Preço do serviço – Assistência judiciária não isenta pagamento de honorários

por Daniel Roncaglia

Se o beneficiário da assistência judiciária gratuita opta por um determinado profissional em detrimento daqueles postos à sua disposição gratuitamente pelo Estado, deverá ele arcar com os ônus decorrentes desta escolha. O entendimento é da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, com base no voto da ministra Nancy Andrighi apresentado na quinta-feira (4/9).

O advogado Nilmar Pires dos Santos entrou na Justiça depois que um grupo de clientes não quis pagar o combinado porque tinha recebido o benefício da assistência jurídica gratuita. O acordo era para que ele recebesse 20% da indenização que os clientes ganharam. Eles só desistiram do trabalho do advogado depois que a sentença já estava transitada em julgado. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu razão aos clientes.

Santos argumentou em seu recurso ao STJ que a decisão viola o artigo 22 da Lei 8.906/94, que trata dos honorários advocatícios, e o artigo 3º, V, da Lei 1.060/50, que disciplina os honorários da assistência jurídica gratuita. Sobre o primeiro artigo, a ministra Nancy Andrighi lembra que a questão não foi apreciada no TJ-RS e, por isso, não poderia ser analisado no Recurso Especial.

Sobre a questão dos honorários, a ministra lembra que a interpretação do próprio STJ é divergente. “De um lado, há os que defendem que a própria natureza do instituto, de mecanismo de facilitação do acesso à Justiça, impõe a necessidade de atribuição de uma interpretação ampla à isenção estabelecida no inciso V do art. 3º da Lei n.1.060/50, do que decorreria a isenção do beneficiário quanto aos honorários convencionais”, afirma a ministra.

Nancy Andrighi lembra que ao contratar um advogado, a aplicação do beneficio previsto neste inciso é afastada. “Esta solução busca harmonizar o direito do advogado de receber o valor referente aos serviços prestados com a faculdade de o beneficiário, mediante a celebração do tão popular ‘contrato de risco’ (em que o pagamento dos honorários se condiciona ao êxito no processo) poder escolher aquele advogado que considera ideal para a defesa de seus interesses”, explica a ministra.

Segundo ela, quem escolhe um advogado em vez de optar por um defensor público deve arcar com isso. “É um direito do advogado que deve ser respeitado sob pena de vilipendiar um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, que é justamente o do valor social do trabalho”, diz. A ministra afirma que ao escolher um advogado, o cliente está ciente que sua pretensão foi defendida por um profissional de sua confiança, mesmo sabendo que a causa seja perdida.

RECURSO ESPECIAL Nº 965.350 — RS (2007/0153249-3)

RELATORA : MINISTRA NANCY ANDRIGHI

RECORRENTE : NILMAR PIRES DOS SANTOS

ADVOGADO : TIBICUERA MENNA BARRETO DE ALMEIDA E OUTRO(S)

RECORRIDO : NAIR LUCIA GRAEFF E OUTROS

ADVOGADO: JOÃO ANSELMO MÜLLER E OUTRO(S)

EMENTA

Processual civil. Recurso especial. Ação de arbitramento de honorários advocatícios. Beneficiário da assistência judiciária gratuita que pleiteia a isenção do pagamento dos honorários contratuais de seu próprio advogado. Impossibilidade.

—- Se o beneficiário da Assistência Judiciária Gratuita opta por um determinado profissional em detrimento daqueles postos à sua disposição gratuitamente pelo Estado, deverá ele arcar com os ônus decorrentes desta escolha.

— Esta solução busca harmonizar o direito de o advogado de receber o valor referente aos serviços prestados com a faculdade de o beneficiário, caso assim deseje, poder escolher aquele advogado que considera ideal para a defesa de seus interesses.

Recurso especial provido para, reformando o acórdão recorrido, julgar procedente o pedido formulado na inicial.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros da TERCEIRA TURMA do Superior Tribunal de Justiça, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas constantes dos autos, por unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Massami Uyeda e Sidnei Beneti votaram com a Sra. Ministra Relatora.

RELATÓRIO

Cuida-se de recurso especial, interposto por NILMAR PIRES DOS SANTOS, com fundamento nas alíneas “a” e “c” do permissivo constitucional, contra acórdão exarado pelo TJ/RS.

