limites entre direitos, referiu que o direito de liberdade de manifestação não abrigaria manifestações racistas. Argumentou que, no seu caso, na época em que começou a fumar, não eram divulgadas informações sobre o risco do hábito de fumar – o que apenas passou a ocorrer em 1988; que a admissão da demandada quanto ao risco inerente do produto equivaleria à confissão sobre sua ciência, de longa data, a respeito dos efeitos nocivos do cigarro; que a demandada não gastaria tanto com propagandas (um de seus principais custos) se não obtivesse retornos concretos; que as suas propagandas e divulgações a respeito do cigarro não teriam sido restringidas pelo Governo se este não reconhecesse que serviam de induzimento ao consumo; que não seria uma única propaganda, mas as divulgações em massa, a mensagem sub-liminar, que ensejariam o induzimento ao consumo; que as medidas governamentais e legais objetivadas à redução do consumo de tabaco representariam reconhecimento público quanto aos danos provocados pelo cigarro; que, se a indústria não comercializasse cigarros, a autora não ficaria dependente daquele vício; que se o tabagismo não provocasse dependência não seria catalogado como doença pela Organização Mundial da Saúde (CID-10); que os dados estatísticos referidos pela demandada em sua defesa não encontrariam respaldo em prova alguma, senão em documentos de origem não indicada; que inexistiria controvérsia no meio científico a respeito de que o cigarro seria droga e viciaria; que estaria comprovado, mediante atestados médicos, que instruíram a inicial, e prova emprestada do processo 10300068963 (informações prestadas em audiência por um médico, a respeito do tabagismo), o nexo de causa e efeito entre o consumo e a dependência do tabaco e a doença que ocasionou a morte da autora. Trouxe aos autos, com a réplica, os documentos de fls. 995/999.
Tréplica às fls. 1004/1028, remissiva aos argumentos de defesa.
Determinada a realização de prova pericial (fl. 1029), formularam as partes seus quesitos, e sobreveio laudo às fls. 2171/2183, do que se deu vista às partes.
Encerrada a instrução, vieram os autos em conclusão para sentença (fl. 2244).
Foi o relatório.
Passo a fundamentar a decisão que ao final adotarei.
2.0) FUNDAMENTAÇÃO:
É questão de fato alegada na inicial e admitida na defesa que a doença que acometeu a falecida autora, agora representada por seu Espólio, denomina-se Doença Broncopulmonar Obstrutiva Crônica grave e avançada (BDPOC). E é questão de fato incontroversa a de que a autora do espólio fumava desde seus 14 anos de idade (completados em 22/01/1964).
Essas questões são presumidas verdadeiras, independentemente de prova, na forma do art. 319, c/c o art. 334, II e III, do CPC.
Sobre o nexo de causalidade, questão prejudicial à análise da pretensão indenizatória, tem-se que o laudo pericial médico foi conclusivo ao afirmar que, segundo registros dos autos, a patologia da autora fora atestada a partir de 1999, avançando até estágio em que reclamou transplante pulmonar e, posteriormente, óbito; que a relação entre o tabagismo e a DPOC já está bem estabelecida há vários anos. Fumantes de cigarros apresentam um risco de 10 a 14 vezes maior de morte por DPOC (vide fl. 2173); e que cerca de 85% a 90% de todas as mortes por DPOC são atribuíveis ao tabagismo (…) existem evidências suficientes para se chegar à conclusão que existe uma relação causal entre tabagismo e morbidade e mortalidade por DPOC (fl. 2174). GRIFEI.
Embora esse mesmo laudo técnico aponte outros fatores de risco ao desenvolvimento da doença, como poluição atmosférica, profissão, clima, constituição genética, sexo, idade e raça, há conclusão reta no sentido de que a causa preponderante ao desenvolvimento da doença é o tabagismo – eis que se constitui no principal e mais nefasto fator de risco (à fl. 2177 há referência a respeito).
No caso dos autos, há diversos atestados médicos (vide documentos que instruem a inicial) que apontam nexo de causalidade entre as causas da doença da autora do espólio e o tabagismo, pelo que se exclui a possibilidade de que outros fatores fossem condicionantes ao desenvolvimento da moléstia.
Ainda que outros fatores possam ter contribuído para o agravamento da doença, a prova dos autos é contundente e determinante em apontar que a causa preponderante, ainda que não necessariamente exclusiva, foi o tabagismo (vide laudo à fl. 2179, ao referir que a etiologia da Doença Broncopulmonar Obstrutiva Crônica tem como principal responsável o uso do tabaco; e à fl. 2180, ao responder diretamente e sim ao seguintes quesitos: A causa de óbito foi ocasionada, diretamente ou indiretamente, pelo DPOC? O consumo de cigarros agravou ou acelerou o desenvolvimento do DPOC?).
Então, é absolutamente desimportante a sustentação da demandada, no sentido de que o tabagismo não seria causa única e excludente à aparição e ao agravamento da doença.
Não há dúvidas, pois, sobre a existência de nexo de causalidade entre o tabagismo e a doença que acometeu a autora, bem como seu agravamento.
De outro lado, em relação à possibilidade, ou impossibilidade de o tabagismo causar dependência, química e psicológica: sobre a negativa da demandada resta sinalar que veio desprovida de provas que lhe dessem respaldo (inobservância ao disposto no art. 333, II, do CPC); e, sobre a afirmativa da autora, resta amparada nas declarações que o Ministério da Saúde passou a exigir fossem impressas em carteiras de cigarro – o que se sabe por fato público e notório (modo que independe de prova a respeito).
