Populismo jurídico – Parecer da AGU não impede compra de terra por estrangeiro

[Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo deste domingo]

Pareceres e interpretações de eficácia duvidosa serão perda de tempo e cortina de fumaça, com prejuízos para a economia nacional.

Diante das mudanças climáticas que desafiam o futuro da humanidade e das crises alimentar e energética, que já se fazem sentir, o ponto mais importante da agenda, tanto dos Estados quanto das mais poderosas organizações internacionais, governamentais ou não, passou a ser o equacionamento entre a preservação ambiental, o aumento da produção de alimentos e a descoberta de novas matrizes energéticas.

É indubitável ser essa uma difícil tarefa, mormente por despertar sentimentos muitas vezes antinômicos entre si, como segurança nacional, defesa da soberania nacional, medo da ocupação do território nacional, xenofobia, indigenismo e fervor verde, que podem facilmente alimentar o populismo político de todas as cores e tendências.

Insere-se nessa complexa problemática a manchete da Folha de 29 de maio(“Brasil vai limitar terra para estrangeiro”), sobre a pretensão do governo de impedir uma “invasão estrangeira” do Brasil, sobretudo da Amazônia. A solução jurídica aventada para impedir a compra de terras por empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro foi a emissão de parecer pela AGU (Advocacia Geral da União) fixando limites para tais aquisições.

Para entender o problema, é necessário analisar, ainda que sucintamente, o estado atual da legislação e da doutrina brasileiras sobre a matéria. A base de nossa legislação agrária é a Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra). Seguiu-se a Lei 5.709/71, que fixa limitações à compra de imóveis rurais por pessoa jurídica brasileira com maioria de capital social estrangeiro.

Ambas são leis ordinárias, editadas no período ditatorial, sob a influência da doutrina da segurança nacional. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 diferenciou a empresa brasileira de capital nacional e a empresa brasileira de capital estrangeiro. Essa distinção foi retirada do texto constitucional pela Emenda Constitucional 6/95. Tal emenda não foi fruto de mero diletantismo. Enraizou-se na imprescindibilidade de estimular a entrada de capitais estrangeiros quando da abertura do mercado brasileiro ao mundo.

Parte majoritária da doutrina passou, então, a entender que as limitações da lei de 1971 tinham perdido a vigência. Nessas águas, em 1998, a AGU editou o Parecer GQ-181, determinando que pessoa jurídica brasileira, mesmo de capital estrangeiro, não precisa de autorização para adquirir imóveis rurais no território nacional. Passados dez anos, as autoridades querem voltar atrás, percorrendo às avessas o mesmo caminho. Vejamos: a AGU pretende emitir um novo parecer, revogando o seu próprio parecer de 1998 e tentando ressuscitar diferenças que foram enterradas por Emenda Constitucional.

É impossível resolver, por meio de um parecer da AGU, que possui validade somente no seio da própria administração, esse verdadeiro “imbróglio”, com complexos ingredientes de hierarquia de leis e repristinação, ou não, de textos legais. Por outro lado, dificilmente mera interpretação da legislação vigente garantirá a necessária certeza jurídica.

Urge que todos os órgãos governamentais envolvidos na problemática (AGU, Incra, bem como os Ministérios do Desenvolvimento, da Agricultura, da Justiça, da Fazenda etc.) participem do debate, para que todas as facetas sejam examinadas e a questão possa ser adequadamente equacionada por meio de projeto de lei.

Nessa tarefa, é importante ter em mente que: 1) todos os princípios fundamentais e todos os objetivos fundamentais da República, estabelecidos na Constituição, devem ser respeitados; 2) uma lei brasileira, mesmo da mais alta hierarquia, não possui o condão de revogar “leis naturais” impostas pela dinâmica do mundo; 3) até mesmo a estabilidade da moeda brasileira depende, visceralmente, do fluxo de capital estrangeiro.

Nas circunstâncias atuais, pareceres e interpretações de eficácia altamente duvidosa, além de não solverem o problema, constituir-se-ão em perda de tempo precioso e cortina de fumaça lançada aos olhos dos cidadãos brasileiros, com graves prejuízos para a economia nacional.

Lembre-se, ademais, que o fato de discriminarmos estrangeiros será usado contra o Brasil por nossos próprios e aguerridos vizinhos, em virtude do princípio da reciprocidade, ínsito ao direito e às relações internacionais.