Ação: de arbitramento de honorários advocatícios, ajuizada pelo recorrente em face de NAIR LUCIA GRAEFF E OUTROS.

Em suma, restou consignado na inicial que o recorrente atuou como procurador dos recorridos em uma ação indenizatória, cujo pedido, ao final, restou julgado procedente. Todavia, após o trânsito em julgado, afirma o recorrente que foi surpreendido com o recebimento de uma notificação extrajudicial enviada pelos recorridos, na qual eles revogavam todos os poderes que lhe haviam sido outorgados. Assim, pleiteia o recebimento da quantia que havia sido acertada verbalmente com os recorridos a título de remuneração pelos serviços advocatícios prestados no mencionado processo.

Sentença: julgou procedente o pedido, condenando os recorridos ao pagamento da importância equivalente a 20% (vinte por cento) do total da condenação imposta à parte contrária na ação indenizatória em que foram representados pelo recorrente.

Acórdão: deu provimento ao apelo dos recorridos e julgou prejudicado o recurso adesivo do recorrente, acolhendo a tese dos recorridos de que o gozo do benefício da assistência judiciária gratuita os isentaria do pagamento dos honorários advocatícios. Eis a ementa do julgado em comento:

“APELAÇÃO CÍVEL. ARBITRAMENTO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS.BENEFÍCIO DA GRATUIDADE JUDICIÁRIA DEFERIDO NO FEITO EM QUE ATUOU O ADVOGADO.

A cobrança de honorários advocatícios referente à atuação do profissional em processo no qual a parte, sua constituinte, tenha litigado sob o pálio do benefício da assistência judiciária encontra óbice nos termos do instituto da gratuidade.

Precedentes da Câmara.

APELO PROVIDO. PREJUDICADO O EXAME DO RECURSO ADESIVO. “(fls. 213).

Recurso especial: alega o recorrente violação aos arts. 22 da Lei n.º 8.906/94 e 3º, V, da Lei n.º 1.060/50, além de divergência jurisprudencial, pleiteando o reconhecimento do seu direito à percepção de honorários no processo em que atuou como advogado dos recorridos. Sustenta, em síntese, que o gozo do benefício da assistência judiciária gratuita não tem o condão de isentar os recorridos do pagamento dos honorários advocatícios contratuais e colaciona como julgados divergentes o RMS n.º 6.988/RJ, DJ de 06.04.1999, o REsp 238.925/SP, DJ de 21.08.2001 e o REsp n.º 186.098/SP, DJ de 20/09/01, todos da relatoria do i. Min. Ari Pargendler.

Prévio juízo de admissibilidade: após a apresentação das contra-razões dos recorridos (fls. 240/241), foi o recurso especial admitido na origem (fls. 243/244).

É o relatório.

VOTO

Cinge-se a controvérsia em determinar se o gozo do benefício da assistência judiciária gratuita tem ou não o condão de isentar o beneficiário dos pagamentos dos honorários advocatícios contratuais.

— Da violação ao art. 22 da Lei n.º 8.906/94 (ausência de prequestionamento).

Prefacialmente, consigne-se que o art. 22 da Lei n.º 8.906/94, tido como violado, não foi apreciado pelo Tribunal de origem, de maneira que o recurso especial não pode ser conhecido quanto a tal ponto, ante a ausência do prequestionamento.

Logo, incidem as Súmulas n.º 282 e 356 do STF.

— Da violação ao art. 3º, V, da Lei n.º 1.060/50, e do dissídio jurisprudencial.

Devidamente prequestionado o art. 3º, V, da Lei n.º 1.060/50 e comprovada a existência da divergência jurisprudencial, passa-se, pois, à análise da questão discutida no presente recurso.

O benefício da assistência judiciária gratuita, previsto na Lei n.º 1.060/50, tem como principal escopo possibilitar que os cidadãos usufruam da garantia constitucional do acesso à Justiça, prevista no art. 5º, XXXV, da CF/88, mediante a superação de um dos principais obstáculos por eles enfrentados que é o obstáculo econômico, muitas vezes decorrente do alto custo financeiro do processo, que inclui as despesas processuais, os honorários advocatícios e as despesas extraprocessuais.

Dessa forma, conforme preceitua o art. 4º do referido diploma, faculta-se a qualquer cidadão o gozo dos benefícios da assistência judiciária, mediante simples afirmação de que não está em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família.