Ora, é pífia a alegação de que tal exigência do órgão fiscalizador não faria prova a respeito de tal efeito farmacológico (dependência). Tal conclusão, de dependência, decorre, por óbvio, de estudos e investigações científicas que foram levadas a efeito pelo ente público, e, em qualquer caso, enseja presunção de fé pública daquilo que declarado (o declarante se trata de um órgão público federal em exercício de poder de polícia – Ministério da Saúde). Tal afirmativa e conclusão, no sentido de que o cigarro é droga e causa dependência, somente poderia ser derrotada mediante prova concreta em contrário, no que não se reveste o caso dos autos.
Quanto à dita regularidade das propagandas veiculadas pela demandada, ao tempo de sua publicação, esclareço que a ausência de tipicidade penal ou observância aos limites de alguma legislação especial (do ponto de vista de publicidade e propaganda), não afasta, de modo algum, eventual ilicitude por abuso ou arbitrariedade frente ao consumidor, em relação ao que inexiste ato jurídico perfeito, direito adquirido ou coisa julgada (não existe enquadramento em qualquer das hipóteses do art. 6º da LIC).
Ainda que, à época, não vigente o CC/2002 e nem o CDC, não se pode dizer que a regularidade com que veiculada a propaganda pudesse afastar eventual direito indenitário (decorrente da omissão ao dever de informar sobre o risco do produto), eis que se trata de questão desvinculada, alheia à licitude do ato de publicidade. Uma coisa uma coisa; outra coisa outra coisa.
Sobre a questão de o risco ser inerente ao produto, como alegado pela demandada, esclareço-lhe que todo produto, defeituoso ou não, viciado ou não, que de alguma forma qualquer implique em risco à saúde do consumidor, detém mácula em sua origem que lhe é, pois, inerente, não havendo distinção, prática ou formal, sobre as espécies de risco. Todo e qualquer risco de essência (de origem, como no caso do cigarro) é inerente ao produto (basicamente, todo e qualquer risco é de essência, de inerência).
O mesmo ocorre com o transporte rodoviário ou aéreo, cujo risco de acidentes e mortes é sempre inerente ao serviço – que, nem por isso, afasta o dever de indenizar por responsabilidade objetiva, independentemente de culpa, como recentemente se verificou nos casos de acidente aéreo no Aeroporto de São Paulo (onde um avião da TAM bateu em uma construção) e no Caso do jatinho Legace há quatro anos atrás (onde um jato colidiu com a asa de um avião da Gol, causando-lhe queda em meio à mata Amazônica – caso em que ainda se discute se houve erro dos operadores de tráfego aéreo brasileiros ou se houve erro dos americanos pilotos do Legasse). Em qualquer um destes casos a justiça Brasileira vêm concedendo indenizações aos familiares das vítimas por decorrência de risco inerente, sem que se tenha cogitado da comprovação de culpa, dado à responsabilidade objetiva pelo risco do produto.
O risco, inexoravelmente, é do produto ou do serviço. Assim se dá em qualquer área, seja no mercado tabagista, seja na prestação de serviços aéreos. As indústrias tabagistas não formam categoria à parte, e não se sujeitam a normas distintas (de exceção), senão à Teoria do Risco Criado, de CAIO MÁRIO.
Com todo o respeito que merece, e que ora recebe, o nobre Ministro do STJ Luis Felipe Salomão, a quem admiro em sua história de vida e atuação, pessoa de inegável brilho e competência, entendo que sua posição, erigida em REsp/RS 1113804, julgado em 24/04/2010 (do que não consta, ainda, publicação na internet), de exclusão do dever de indenizar ao fundamento de que o risco inerente elidiria a responsabilidade para todo e qualquer caso de risco do produto ou do serviço, afronta a todo o ordenamento vigente no país, não apenas à Norma de Defesa e Proteção do Consumidor.
Salvo melhor juízo, o posicionamento do nobre Ministro vai na contra-mão dos Ordenamentos Material e Processual vigentes (regra do artigo 927,§ único, do CC/2002 – que fala de risco do produto ou do serviço, por sua natureza, aos direitos de outrem, estendendo os efeitos da lei àqueles riscos de inerência; art. 931, do CC/2002; art. 5º, V, da CF/88), como também da Carta Magna, e esbarra em hipótese de absoluta insegurança jurídica – eis que abre margem ilimitada à casos de reserva de lei. Em singelas palavras, vai DE encontro aos preceitos e princípios, que norteiam o ordenamento jurídico com um todo.
Ora, o risco de inerência, com maior razão, está a atrair a responsabilidade e o dever de indenizar.
E não pode deixar de ser considerado o fato de a demandada admitir, expressamente, que detinha ciência, já em 1964, sobre os malefícios e riscos inerentes ao cigarro. Ela, enquanto indústria dotada de aparato técnico e científico, estava obrigada, guardados os princípios da boa-fé objetiva e contratual, a ser transparente e advertir a respeito, o que visivelmente e declaradamente não fez (senão após exigências impostas pelo Ministério da Saúde).
Nesse particular, em atenção aos Princípios da boa-fé objetiva e contratual, que sempre nortearam o direito obrigacional e contratual, lembro que sua aplicação já vinha insculpida em diversos artigos do CC/1916 (art. 622, 968, 221, 490, 491, 546, 549, 935, 1443, 1446, 1404 – e.g.), modo que inafastável a sua aplicação ao caso em concreto (cuja origem remonta ao ano de 1964).
