por Francisco Alberto da Motta P. Giordani
É de se lamentar não possuirmos, aqui no Brasil, lei definindo, de maneira mais clara e específica, como regra, a responsabilidade solidária do tomador de serviços, nos casos em que se dá o inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte das empresas prestadoras de serviço. As legislações argentina e uruguaia, nesse particular, são belos exemplos que bem poderíamos seguir.
Pela conhecida Súmula 331, por meio da qual o Tribunal Superior do Trabalho procurou preencher nossa, digamos assim, insuficiência legislativa, ficou estabelecido, em seus incisos III e IV, que:
“III — Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei 7.102, de 20.06.1983) e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade — meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta.
IV — O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica a responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas, das empresas públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (artigo 71 da Lei 8.666, de 21.06.1993)”.
Abro aqui parênteses para esclarecer que a preocupação de momento não é com as empresas de trabalho temporário, nem com a distinção entre atividade — meio e atividade — fim, distinção essa que entendo superficial ou insuficiente para o fim pretendido com sua utilização, mas sim a de estabelecer se é mesmo de se cuidar de responsabilidade subsidiária, ou se o correto seria falar em responsabilidade solidária nos casos em que, pela referida súmula, considera-se como subsidiária a responsabilidade.
Embora existam os que, como sabemos, entendem que o caso é mesmo de responsabilidade subsidiária, como também há os que defendem a inexistência de qualquer responsabilidade na espécie, quer solidária, quer subsidiária, há a voz daqueles que afirmam que a responsabilidade solidária é a que deveria — e deve — ser a de observar-se. A voz dessas últimas pessoas, pela força e pelo tom de seus argumentos, impõem-se aos nossos ouvidos.
Impondo-se tanto mais quanto maior a sensibilidade que tivermos para ouvir as necessidades e as dificuldades por que passam os trabalhadores que, tendo prestado seus serviços, como empregados de uma empresa prestadora de serviços, em prol da empresa tomadora, dispensados por aquela sem receber o que lhes é devido, após os trâmites de um processo judicial, tendo reconhecido os seus direitos, têm ainda que procurar receber da ex-empregadora, normalmente desaparecida, parecendo ter atravessado o Triângulo das Bermudas, ingressando em outra esfera, para só então, voltar-se contra a tomadora de serviços, visando que esta lhe pague o seu crédito.
Com esforço e argumentos consistentes, se sustenta, para mencionar apenas e ligeiramente, algumas dessas ponderações, de que a responsabilidade deve ser solidária, na espécie, pelo fato de que duas empresas — a prestadora e a tomadora — beneficiaram igualmente do mourejar do credor — trabalhador. O que as faz responsáveis, na mesma medida, pelos prejuízos por este experimentados, servindo, para fundamentar referido modo de ver, a natureza das normas protetoras do Direito do Trabalho, os riscos que assume a empresa tomadora ao optar por concertar com outra empresa a execução de serviços, ao invés de executá-los ela própria.
Riscos a que também teria sido exposto o trabalhador, configurada a falta de idoneidade econômica da empresa prestadora. Cabe lembrar, ainda, o entendimento de que a responsabilidade solidária do tomador se fundamenta na responsabilidade por ato de terceiro, já que a empresa prestadora seria um preposto do tomador, e ainda uma possível aplicação, por analogia, do quanto disposto no artigo 455, da CLT.
São normalmente referidos, para embasar aludidos raciocínios, os artigos 187, 927, 932, III e 942, do Código Civil e 8°, 9° e 455, do Diploma Consolidado.
Está claro que, se se procura tantas justificativas para a responsabilidade solidária, na hipótese em exame, é porque se vê, ou melhor, se sente, que a subsidiária não basta, nem atende aos anseios de justiça, e, como sabemos, a função do operador do direito é justamente essa: a de procurar a solução mais justa, atento aos sentimentos de justiça da sociedade em que vive. Não me parece que tais sentimentos restem satisfeitos, quando um trabalhador fica sem receber o que lhe é devido por um largo período, o qual acaba por ser maior ainda, por conta de um posicionamento jurídico, quando outro posicionamento também jurídico e até, permissa vênia, com mais consistência que o primeiro, poderia levá-lo a ter satisfeito seu crédito em menor espaço de tempo.
A essa altura, poderá ser lançada a seguinte objeção (com aquele sorriso de triunfo): a idéia, então, é a de impor uma solidariedade, à margem, tangenciando ou mesmo ignorando o quanto disposto no artigo 265, do Código Civil, no sentido de que “A solidariedade não se presume; resulta da lei ou da vontade das partes”.