Revista Consultor Jurídico

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Populismo jurídico – Parecer da AGU não impede compra de terra por estrangeiro

[Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo deste domingo]

Pareceres e interpretações de eficácia duvidosa serão perda de tempo e cortina de fumaça, com prejuízos para a economia nacional.

Diante das mudanças climáticas que desafiam o futuro da humanidade e das crises alimentar e energética, que já se fazem sentir, o ponto mais importante da agenda, tanto dos Estados quanto das mais poderosas organizações internacionais, governamentais ou não, passou a ser o equacionamento entre a preservação ambiental, o aumento da produção de alimentos e a descoberta de novas matrizes energéticas.

É indubitável ser essa uma difícil tarefa, mormente por despertar sentimentos muitas vezes antinômicos entre si, como segurança nacional, defesa da soberania nacional, medo da ocupação do território nacional, xenofobia, indigenismo e fervor verde, que podem facilmente alimentar o populismo político de todas as cores e tendências.

Insere-se nessa complexa problemática a manchete da Folha de 29 de maio(“Brasil vai limitar terra para estrangeiro”), sobre a pretensão do governo de impedir uma “invasão estrangeira” do Brasil, sobretudo da Amazônia. A solução jurídica aventada para impedir a compra de terras por empresas brasileiras controladas por capital estrangeiro foi a emissão de parecer pela AGU (Advocacia Geral da União) fixando limites para tais aquisições.

Para entender o problema, é necessário analisar, ainda que sucintamente, o estado atual da legislação e da doutrina brasileiras sobre a matéria. A base de nossa legislação agrária é a Lei 4.504/64 (Estatuto da Terra). Seguiu-se a Lei 5.709/71, que fixa limitações à compra de imóveis rurais por pessoa jurídica brasileira com maioria de capital social estrangeiro.

Ambas são leis ordinárias, editadas no período ditatorial, sob a influência da doutrina da segurança nacional. Posteriormente, a Constituição Federal de 1988 diferenciou a empresa brasileira de capital nacional e a empresa brasileira de capital estrangeiro. Essa distinção foi retirada do texto constitucional pela Emenda Constitucional 6/95. Tal emenda não foi fruto de mero diletantismo. Enraizou-se na imprescindibilidade de estimular a entrada de capitais estrangeiros quando da abertura do mercado brasileiro ao mundo.

Parte majoritária da doutrina passou, então, a entender que as limitações da lei de 1971 tinham perdido a vigência. Nessas águas, em 1998, a AGU editou o Parecer GQ-181, determinando que pessoa jurídica brasileira, mesmo de capital estrangeiro, não precisa de autorização para adquirir imóveis rurais no território nacional. Passados dez anos, as autoridades querem voltar atrás, percorrendo às avessas o mesmo caminho. Vejamos: a AGU pretende emitir um novo parecer, revogando o seu próprio parecer de 1998 e tentando ressuscitar diferenças que foram enterradas por Emenda Constitucional.

É impossível resolver, por meio de um parecer da AGU, que possui validade somente no seio da própria administração, esse verdadeiro “imbróglio”, com complexos ingredientes de hierarquia de leis e repristinação, ou não, de textos legais. Por outro lado, dificilmente mera interpretação da legislação vigente garantirá a necessária certeza jurídica.

Urge que todos os órgãos governamentais envolvidos na problemática (AGU, Incra, bem como os Ministérios do Desenvolvimento, da Agricultura, da Justiça, da Fazenda etc.) participem do debate, para que todas as facetas sejam examinadas e a questão possa ser adequadamente equacionada por meio de projeto de lei.

Nessa tarefa, é importante ter em mente que: 1) todos os princípios fundamentais e todos os objetivos fundamentais da República, estabelecidos na Constituição, devem ser respeitados; 2) uma lei brasileira, mesmo da mais alta hierarquia, não possui o condão de revogar “leis naturais” impostas pela dinâmica do mundo; 3) até mesmo a estabilidade da moeda brasileira depende, visceralmente, do fluxo de capital estrangeiro.

Nas circunstâncias atuais, pareceres e interpretações de eficácia altamente duvidosa, além de não solverem o problema, constituir-se-ão em perda de tempo precioso e cortina de fumaça lançada aos olhos dos cidadãos brasileiros, com graves prejuízos para a economia nacional.

Lembre-se, ademais, que o fato de discriminarmos estrangeiros será usado contra o Brasil por nossos próprios e aguerridos vizinhos, em virtude do princípio da reciprocidade, ínsito ao direito e às relações internacionais.

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