No caso em comento, o fato teve início em 1964, desde quando a autora do espólio passou a consumir os cigarros produzidos pela demandada. Inicialmente, pois, aplicava-se aos fatos, vigentes até o ano de 1988, a Constituição vigente à época, além do CC de 1916.
A relação de consumo existente entre as partes, contudo, segundo alegações dos autos, perdurou até o óbito da autora do espólio, ocorrido em 23/02/2005, modo que, a partir de 1988, passou a incidir sobre a hipótese dos autos a CRFB então vigente; a partir de 1991, o CDC; e, a partir de 2003, o CC/2002.
Desde o início da relação estabelecida, entretanto, já incidia a Teoria do Risco, conforme SILVIO RODRIGUES apontava em seu 4º volume da Coleção de Direito Civil, tomo da Responsabilidade Civil, 7ª ed., de 1983, p. 11: A teoria do risco é a da responsabilidade objetiva. Segundo essa teoria, aquele que, através de sua atividade, cria um risco de dano a terceiros, deve ser obrigado a repará-lo, ainda que sua responsabilidade e seu comportamento sejam isentos de culpa. Examina-se a situação e, se for verificada, objetivamente, a relação de causa e efeito entre o comportamento do agente e o dano experimentado pela vítima, esta tem direito a ser indenizada por aquele.
GAUDEMET, ainda no direito francês vigente pelo Código de Napoleão, referia que toda manifestação de atividade implica um risco, expõe a lesar interesses e cada um deve suportar o risco do dano causado por um fato seu (in Théorie Generale des Obligations, apud CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA – Responsabilidade Civil, 6ª ed., Ed. Forense, 1995, p. 267).
E, entre nós, o precursor foi ALVINO LIMA, na tese apresentada junto à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em 1938, com o título “Da culpa ao risco”, reeditada em 1960 sob o novo título “Culpa e Risco” (apud CAIO MÁRIO, op cit).
É inafastável, pois, tanto sob a ótica da boa-fé contratual quanto sob a ótica da teoria do risco (que estão intimamente relacionadas), a incidência, na hipótese dos autos, não apenas o dever de transparência e de advertência sobre os riscos, como, também e especialmente, o dever de reparar danos advindos deste risco criado ao consumo.
Sob a teoria do risco, responsável é aquele que, ao escopo de tirar proveito ou lucro da situação e por ato próprio, cria o risco e expõe a danos outrem (CAIO MÁRIO, op. cit., fl. 270; CAVALIERI FILHO, SÉRGIO, Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed., 2009, p. 137; e PABLO STOLZE, Novo Curso de Direito Civil, 7ª ed.,2009, p. 136).
Nessa hipótese se enquadra, com perfeição, a demandada, e não pode servir a dificuldade de se enquadrar a ilicitude de seu ato (que nem por isso deixa de ser ilícito) em exceção do dever de reparar o dano a que, invariavelmente, deu causa (dano esse que poderia e deveria ter evitado, mas não o fez).
A Teoria do Risco está consagrada há muitas décadas na jurisprudência pátria, tanto assim que já era prevista no art. 872 (Aquele que, em razão de sua atividade ou profissão, cria um perigo, está sujeito à reparação do dano que causar, salvo prova de haver adotado todas as medidas idôneas a evitá-lo) do Projeto de Código de Obrigações de 1965 (contemporâneo, pois, ao início dos fatos).
Posteriormente, essa Teoria foi paulatinamente reconhecida e recepcionada nas legislações extravagantes que se sucederam (especialmente em relação à responsabilidade objetiva do estado; dos pais pelos filhos ou animais; pelo dano ao meio ambiente e pelo empregador frente ao risco do trabalho, e.g.: Dec. n. 2681/1912; Lei 5.316/67; Dec. n. 61784/67; Lei 8213/91; Lei 6194/74; Lei 6938/81 e por aí segue), culminando-se a sua consagração com o parágrafo único do art. 927 do CC/2002.
A Teoria do Risco, especialmente o inerente ao fato ou produto, enfim, está há tempos consagrada pelo STJ, como, a exemplo, em brilhante voto da lavra da Excelentíssima Ministra Nancy Andrighi, no REsp n. 401397/SP, publicado em 09/09/2002, cuja ementa é a que segue:
Recurso Especial. Ação indenizatória. Transporte Aéreo. Atraso em vôo c/c adiamento de viagem. Responsabilidade Civil. Hipóteses de exclusão. Caso Fortuito ou Força Maior. Pássaros. Sucção pela turbina de avião.
– A responsabilização do transportador aéreo pelos danos causados a passageiros por atraso em vôo e adiamento da viagem programada, ainda que considerada objetiva, não é infensa às excludentes de responsabilidade civil.
– As avarias provocadas em turbinas de aviões, pelo tragamento de urubus, constituem-se em fato corriqueiro no Brasil, ao qual não se pode atribuir a nota de imprevisibilidade marcante do caso fortuito.
– É dever de toda companhia aérea não só transportar o passageiro como levá-lo incólume ao destino. Se a aeronave é avariada pela sucção de grandes pássaros, impõe a cautela seja o maquinário revisto e os passageiros remanejados para vôos alternos em outras companhias. O atraso por si só decorrente desta operação impõe a responsabilização da empresa aérea, nos termos da atividade de risco que oferece. GRIFEI.