Com todo o respeito a esse modo de enxergar, penso que não será ele que abalará, por si só, o sentir daqueles que defendem ser a responsabilidade solidária a adequada à hipótese sob análise.
E para tanto, para que esse sentimento não saia enfraquecido, duvidando-se mesmo de sua intensidade, vários argumentos podem ser desfiados, alguns dos quais o serão, a seguir.
Com esse objetivo e por primeiro, de realçar que, tal qual se dá, atualmente, com o princípio da legalidade, no âmbito do Direito Administrativo, em que se considera, como elucida o brilhante professor Juarez Freitas, que:
“a subordinação da Administração Pública não é apenas à lei. Deve haver o respeito à legalidade, sim, todavia encartada no plexo de características e ponderações que a qualifiquem como sistematicamente justificável. Não quer dizer que se possa alternativamente obedecer à lei ou ao Direito. Não. A legalidade devidamente justificada requer uma observância cumulativa dos princípios em sintonia com a teleologia constitucional. A justificação apresenta-se menos como submissão do que como respeito fundado e racional. Não é servidão ou vassalagem, mas acatamento pleno e concomitante à lei e ao Direito. Assim, desfruta o princípio da legalidade de autonomia mitigada”1.
Entendimento esse que leva a que, ainda na lição do renomado lente: “O princípio da legalidade precisa ser, então, compreendido e aplicado, no contexto maior do acatamento que a Administração Pública deve ao Direito”2.
Outro não é o sentir de Odete Medauar, como lembra Daniel Ustárroz, em artigo de sua autoria, verbis: “Resume a professora Odete Medauar esse importante fenômeno: ‘o princípio da legalidade significa não mais a relação lei — ato administrativo, mas a dimensão global, ordenamento — Administração’. (O Direito Administrativo em evolução, p. 148, 2ª ed. São Paulo: RT, 2003)”3.
Percorre a mesma senda Rafael Carvalho Rezende Oliveira, como se percebe com a leitura do seguinte ensinamento seu: “A consagração do princípio da juridicidade não aceita a idéia da administração vinculada exclusivamente às regras pré-fixadas nas leis, mas sim ao próprio Direito, o que inclui as regras e princípios previstos na Constituição. Adolfo Merkl, de forma irretocável, asseverava que “la conexión necesaria entre derecho y administración puede ser designada como principio de la juridicidad de la administración”4.
O mesmo autor por último citado ainda preleciona que: “O princípio da juridicidade dá maior importância ao Direito como um todo, ressaltando inclusive a noção da legitimidade do Direito. A atuação da Administração Pública deve ter por norte a efetividade da Constituição e será pautada pelos parâmetros da legalidade e da legitimidade, intrínsecos ao Estado Democrático de Direito. Ao invés de simples adequação da atuação administrativa a uma lei específica, exige-se a compatibilidade dessa atuação com o chamado ‘bloco de legalidade’. Alexandre Santos do Aragão, ao tratar da concepção pós-positivista do princípio da legalidade, afirma com razão:
‘Com efeito, evoluiu-se para se considerar a Administração Pública vinculada não apenas à lei, mas a todo um bloco de legalidade, que incorpora os valores, princípios e objetivos jurídicos maiores da sociedade, com diversas Constituições (por exemplo, a alemã e a espanhola) passando a submeter a Administração Pública expressamente à ‘lei e ao Direito’, o que também se infere implicitamente da nossa Constituição e expressamente da Lei do Processo Administrativo Federal (art. 2º, parágrafo único, I). A esta formulação dá-se o nome de Princípio da Juridicidade ou da legalidade em sentido amplo”5.
Da mesma maneira, quanto ao estatuído no artigo 265, do vigente Código Civil, a referência à lei nele contida, deve ser entendida como referência ao Direito como um todo, ao ordenamento jurídico em sua totalidade, o que faz com que se considere, numa leitura atual, não só as leis, mas os princípios também.
Esse asserto parece não precisar de maior desenvolvimento para justificar-se, pois, como se sabe, quando estamos diante de um caso concreto e para solucioná-lo da melhor maneira possível, temos que manter diante dos olhos — e da mente também, por óbvio — todo o ordenamento jurídico, o que, com lentes modernas, significa visualizar não só regras, mas princípios também, é dizer: “Diante de um caso, não se aplica uma regra, mas todo o ordenamento jurídico, valendo-se da máxima de Gestalt: não se vê partes isoladas, mas relações, uma parte na dependência de outra parte. As partes são inseparáveis do todo e são outra coisa que não elas mesmas, fora desse todo. E são os princípios que irão conferir unidade a esse todo que é o ordenamento jurídico”6.
