Posso ficar te devendo um centavo?


Quem nunca ouviu esta frase na hora de pagar a conta do supermercado, atire a primeira pedra. Há alguns anos o consumidor brasileiro vem convivendo com esta prática muito comum no comércio, especialmente nos supermercados, a qual se revela, num primeiro momento, até mesmo inocente.

Entretanto, discutindo com amigos da área jurídica a respeito, decidi investigar os efeitos de tal prática, não só no bolso do consumidor, mas principalmente no bolso dos fornecedores, e os resultados foram surpreendentes, como o leitor poderá verificar linhas abaixo.

Para não correr o risco de escrever besteiras, resolvi confirmar minhas suspeitas junto ao gerente de uma das lojas de uma grande rede de supermercados de Juiz de Fora – MG, sendo que o estabelecimento é um dos menores da rede. Ao mesmo tempo, colhi informações de natureza fiscal junto a um amigo que é contador de grandes estabelecimentos comerciais, portanto acostumado a lidar com os detalhes das operações fiscais.

Segundo o gerente consultado, a loja a que me refiro possui um movimento médio de 10.000 consumidores por mês. Proponho, então, a seguinte situação: se for ao supermercado todos os dias da semana, e ficarem devendo a você, consumidor, um centavo por dia, em uma semana terão lhe tirado R$0,07. Em um mês serão R$0,28 e, em um ano R$3,36. Multiplicando esse número por 10.000 (dez mil), que é o número médio de consumidores que freqüentam mensalmente o supermercado em questão, teremos ao final do ano a soma de R$33.600,00 (trinta e três mil e seiscentos reais).

Obviamente, o exemplo acima transcrito levou em conta apenas uma das menores lojas da rede de supermercados em tela, e também o fato de tirarem do consumidor apenas um centavo de cada vez, pois há situações em que o cliente sempre esquece de comprar alguma coisa e retorna ao estabelecimento, que fica, muita das vezes, devendo dois centavos.

Quando coloquei a situação para amigos da área jurídica, alguns indagaram: E daí? O comerciante precisa levar em conta eventuais perdas no seu negócio.

Contudo, um pequeno detalhe foge aos olhos menos atentos: as eventuais perdas experimentadas pelo comerciante já estão embutidas no preço final do produto, após uma equação denominada cálculo atuarial. A título explicativo, o cálculo atuarial consiste, em síntese, em um processo matemático em que são levados em conta, além de parâmetros puramente financeiros, parâmetros de natureza estatística e probabilística, visando estudar e quantificar os diversos eventos relacionados com a atividade empresarial, a fim de determinar o preço final dos produtos.

Ultrapassada essa fase, nova indagação: Mas, qual é a relevância jurídica desta questão, já que R$3,36 ao ano não podem ser considerados um prejuízo substancial no bolso de muitos consumidores?

Pode até não ser uma quantia considerável para o consumidor, mas para o fornecedor é algo muito valioso, se levarmos em consideração que toda a atividade fiscal em torno dos seus negócios tomará como base o seu faturamento. Isto é, para fins jurídicos, a atividade do Fisco tomará como parâmetro para o recolhimento de tributos aqueles valores expressos no cupom fiscal que é emitido para o consumidor. Exemplificando: se um produto custa R$1,59, mas o consumidor no ato da aquisição pagou R$1,60, o valor que será faturado e declarado à Receita Federal, como percebido pelo estabelecimento comercial, será o primeiro, ficando de fora o centavo restante que, no final de um ano, irá se transformar numa quantia muito interessante para a empresa, sobretudo em se tratando das grandes redes de varejo do país. Como popularmente dito, é uma grana “de lambuja” para o comerciante.

Na situação narrada linhas atrás, envolvendo a pequena loja de uma rede, R$33.600,00 significam, por exemplo, a aquisição de um veículo zero quilômetro para sua frota. E isso porque estamos falando de uma só loja, e de pequeno porte! O fornecedor, então, não desembolsou sequer um centavo (pra ser bem irônico) na aquisição de um bem. Quem desembolsou, claro, foram 10.000 consumidores que nada sentiram no bolso.

O Código de Proteção e Defesa do Consumidor embora não possua nenhum artigo expresso que cuide da questão envolvendo o troco, tem sua sistemática toda orientada no sentido de que o consumidor não pode ser prejudicado nas relações de consumo, permitindo, então, que exija o arredondamento do preço para o menor valor. Além disso, também não é lícito ao fornecedor empurrar as famosas “balinhas” como troco, pois, assim, estará incorrendo em prática abusiva, capitulada no art. 39, inciso I, do CDC, além de incursão no art. 5º, inciso II, da Lei nº. 8.137/90, que define os crimes contra as relações de consumo.

Para suprir a falta de legislação que cuide da questão envolvendo o troco, está em trâmite o Projeto de Lei nº. 1.758/07 (disponível em http://www2.camara.gov.br/proposicoes) , de autoria do Deputado Silvinho Peccioli, que dispõe sobre os procedimentos a serem adotados quando não for possível a devolução integral do troco. Prevê o art. 3º do referido PL: em todos os casos em que surgirem diferenças menores que R$ 0,05 (cinco centavos) e for impossível a devolução do troco exato, a diferença será sempre a favor do consumidor.

Contudo, o consumidor brasileiro deve ficar mais atento aos pequenos detalhes que envolvem as transações comerciais, sem que dependa de institutos jurídicos para lhe amparar. Deveria dispor um pouco de seu tempo para analisar pequenas situações que, isoladamente, lhe parecem inocentes, mas que em termos de coletividade ocasionam um lucro enorme para o fornecedor de produtos e serviços. É claro que torcemos para que a regra contida no Projeto de Lei supra mencionado vigore o quanto antes, mas o consumidor educado ainda é a maneira mais eficaz de regular o mercado, pois tem a atividade de consumo totalmente orientada e consciente.

Diante da análise proposta neste breve artigo, verificou-se que o consumidor, embora não sinta significativamente o impacto da falta dos centavos em seu bolso, proporciona, lado outro, um lucro injustificado e significativo para os fornecedores no mercado de consumo, pois dá aos mesmos, de forma gratuita, uma montanha de dinheiro que não cai nas malhas da Receita Federal, pois os respectivos valores não são passíveis de tributação, afigurando-se um verdadeiro “presente” para o comerciante.

Nunca aquele famoso ditado popular foi dito com tanta propriedade:

De grão em grão…

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Vitor Vilela Guglinski
assessor de juiz, especialista em Direito do Consumidor em Juiz de Fora (MG)

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