Voltando ao caso em concreto, é preciso registrar que a demandada admite expressamente que detinha ciência, desde sempre (inclusive, pois, na época dos fatos aqui sob discussão), acerca dos malefícios e riscos causados pelo cigarro (produto por ela fabricado ao escopo de garantir lucratividade); bem como de que apenas passou a alertar a população a respeito quando tal lhe foi imposto pelo Ministério da Saúde, já no ano de 1988 – fato esse que não depende da produção de prova, na forma do art. 334, II, do CPC.
Resta clara a ilicitude, agora, configurada na proposital omissão da demandada frente ao dever de informar, certamente escorada na intensão de obter lucros maiores ante o desconhecimento da sociedade e dos consumidores.
Nesse aspecto, SANTIAGO DANTAS, apud CAVALIERI FILHO, SÉRGIO, Programa de Responsabilidade Civil, 8ª ed., p. 9, conceitua: O ato ilícito é a transgressão de um dever jurídico. E o dever jurídico (e não legal, porque o legal decorre de lei e de regras materializadas, e o jurídico decorre de norma que pode ser principiológica e moral) afrontado no caso em específico foi o de guardar boa-fé e, consequentemente, ser transparente e advertir acerca dos riscos à vida e à saúde.
Seria, então, dispensável o cotejo da norma especial (CDC) ao caso em específico para apurar-se o dever de indenizar, eis que simplesmente com base na velha e conhecida Teoria do Risco já se poderia chamar ao dever de indenizar. Ainda assim, é necessária a compreensão de que o dano à saúde, relativamente à saúde física pessoal da autora, apenas se tornou evidente a partir de 1999 (vide documentos dos autos e manifestação do perito), desde quando já vigente e aplicável o CDC, eis que balizador da relação estabelecida e mantida entre as partes.
E há precedentes de nosso TJRS, que perfilho, a respeito da incidência do CDC mesmo a fatos pretéritos a sua vigência – eis que se trata de norma cogente, dado ao seu caráter público, e intemporal (Apelação Cível Nº 70016845349, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Odone Sanguiné, Julgado em 12/12/2007).
E, no mesmo sentido, vale citar:
APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. VÍCIO DE FUMAR. RESPONSABILIZAÇÃO DA COMPANHIA PRODUTORA DO CIGARRO. PRESSUPOSTO DA RESPONSABILIDADE CIVIL INDEMONSTRADO. Por evidente que a empresa que fabrica cigarros, apesar de atuar dentro da lei vigente, não se exime, pela teoria do risco, dos efeitos indesejados que seus produtos causarem a determinados indivíduos, máxime à luz do CDC, cujas normas de ordem pública, atingem os fatos ainda não consolidados antes da sua vigência. Por outro lado, a pretensão fulcrada no alegado defeito do produto (cigarro) não dispensa a demonstração da existência do dano e do nexo causal, pressupostos da responsabilidade de indenizar, o que aqui não se verificou. Já as cópias reprográficas acostadas com as razões de apelo, em nada influenciarão o julgamento, não representando, portanto, qualquer prejuízo à parte adversa a recomendar o desentranhamento. APELO IMPROVIDO. PRELIMINAR AFASTADA. (Apelação Cível Nº 70013363718, Décima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ary Vessini de Lima, Julgado em 06/04/2006). GRIFEI.
Conclui-se, enfim, que, ainda que dispensável a sua incidência, para fins de solução da questão, é inevitável que o CDC e suas normas especiais regulem a questão de fato aqui posta, conquanto se trata de lei imperativa, cogente, intemporal, e o direito salvaguardado é indisponível (vida e saúde). Aliás, não é à toa que o Código é de PROTEÇÃO e Defesa do Consumidor.
Assim, e tendo-se por notório o fato de que as propagandas à época divulgadas (1964) careciam em absoluto de informação ou advertência acerca dos riscos inerentes ao produto (modo que dispensada a produção de provas a respeito, na forma do art. 334,I, do CPC), está configurado o excesso ou abuso no exercício do direito de marketing/publicidade.
Mas, mesmo consideradas as propagandas atuais, entendo que é caso de responsabilidade, como venho dizendo, justamente pela aplicação da Teoria do Risco.
E, não se olvide, não seria a licitude da atividade desenvolvida pela demandada, ou mesmo a licitude da propaganda veiculada, que serviriam ao condão de elidir a responsabilidade pelo excesso praticado quando do exercício daqueles direitos (de publicitar e de comercializar).
