por José Alberto Dietrich Filho
O clamor por um Poder Judiciário mais ágil está provocando a edição de seguidas normas restritivas para a admissão de recursos, o que poderá resultar no surgimento de um modelo de Judiciário desconectado da realidade brasileira. Talvez mais ágil, porém com o grave risco de permitir freqüentes injustiças. E injustiça é ato incompatível com a razão de ser do próprio Poder Judiciário.
É muito cômodo e muito pouco afirmar-se que fazer justiça é tarefa das instâncias ordinárias e não dos tribunais superiores.
É inegável também que há uma sobrecarga de processos abarrotando os gabinetes dos magistrados em todo o país, em todos os graus de jurisdição.
Porém, a solução para o impasse não é a supressão de recursos, que além de ser uma medida, na essência, claramente inconstitucional, representa a burocracia estatal se sobrepondo ao direito material das partes em conflito, os chamados jurisdicionados, que somos todos nós mortais.
A própria magistratura federal experimentou recentemente o sabor amargo da injustiça quando lhe negaram – e depois concederam – o direito a uma verba chamada de auxílio-moradia, que representará um desembolso para a União de aproximadamente R$ 4 bilhões.
Uma rápida pesquisa na página do Supremo Tribunal Federal, há poucos dias, permitia constatar a existência de 1.236 recursos providos (decisões colegiadas), o que significa que o STF reformou 1.236 decisões das instâncias inferiores que, em tese, teriam sido inconstitucionais. Além destas decisões colegiadas, há 4.304 decisões monocráticas dos ministros, como relatores, e outras 135 da presidência do Tribunal, todas dando provimento a recursos que agora, com as novas normas em vigor, dificilmente chegariam ao STF pela dificuldade de se transpor o muro da repercussão geral.
Na página do Superior Tribunal de Justiça dá para constatar que o número é ainda mais expressivo: são 9.546 recursos providos pelas Turmas e 197.729 recursos providos por decisões monocráticas dos ministros.
Diante disso, a limitação ao direito de recorrer com a adoção de seguidos e complexos filtros recursais significa, na prática, a Suprema Corte e o Superior Tribunal de Justiça dizendo a centenas ou milhares de cidadãos brasileiros: “Sim, o seu direito parece ser bom, mas estamos com sobrecarga de trabalho e não temos tempo para analisar o seu recurso”.
O próprio STF idealizou e conseguiu transformar em norma constitucional o princípio da Repercussão Geral, uma espécie do gênero filtro recursal, como a Súmula Vinculante, que permite a rejeição sumária de recursos que não tenham – ou que a parte não consiga demonstrar – relevância social, jurídica, política ou econômica para toda a sociedade. De nada adiantará a causa ser de extrema relevância para o recorrente. E em muitos casos concretos haverá certamente interpretações subjetivas do ministro relator, a quem o Regimento Interno atribuiu competência para rejeitar sumariamente os recursos nos quais não veja essa relevância. Apenas por hipótese e para mera reflexão, se o critério e o precedente fossem estendidos para a área da segurança pública, por exemplo, poderíamos vir a ter casos de policiais se recusando a socorrer um cidadão que esteja sendo assaltado, sob a alegação de que, em virtude do grande número de delinqüências, a polícia só poderá atender casos de grandes assaltos, que tenham alguma repercussão geral na sociedade.
O instrumento da Repercussão Geral é uma reencarnação da velha Argüição de Relevância, espécie de recurso ao STF admitido pelas Constituições anteriores à de 1988 – e regulamentado pelo regimento interno da Corte, à época. No próprio recurso ao STF argüia-se a chamada relevância de questão federal, uma via secundária que procurava desviar dos obstáculos processuais ou regimentais que pudessem impedir o conhecimento do recurso extraordinário.
O instituto da Repercussão Geral é, portanto, vinho novo em odre velho.
O instrumento foi ressuscitado agora com nova roupagem, passando a ser um dos inúmeros filtros recursais em fase de adoção, todos aparentemente transgressores das normas pétreas contidas no artigo 5º, Incisos XXXIV, alínea a, XXXV e LV da Constituição Federal, na medida em que restringem os conceitos de ampla defesa, do contraditório, de lesão a direito, de ilegalidade, de abuso de poder, do direito de petição e de acesso ao judiciário.