Este Tribunal, ciente do seu papel institucional de garantidor da cidadania, tem sempre buscado promover uma interpretação mais abrangente do referido benefício, estendendo-o, por exemplo, às pessoas jurídicas que demonstrem a impossibilidade de custear os encargos do processo (EREsp 321.997/MG, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, Corte Especial, DJ de 16.08.2004), ou ainda, reputando válido o deferimento do benefício em qualquer fase do processo, desde que demonstrado o preenchimento dos requisitos exigidos em lei (AgRg nos EDcl no Ag 728.657/SP, de minha relatoria, DJ de 02.05.2006, e o REsp 723.751/RS, Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ de 06.08.2007).

A situação versada neste processo igualmente não é inédita nesta Corte. De um lado, há os que defendem que a própria natureza do instituto, de mecanismo de facilitação do acesso à Justiça, impõe a necessidade de atribuição de uma interpretação ampla à isenção estabelecida no inciso V do art. 3º da Lei n.º 1.060/50, do que decorreria a isenção do beneficiário quanto aos honorários convencionais. Este entendimento foi adotado no REsp 309.754/MG, Rel. Min. Hélio Quaglia Barbosa, Quarta Turma, DJ de 11.02.2008.

Outros, todavia, sustentam que a escolha de um determinado advogado, mediante a promessa de futura remuneração em caso de êxito na demanda, afastaria o alcance do referido benefício, possibilitando, portanto, ao causídico auferir uma contraprestação pelos serviços prestados, de forma personalíssima, ao beneficiário. A esta corrente filiaram-se, dentre outros, os seguintes julgados da Terceira Turma do STJ: o REsp 238.925/SP, DJ de 21.08.2001 e o REsp n.º 186.098/SP, DJ de 20.09.2001, ambos da relatoria do i. Min. Ari Pargendler.

De fato, ao nosso sentir, esta solução busca harmonizar o direito do advogado de receber o valor referente aos serviços prestados com a faculdade de o beneficiário, mediante a celebração do tão popular “contrato de risco” (em que o pagamento dos honorários se condiciona ao êxito no processo) poder escolher aquele advogado que considera ideal para a defesa de seus interesses.

Ora, se o beneficiário da assistência judiciária gratuita opta pela escolha de um determinado profissional em detrimento daqueles postos à sua disposição gratuitamente pelo Estado (a quem incumbe, nos termos do inciso LXXIV do art. 5º da CF/88, a assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos), deverá ele arcar com os ônus decorrentes desta escolha deliberada e voluntária.

O recebimento dos honorários, cuja natureza alimentar tem sido reiteradamente reconhecida (RE n.º 470.407/DF, 1ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 13.10.2006, o RE n.º 146.318/SP, 2ª Turma, Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 04.04.1997 e o EREsp n.º 706.331/PR, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, Corte Especial, DJ 31.03.2008), é um direito do advogado que deve ser respeitado sob pena de vilipendiar um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, que é justamente o do valor social do trabalho, expresso no inciso IV do art. 1º da CF/88.

Não se pode olvidar, jamais, da defesa do direito de todo o cidadão ao acesso à Justiça. Todavia, na hipótese dos honorários contratuais, sobretudo em “contratos de risco”, como ocorre na hipótese dos autos, o pagamento do valor acertado com o causídico não terá o condão de afastar, nem sequer de dificultar, o pleno gozo da referida garantia constitucional por parte do cidadão beneficiário da assistência judiciária gratuita.

Na verdade, ao pagar os honorários contratuais, o cidadão, até mesmo nas hipóteses de insucesso do pedido formulado, estará ciente de que a sua pretensão foi defendida por um profissional de sua confiança e de que o seu direito de postular em juízo aquilo que entende devido foi plenamente exercido.

Logo, não constatada qualquer barreira ao recebimento dos honorários contratuais por parte do advogado que assistiu a parte beneficiária da assistência judiciária gratuita, merece reforma o acórdão recorrido.

Forte em tais razões, CONHEÇO PARCIALMENTE do recurso especial e, nesta parte, DOU-LHE PROVIMENTO para, nos termos da sentença de fls. 184/187, julgar procedente o pedido formulado na inicial.

Brasília (DF), 04 de setembro de 2008.

MINISTRA NANCY ANDRIGHI

Relatora

Revista Consultor Jurídico

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