Sobre a inexistência de informações sobre os riscos à época em que a autora começou a fumar; sobre o excesso no exercício do direito de publicidade; e sobre a suscitada concorrência culposa da autora do espólio, fumante ou consumidora dos cigarros produzidos pela demandada, cabe ser citado, também, o profícuo e muito bem lançado voto de MARA LARSEN CHECHI, cujas palavras faço minhas:
(…)
o exercício do amplo e vago poder de agir, decorrente de ausência de proibição legal, não confere senão uma frágil presunção de licitude do ato (omissivo ou comissivo) praticado. Caracteriza ilícito o mau uso da liberdade de exploração da atividade tabagista, mediante manipulação fraudulenta das sementes de tabaco e da química utilizada na industrialização do cigarro, inspiradas pelo intuito exclusivo de lucro. O fato apropriado pelo domínio público, através do meio de comunicação mais ágil e abrangente disponível na atualidade, subsume-se na previsão do artigo 334, I, do CPC, que dispensa atividade probatória. No controle da licitude da liberdade de exercer o comércio, assim como da liberdade de ir e vir, não é a natureza do direito que conta, mas o cumprimento dos deveres gerais de prudência no exercício da liberdade. Não se confundem a reprovação do abuso no exercício do direito e a reprovação do ilícito praticado por ocasião ou à margem do exercício do direito: os atos da segunda categoria se situam fora dos limites “externos” do direito eles correspondem a nada mais do que o mau uso de uma liberdade. Doutrina de JACQUES GHESTIN. A teoria da aceitação do risco só se aplica aos perigos habituais ordinários e normalmente previsíveis, ligados a uma atividade. O consentimento do ofendido só opera como excludente de ilicitude sobre bens jurídicos disponíveis. Quando se cuida de direitos à vida e à saúde, flagrantemente indisponíveis, a ordem pública se impõe, tornando ineficaz tal consentimento. Doutrina de APARECIDA AMARANTE. Se a conduta do ofensor agrava as chances de um dano efetivamente produzido, assiste à vítima indenização proporcional a este risco. O dano moral, nos casos de morte do pai e de cônjuge, é ínsito às relações afetivas que, de regra, qualificam o vínculo consanguíneo e matrimonial. Indenização pelo luto da família arbitrada em 500 (quinhentos) salários mínimos, na forma do art. 1.537 do CCB, abrangendo o pretium doloris e uma série de outras perdas. Limite temporal da pensão por morte, devida a filho menor, em proporção inversa com a aquisição da capacidade laborativa, presumida, por construção pretoriana, aos vinte e quatro (24) anos de idade, não tem relação com a maioridade civil definida no art. 9º do CCB. Reversão em prol da viúva. Valor do pensionamento devido aos dependentes limitado a 2/3 da remuneração da vítima, deduzido 1/3, correspondente aos gastos pessoais, se vivo estivesse. SENTENÇA REFORMADA. (Apelação Cível Nº 70004812558, Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Mara Larsen Chechi, Julgado em 13/10/2004)
E, ainda:
Portanto, tendo a indústria, a ré em particular, fabricado e comercializado o cigarro, com pleno conhecimento e consciência dos malefícios que o produto de sua fabricação causa à saúde de fumantes e de não-fumantes (bystanders), inclusive a dependência química e psíquica, não há qualquer dúvida de que, quem fabricou e comercializou, criou conscientemente o risco do resultado, razão pela qual tinha e tem a obrigação de impedi-lo. Omitindo-se flagrantemente nesse mister, não há dúvida de que está caracterizada a sua culpa por omissão e, no caso, pelo resultado morte da vítima Eduardo. É a situação caracterizada de omissão na ação a que se aludiu. (grifo nosso)
Ora, não há dúvida que a atividade da ré é lícita, mas também não há dúvida de que ela sempre soube e sempre teve plena consciência, desde o princípio, há muitos anos atrás, que o cigarro vicia e causa câncer. Desse modo, não só a ré sempre criou o perigo como também sempre omitiu eventuais precauções com relação ao prejuízo a fumantes e não-fumantes. Aliás, quanto aos não-fumantes especialmente porque a fumaça que os atinge no mais das vezes sequer passou pelo filtro ou piteira do cigarro. E a omissão sempre foi deliberada, consciente, chegando, como já referido, aos lindes do dolo, como revelaram os arquivos secretos já referidos. É verdade que não se pode dizer que havia dolo na causação ou objetivação do prejuízo, de modo que aí houve sim apenas culpa, mas não se pode deixar de reconhecer que, na omissão quanto a evitar e prevenir a dependência química e psíquica e demais malefícios do cigarro, está caracteriza situação que chega aos limites do dolo, precisamente pela ocultação desses fatos e pela estratégia de propaganda que sempre passou mensagem omissa, enganosa, massificante, cooptante e aliciante. (grifo nosso)
(…)
Todavia, se se entender, como entendo, que o Direito ou a ordem jurídica é um sistema e não se esgota na simples letra fria da lei positiva posta pelo Estado; se se entender que além da lei existem os princípios gerais de direito, entre eles aqueles antes mencionados; e se se entender que a ordem jurídica, os princípios gerais de direito, assim como os valores superiores da justiça, não convivem com a iniquidade, especialmente quando a vontade é anulada pela dependência química e psíquica, e que ninguém pode fabricar e colocar no mercado um produto que causa doença e morte, então não há como se deixar de concluir que, o fabricante e o comerciante de tal produto, têm efetiva e concreta responsabilidade pelos danos e consequências maléficas causadas pelo produto, responsabilidade essa que é reforçada, no caso particular, especialmente por outro elemento, que é a altíssima lucratividade como característica peculiar da atividade. (TJRS – AC nº 70000144626 – Nona Câmara Cível – Rel. Des. Adão Sérgio do Nascimento Cassiano – J. em 29/10/2003). GRIFEI.
Superada a questão da legislação e das normas e Princípios aplicáveis ao caso dos autos, resta vencer ainda alguns argumentos da demandada que, embora pueris, seu enfrentamento racional servirá ao resguardo do direito invocado.
Note-se que, voltando ao tópico do risco do produto, releva sinalar que o risco aqui sob foco (a que expõe o cigarro) não é um risco qualquer e tampouco é um risco tolerado pelo ordenamento Pátrio: se trata de um risco que expõe direitos indisponíveis e afeta interesses coletivos e públicos (a incolumidade do dever de transparência e do dever de manter-se a boa-fé contratual e social, e a incolumidade da saúde pública e do direito à vida). De forma que o risco a que expõe o produto comercializado pela demandada não é aceitável ou tolerável e não está, repito, à margem da legislação vigente. Bem ao contrário, o risco é grave e digno de repressão séria, exigindo reta e prudente condenação que atenda aos devidos fins pedagógicos a que o caso reclama.