A diferença é que a antiga Argüição de Relevância – mantida até pelas chamadas ditaduras – era uma porta a mais para se entrar no STF, e agora, na Constituição Cidadã de 1988, a Repercussão Geral é uma porta a menos.
Todos concordam que o STF é – e deve ser – uma Corte Constitucional. Mas a sociedade não tem culpa alguma pelo fato de termos uma Constituição Federal minuciosa, detalhista, quase regimental.
Se estivéssemos num regime ditatorial certamente haveria choro e ranger de dentes. Mas como estamos sob o império da chamada Constituição Cidadã o discurso é de que precisamos desafogar o Judiciário a qualquer custo, que o Supremo não é e nem pode ser uma Corte revisora e que o STJ não pode ser uma terceira instância.
Ora, se o próprio STJ vacila freqüentemente sobre questões pontuais, ora decidindo de uma forma, ora de outra, ora sumulando, ora revogando súmulas (que o diga o ministro Humberto Gomes de Barros, o mais indignado com isso), é preocupante imaginarmos como ficaremos com 27 Tribunais de Justiça (estaduais), 5 Tribunais Regionais Federais, além de 24 Tribunais Regionais do Trabalho, 27 Tribunais Regionais Eleitorais e milhares de juízes de primeiro grau. Na falta de uma bússola jurisprudencial firme, que nos dê segurança jurídica, navegaremos como navegavam as caravelas.
É necessário reconhecer que os tribunais e os juízes estão sobrecarregados de processos – há juízes de primeiro grau que presidem 10, 15 ou até 20 mil processos e isso é assustador e desumano.
Mas é imperioso admitir que esse é um problema de gestão da organização judiciária e que a limitação ao direito de recorrer não é uma solução democrática.
É preferível a segurança jurídica, a definição firme do tribunal sobre matérias específicas, à implantação de seguidos e não democráticos filtros recursais, a não ser que se mude o texto constitucional de “direito à ampla defesa” para “direito a restrita defesa”.
Essas regras devem ser harmonizadas com o princípio da segurança jurídica, de forma que não se ouçam mais nos nossos tribunais desabafos como o do ministro Humberto Gomes de Barros no voto vista que proferiu no Agravo Regimental interposto no Recurso Especial 382.736. Disse na ocasião o ministro e ex-presidente do STJ:
“Quando chegamos ao Tribunal e assinamos o termo de posse, assumimos, sem nenhuma vaidade, o compromisso de que somos notáveis conhecedores do Direito, que temos notável saber jurídico. Saber jurídico não é conhecer livros escritos por outros. Saber jurídico a que se refere a Constituição Federal é a sabedoria que a vida nos dá. A sabedoria gerada no estudo e na experiência nos tornou condutores da jurisprudência nacional.
Somos condutores e não podemos vacilar.
Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la.” (AEREsp 228432).
“Nós somos os condutores, e eu – ministro de um Tribunal cujas decisões os próprios ministros não respeitam – sinto-me, triste. Como contribuinte, que também sou, mergulho em insegurança, como um passageiro daquele vôo trágico em que o piloto que se perdeu no meio da noite em cima da Selva Amazônica: ele virava para a esquerda, dobrava para a direita e os passageiros sem nada saber, até que de repente descobriram que estavam perdidos: O avião com o Superior Tribunal de Justiça está extremamente perdido. Agora estamos a rever uma Súmula que fixamos há menos de um trimestre. Agora dizemos que está errada, porque alguém nos deu uma lição dizendo que essa Súmula não devia ter sido feita assim.”.
De acordo com o ex-presidente do STJ, os magistrados precisam ter consciência de que a segurança jurídica não é apenas um princípio, mas um bem fundamental do cidadão. “Se a sociedade e os costumes sofreram alterações ao longo do tempo, não é o Judiciário que deve mudar a interpretação da lei. Cabe ao Congresso Nacional mudar a própria lei”.
Se a insegurança jurídica, portanto, assombra alguns dos próprios membros das Cortes superiores, mais gravemente assombrada ficará a sociedade com a contínua limitação ao seu direito de recorrer. Fechar as portas dos tribunais também é uma forma de combater a morosidade judiciária, mas certamente é a menos democrática e a menos desejável pela sociedade.
Revista Consultor Jurídico