Porte de drogas para uso próprio: é crime?

A 6ª Câmara do Tribunal de Justiça de São Paulo (rel. José Henrique R. Torres) considerou que portar droga para uso próprio não é delito (caso Ronaldo Lopes – O Estado de S. Paulo de 23.05.08, p. A1). Fundamentou sua decisão na Constituição brasileira, invocando os princípios da ofensividade (não há crime sem ofensa ao bem jurídico), igualdade (há muitas outras “drogas” cujo consumo não é incriminado: bebidas alcoólicas, p.ex.) e intimidade (o Estado não tem o direito de invadir a intimidade da pessoa para proibi-la de usar o que quer que seja).

A jurisprudência brasileira, de um modo geral, não aceita ainda essa tese (da descriminalização do porte de droga para uso próprio). Ainda não está devidamente trabalhado na jurisprudência o requisito da transcendentalidade da ofensa como fundamento para se afastar a tipicidade (material) da posse de drogas para uso próprio.

No plano legal, o vigente art. 28 da Lei 11.343/2006, inovando surpreendentemente nosso ordenamento jurídico, passou a cominar tão-somente penas alternativas para o “usuário de droga” (ou seja: portador de droga para uso próprio). Antes (na Lei 6.368/1976) essa conduta era punida com pena de prisão (de seis meses a dois anos de detenção). Antigamente, como se vê, o fato era considerado como crime. Depois da Lei 11.343/2006 surgiu uma grande polêmica na doutrina e na jurisprudência.

Três posições: (a) do STF (Primeira Turma – RE 430.105-RJ, rel. Min. Sepúlveda Pertence), entendendo que se trata de crime; (b) Luiz Flávio Gomes admitindo que se trata de uma infração penal sui generis (cf. GOMES et alii, Lei de Drogas Comentada, 2.e.d, São Paulo:RT, 2007, p. 145 e ss.) e (c) Alice Bianchini (para quem o fato não é crime nem pertence ao Direito penal).

A decisão do TJ-SP seguiu a terceira corrente. A posição do STF (no RE 430.105-RJ) constitui o seu oposto. Nossa opinião (fundada na lei vigente, isto é, no plano da legalidade) é intermediária. Só com o tempo vamos saber qual dessas três correntes vai se pacificar.

No plano legal (art. 28) há previsão de uma infração (aparentemente penal). No plano constitucional (por onde transitou o acórdão do TJ-SP), entretanto, a outra conclusão se pode chegar. É por essa via que transitou a decisão da 6ª Câmara do TJ-SP.

Essa decisão (no plano constitucional) não pode ser tida como incorreta. Por quê? Porque a imposição de sanção penal ao possuidor de droga para uso próprio conflita com o Estado constitucional e democrático de Direito (que não aceita a punição de ninguém por perigo abstrato e tampouco por fato que não afeta terceiras pessoas).

Vejamos: por força do princípio da ofensividade não existe crime (ou melhor: não pode existir crime) sem ofensa ao bem jurídico (cf. GOMES, L.F. e GARCIA-PABLOS DE MOLINA, A., Direito penal-PG, v. 2, São Paulo: RT, 2007, Vigésima Segunda Seção). Ofensa ao bem jurídico significa lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico. Para a existência de um crime não basta que o sujeito realize a conduta descrita no tipo legal. Mais que isso: além dessa tipicidade (chamada) formal, impõe-se que esse fato seja ofensivo ao bem jurídico protegido. Dessa forma o fato além de ser formalmente típico deve também constituir um fato materialmente típico.

Essa ofensa ao bem jurídico (que é conhecida em Direito penal como resultado jurídico) precisa ser desvaliosa (para que o fato seja penalmente típico não basta a produção de qualquer resultado: ele precisa ser desvalioso). E quando uma ofensa ao bem jurídico é desvaliosa? Quando concreta ou real (não cabe perigo abstrato no Direito penal regido pelo princípio da ofensividade), transcendental (afetação contra terceiros), grave ou significativa (fatos irrelevantes devem ser excluídos do Direito penal) e intolerável (insuportável, de tal forma a exigir a intervenção do Direito penal).

A transcendentalidade da ofensa, como se vê, é a segunda exigência que decorre do resultado jurídico desvalioso. Só é relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros. Se o agente ofende (tão-somente) bens jurídicos pessoais, não há crime (não há fato típico). Exemplos: tentativa de suicídio, autolesão, danos a bens patrimoniais próprios etc.

Na transcendentalidade da ofensa reside o princípio da alteralidade (a ofensa tem que atingir terceiras pessoas). Alteralidade (ofensa a terceiros) não se confunde com alternatividade (princípio que conduz ao reconhecimento de um só crime quando o agente realiza, no mesmo contexto fático, vários verbos descritos no tipo).

Se em Direito penal só deve ser relevante o resultado que afeta terceiras pessoas ou interesses de terceiros, não há como se admitir (no plano constitucional) a incriminação penal da posse de drogas para uso próprio. O assunto passa a ser uma questão de saúde pública (e particular), como é hoje (de um modo geral) na Europa (onde se adota a política da redução de danos). Não se trata de um tema de competência da Justiça penal. A polícia não tem muito que fazer em relação ao usuário de drogas (que deve ser encaminhado para tratamento, quando o caso).

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Luiz Flávio Gomes
doutor em Direito Penal pela Faculdade de Direito da Universidade Complutense de Madri, mestre em Direito Penal pela USP, secretário-geral do Instituto Panamericano de Política Criminal (IPAN), consultor, parecerista, fundador e presidente da Cursos Luiz Flávio Gomes (LFG) – primeira rede de ensino telepresencial do Brasil e da América Latina, líder mundial em cursos preparatórios telepresenciais

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