Não se está a falar de segurança absoluta do produto, por óbvio, mas de uma segurança mínima, que estava e está ao alance da demandada, de cujo dever de cautela se omitiu e vêm se omitindo.
E, mesmo que não fosse o caso de a demandada estar se omitindo frente ao risco (o que definitivamente não é o caso dos autos), ainda que fosse cautelosa e prudente no sentido de advertir à sociedade sobre os riscos e malefícios do cigarro, AINDA ASSIM não se afastaria o seu dever de indenizar e responder frente aos danos causados, eis que decorridos de ato seu, erigido em atividade mercantil destinada a obtenção de lucros fáceis.
A omissão ou falta em relação ao dever de cuidado serve apenas para agravar a ilicitude do ato e chama, com muito mais razão, ao dever de indenizar.
No caso em específico, em que a parte lesada iniciou o tabagismo em 1964, o vício do produto esteve oculto, eis que nenhuma informação lhe foi passada a respeito de qualquer risco atrelado ao cigarro (como os de vício e dependência e de malefícios outros à saúde) àquela época.
As propagandas da época nada alertavam a respeito, outrossim induziam à crença (razoável para a sociedade e os costumes da época) de que o cigarro era indicativo de requinte, charme, sedução e, acima de tudo, de saúde. Nesse ínterim chama-se a atenção às imagens de marketing que veiculavam pessoas jovens e esbeltas, belas e bem vestidas em exercício de atividades esportivas e universitárias (vide fl. 101 – onde pessoas que velejam e sabem o que querem também fumam; fls. 102 e 112 – onde um casal aparentemente feliz e de requinte fuma como um estilo de vida; fl. 107, onde pescadores de sucesso são fumantes; fl. 109, em que figuras representativas de executivos de sucesso, ao lado de um helicóptero, ostentam o hábito de fumar e ter classe; fl. 111, onde universitários vestindo jalecos, de fronte a um quadro negro e segurando pastas e cadernos representam a jovialidade, o sucesso e a saúde do hábito de fumar; f l. 117, onde figuram dois jovens magros e de aparente saúde, vinculados à imagem do cigarro; fl. 118 e 119, onde se veiculam paisagens naturais e figuras de pessoas em momentos de relaxamento junto aos dizeres naturalmente suave; fl. 124, onde se atrela a imagem de praticantes de hipismo ao tabagismo; fl. 139, onde um casal fuma em meio a uma ambiente natural e na companhia de um cão; fl. 142, onde um carro de fórmula 1 está atrelado à imagem do cigarro; e fl. 144, onde figuras de belas mulheres aparecem fumando como sinal claro de requinte e jovialidade).
Desponta nítido, pois, que a participação inicial da falecida autora não foi preponderante ao desencadeamento do vício ou do hábito de fumar. O que se constituiu em uma inicial liberalidade esteve maculada por uma série de informações tendenciosas e falsas, que foram passadas pelo marketing das indústrias tabagistas. E o vício não decorreu dessa liberalidade inicial, mas do defeito do produto e da falta de alarde a respeito.
E não se ignora decisão do STJ (Resp nº 886.347 – RS) no sentido de conferir afastamento de responsabilidade de indústria fumageira, ao argumento do exercício, pelo fumante, do livre-arbítrio (fumou porque quis). Contudo, a reflexão racional neste sentido é meia verdade apenas, e, como qualquer meia verdade, é mentira inteira. Note-se que, no julgado acima enumerado, a decisão judicial reconheceu ser livre o arbítrio do fumante ao argumento de que
o Autor começou a fumar nos idos de 1988, mesmo ano em que as advertências contra os malefícios provocados pelo fumo passaram a ser veiculadas nos maços de cigarro (…) com as advertências, explicitamente estampadas nos maços, M. E. optou por adquirir, espontaneamente, o hábito de fumar, valendo-se de seu livre-arbítrio
No caso dos autos, contudo, a autora começou a fumar em 1964, quando ainda não existia qualquer advertência acessível ao público, modo que não serve o aresto de precedente para o caso em específico.
Mas, mesmo que se admita que quem comece a fumar o faça por livre vontade, não se pode esquecer de que há substâncias químicas viciantes no cigarro, que levam à dependência, da qual não se afasta pelo simples livre-arbítrio. Tratamentos rigorosos, não disponibilizados aos interessados, seriam necessários.
Volto a gizar, porém, que, mesmo que tenha sido por livre arbítrio, mesmo que seja lícita a produção de cigarros, mesmo que na propaganda tivesse sido feita a devida advertência, mesmo que o fumante soubesse que corria riscos, MESMO ASSIM, existe responsabilidade da empresa fumageira, pela vigência da Teoria do Risco criado ou assumido (se da sua atividade lucrativa resulta risco de causar dano, responde por isso – é elementar no ordenamento jurídico brasileiro).
Quando muito, a ocorrência de fatores concorrentes entre o risco criado ou assumido e o ato de fumar serviriam unicamente para amenizar a intensidade de eventual responsabilização.
Pois, enfim, a moléstia que acometeu a autora está necessariamente vinculada ao tabaco, como descreveu e concluiu o laudo pericial.
Assim, estabelecida a relação entre a moléstia e o hábito de fumar, resta enfrentar-se as questões da existência do dano alegado e da configuração do nexo causal.
E é necessário mencionar que a requerida não demonstrou que a autora tenha consumido outras marcas de cigarro, além daquela fabricada pela sua empresa, não cumprindo, portanto, a incumbência que lhe foi determinada pela inversão do ônus da prova.
De qualquer forma, ainda que tivesse logrado êxito na demonstração desse fato – o que não ocorreu – não seria a demandada socorrida pela exclusão da responsabilidade, uma vez que a procedência daquele argumento geraria apenas o efeito de chamar à responsabilidade a indústria fabricante do cigarro de outra marca.
Isso porque, em face da doutrina da solidariedade na causalidade alternativa – que é compreendida no interesse da tutela do lesado – a impossibilidade de exata identificação do agente causador do dano não afasta a responsabilidade; antes, pelo contrário, tem o condão de projetar os efeitos da solidariedade a todos aqueles que tenham potencialmente contribuído para o evento danoso.
Logo, se o requerente fumou cigarros de uma marca, ou de várias, pouco importa. A responsabilidade se fará presente em ambos os casos, com a tênue diferença de que, na primeira hipótese, será suportada exclusivamente pela empresa identificada, e na segunda, será repartida solidariamente entre todos.
Pois bem.
Atualmente é cediço que as empresas fumageiras em geral sempre tiveram plena consciência dos males provocados pelo consumo de cigarros. Não obstante ter conhecimento de todos os efeitos nocivos acarretados pelo fumo, continuaram (e continuam) buscando mecanismos para ampliar o mercado consumidor de seu produto, através de propagandas que associam o tabaco a imagens de beleza, sucesso, poder, inteligência, dentre outras características almejadas por todas as pessoas.
Nos Estados Unidos da América do Norte, uma ação promovida por estados membros contra grandes empresas de cigarro, trouxe à tona os arquivos secretos dessas indústrias (disponível em http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=atento&link=arquivos_secretos.pdf, segundo visita datada de 21/06/2010), que demonstram, por um lado, o posicionamento público dessas empresas, que revela sua intenção de enganar o público para angariar cada vez mais consumidores, e, por outro lado, seu real posicionamento, consciente de todos os efeitos maléficos causados pelo fumo.
De fato, atualmente, não existe dúvida sobre os efeitos prejudiciais do consumo de cigarros, que são amplamente divulgados, combatendo-se ostensivamente o hábito tabagista.
No entanto, não se pode perder de vista que a autora começou a fumar quando contava com 14 anos de idade, ou seja, seu primeiro cigarro foi consumido no ano de 1964, período em que, repito, não havia, como existe hoje, a divulgação e notoriedade dos efeitos repercutidos pelo consumo de tabaco (embora esses efeitos já fossem conhecidos pelas indústrias fumageiras, conforme documento supracitado), o que se iniciou principalmente em 1996, com a edição da Lei 9.294, que dispõe sobre as restrições ao uso e à propaganda de produtos fumígenos, entre outros, regulamentando o art. 220, § 4º da Constituição Federal.
A despeito de todo o conhecimento acerca dos distúrbios causados à saúde, as indústrias tabagistas, em especial a ora demandada, continuaram exercendo sua atividade, inquestionavelmente lícita, é verdade, contudo sem qualquer preocupação em divulgar tais consequências.
Ao contrário, verifica-se um investimento maciço em propagandas publicitárias para incentivar o consumo de cigarros, dirigidas especialmente aos jovens, como no caso da autora, que, conforme já mencionado, tinha 15 (quinze) anos quando fumou seu primeiro cigarro.
Nesse sentido, cabe reproduzir trechos de artigos publicados no site do Instituto Nacional do Câncer (http://www.inca.gov.br/tabagismo/frameset.asp?item=jovem&link=namira.htm, mediante consulta datada de 21/06/2010):
A promoção e o marketing de produtos derivados do tabaco junto ao público jovem são essenciais para que a indústria do fumo consiga manter e expandir suas vendas. O tabaco é a segunda droga mais consumida entre os jovens, no mundo e no Brasil, e isso se deve às facilidades e estímulos para obtenção do produto, entre eles o baixo custo. A isto somam-se a promoção e publicidade, que associam o tabaco às imagens de beleza, sucesso, liberdade, poder, inteligência e outros atributos desejados especialmente pelos jovens. A divulgação dessas ideias ao longo dos anos tornou o hábito de fumar um comportamento socialmente aceitável e até positivo. A prova disso é que 90% dos fumantes começam a fumar antes dos 19 anos de idade. Seduzir os jovens faz parte de uma estratégia adotada por todas as companhias de tabaco visando reabastecer as fileiras daqueles que deixam de fumar ou morrem, por outros consumidores que serão aqueles regulares de amanhã”. (GRIFO NOSSO)
A publicidade veiculada pelas indústrias soube aliar as demandas sociais e as fantasias dos diferentes grupos (adolescentes, mulheres, faixas economicamente mais pobres etc.) ao uso do cigarro. A manipulação psicológica embutida na publicidade de cigarros procura criar a impressão, principalmente entre os jovens, de que o tabagismo é muito mais comum e socialmente aceito do que é na realidade. Para isso, utiliza a imagem de ídolos e modelos de comportamento de determinado público-alvo, portando cigarros ou fumando-os, ou seja, uma forma indireta de publicidade. A publicidade direta era feita por anúncios atraentes e bem produzidos, mas foi proibida no Brasil. Com a Lei 10.167, que restringe a propaganda de cigarro e de produtos derivados do tabaco, esse panorama tende a mudar a médio e longo prazo. (GRIFO NOSSO)
Observe-se que, além de todos esses investimentos para captar consumidores, as indústrias fumageiras tentam criar mecanismos para diminuir o impacto causado pelas consequências associadas ao vício tabagista, como no caso da demandada, que pretendeu distribuir selos para os seus consumidores, a fim de que estes pudessem encobrir as desagradáveis imagens impressas no verso das carteiras de cigarro.
Contudo, tal medida não foi autorizada:
A Souza Cruz acaba de perder mais uma batalha para a Anvisa. A Justiça negou o direito de continuar distribuindo etiquetas de visual lustroso aos clientes. Tratava-se de uma esperteza. Aplicado no maço, o mimo que a empresa ofertava escondia aquelas imagens horrendas que o Ministério da Saúde inventou para assustar a turma da fumaça (Fonte: Revista Veja – 07/07/2004).
Conclui-se, portanto, que a requerida incentiva a desinformação e projeta aos seus consumidores mensagens subliminares, como no caso acima, em que pretende esconder as chocantes imagens inseridas nos maços de cigarro, mediante a distribuição de etiquetas, como se essa medida fosse capaz de imunizar os fumantes de qualquer malefício que pode ser causado a sua saúde.
Enfim, é inquestionável o fato de que o cigarro provoca uma série de problemas à saúde, o que já era conhecido pela demandada e por outras empresas fumageiras há várias décadas, muito antes de se iniciar a divulgação dessas informações.
Assim, não há que se falar em opção livre, nem mesmo com relação aos primeiros cigarros, especialmente com os jovens, pois desde o surgimento das indústrias fumageiras sempre houve a demonstrada propaganda apelativa e tendenciosa ao engano.
Pois, verificado o dano, cumpre estabelecer o nexo causal.
Constatado o dano e o nexo de causalidade, passa-se ao exame da culpa.
Na época dos fatos, vigia o Código Civil de 1916, que estabelecia:
Art. 159. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano.
Percebe-se que o direito brasileiro contempla duas hipóteses de configuração da culpa: a ação ou omissão.
A demandada sempre soube que a composição do tabaco contém uma série de componentes que ocasionam a dependência química e psíquica dos seus usuários e inúmeras doenças resultantes do uso continuado do produto, criando, com a colocação destes no mercado, o risco do resultado; e tendo, portanto, a obrigação de impedí-lo.
Omitindo-se e atuando de forma negligente, responde na modalidade de culpa por omissão, e, no presente caso, pela moléstia desenvolvida pela requerente – sem se afastar sua responsabilidade decorrente da culpa por ação: ação de expor à risco o mercado de consumo, em razão dos malefícios do produto disponibilizado/produzido.
Importante mencionar a improcedência da alegação referente à culpa concorrente ou exclusiva da vítima, principalmente se considerarmos (como já referido) a demasiada publicidade promovida pela requerida, bem como a dependência química e psíquica causada pelo consumo de cigarros. Mas, mesmo que houvesse essa culpa concorrente do fumante (que foi fumar porque quis), volto a gizar, essa não afastaria a responsabilidade pelo risco da atividade que a requerida optou em desenvolver.
Passo à fixação do valor da indenização.
Quando se cuida do dano moral, a indenização tem caráter dúplice: ao mesmo tempo em que objetiva punir o causador do dano pela ofensa que praticou, visa compensar a vítima pelo mal sofrido.
No ordenamento jurídico pátrio há controvérsia doutrinária e jurisprudencial quanto aos critérios para fixação do ‘quantum’ indenizatório para ressarcimento dos danos morais decorrentes da responsabilidade civil, posto não haver dispositivos legais específicos.
(…)
e acordo com a chamada Teoria do Desestímulo, em síntese, o valor da indenização por danos morais não pode nem deve enriquecer ilicitamente o ofendido, mas há que ser suficientemente elevada para servir de desestímulo a novas agressões. (CRAVO, Roldenry. Fixação do quantum indenizatório nas ações por danos morais. In: Revista Jurídica Consulex, ano VIII, nº 189, dez/2004, p. 30) (GRIFO NOSSO)
Com efeito, tem relevância não apenas a análise da intensidade do sofrimento econômico causado, para se estimar o valor a se indenizar, mas também a capacidade financeira da infratora, para que se arbitre um valor suficientemente capaz de prevenir ocorrência de nova conduta idêntica.
Em outras palavras, em relação ao valor indenizável, pesa certificar que há de ser fixado em consonância com o poderio econômico da requerida, para que não perca o seu caráter de sanção, vez que a pena deve sempre trazer uma desvantagem maior que a vantagem auferida pelo ilícito, para que exerça a prevenção sobre o ato danoso (Teoria de Prevenção).
Além disso, o quantum indenizatório também deverá observar critérios de razoabilidade e proporcionalidade, assim como as circunstâncias definidoras do caso concreto.
A empresa demandada possui imenso porte econômico, sendo
um dos cinco maiores grupos privados brasileiros, subsidiária do grupo British American Tobacco, o segundo maior do mundo no mercado de tabaco, com operações em cerca de 180 países. (Jornal Tribuna Catarinense, ed. n. 801 de 23/05/2006, na matéria sob título: Cargas da Souza Cruz são campeãs em assaltos)
Verificado o comprometimento da integridade física da autora, bem como de seu estado emocional, ocasionado pela enfermidade, que decorre diretamente do consumo de cigarros, a qual a levou ao fenecimento, deve a empresa demandada ser responsabilizada, em razão de todos os argumentos lançados nesta decisão, fixando-se a indenização em R$ 500.000,00 (quinhentos mil Reais), a ser corrigido monetariamente pelo maior índice de correç