O meu receio em não me alongar demais me contém, de maneira que não vou estender-me no encarecer a importância dos princípios para o Direito, nos dias que correm, apenas lembrarei que, hodiernamente, tem-se como claro que as normas se dividem em princípios e regras, e aqueles, como sustenta, dentre tantos outros, Sebástian Borges de Albuquerque Mello: “Os princípios ocupam lugar de destaque no pensamento jurídico contemporâneo porque são eles que irão fornecer as linhas centrais de unidade e ordenação das demais normas jurídicas”7.
Evidentemente, considerados os princípios, para se estabelecer a solidariedade, fácil inferir, a questão toma logo novos contornos. Com efeito, porquanto diversos princípios levam a que se estabeleça a solidariedade em situações como a ora enfrentada, podendo ser citados o da dignidade da pessoa humana, o da proteção da confiança, o da boa-fé objetiva, e até o princípio protetor, tão caro ao Direito do Trabalho, alguns dos quais diretamente, outros até dando uma mais adequada interpretação a algum artigo, o que também é função dos princípios.
Quanto ao princípio da dignidade da pessoa humana, se não olvidarmos da importância ao mesmo atribuída pela nossa Constituição Federal, que o colocou como base e norte de nossos passos, o que faz com que, obrigatoriamente, seja ele considerado quando da elaboração, execução e/ou interpretação de qualquer norma, e atento aos ensinamentos do ilustre professor Antonio Junqueira de Azevedo, no sentido de que “o princípio jurídico da dignidade fundamenta-se na pessoa humana e a pessoa humana pressupõe, antes de mais nada, uma condição objetiva, a vida. A dignidade impõe, portanto, um primeiro dever, um dever básico, o de reconhecer a intangibilidade da vida humana. …Em seguida, numa ordem lógica, e como conseqüência do respeito à vida, a dignidade dá base jurídica à existência do respeito à integridade física e psíquica (condições naturais) e aos meios mínimos para o exercício da vida (condições materiais)…”8.
Resta firme que, o tolerar-se que alguém trabalhe em prol de um terceiro e para receber o que lhe foi judicialmente reconhecido, tenha que percorrer o árduo caminho acima descrito, o que, muito certamente, aumentará, para esse trabalhador de forma insuportável e desesperadora, a agonia da espera e das privações então decorrentes, magoará, a mais não poder, esse princípio maior e mais reluzente, da constelação de princípios que dão brilho e vida a um ordenamento jurídico, mesmo porque, como lembrado por Ana Silvia Voss de Azevedo, “Além dos valores morais e subjetivos, a dignidade ainda abrange o respeito à integridade física e psicológica do indivíduo, incluindo aí as condições dignas de trabalho”9.
Aqui como num imenso vale descampado soam nítida e claramente, como melhor convém para que encontrem eco também em nossos corações, as seguintes palavras do ministro Orlando Teixeira da Costa: “É a dignidade da pessoa humana do trabalhador que faz prevalecer os seus direitos, estigmatizando toda manobra tendente a desrespeitar ou corromper de qualquer forma que seja esse instrumento valioso, feito à imagem de Deus”10.
Aqui chegando, interessante, por certo, o evocar sólido argumento do preclaro Nelson Rosenvald, de que: “A inserção do princípio da dignidade da pessoa humana no Título I, como fundamento da República Federativa do Brasil, demonstra a sua precedência — não apenas topográfica, mas interpretativa — sobre todos os demais capítulos constitucionais”11.
Relativamente ao princípio da confiança, é oportuno o recordar, antes do mais, que, como superiormente dito pelo jurista português Manuel António de Castro Portugal Carneiro da Frada, “Na verdade, cabe a qualquer ordem jurídica a missão indeclinável de garantir a confiança dos sujeitos, porque ela constitui um pressuposto fundamental de qualquer coexistência ou cooperação pacíficas, isto é, da paz jurídica”12.
Ainda, quanto a importância da confiança para e na vida do homem, vale a transcrição do seguinte excerto: “a confiança, entendida como hábito de depositar expectativas em outrem, é um dos sentimentos que mais profundamente definem e constituem a existência humana. Na medida em que nossa existência é temporal e é imprevisível nosso futuro, nessa mesma medida nos vemos obrigado a confiar, e parece coisa certa, quando a mente não se extravia da realidade nem o coração dos valores supremos, que na vida do homem a confiança tem um papel fundamental como elemento aglutinador de energia que reforça o grau de coesão nos grupos humanos”13.
Com aludido princípio se objetiva a proteção das legítimas expectativas criadas, sem as quais a vida em sociedade se torna muito mais difícil, admitindo-se continue sendo possível, e não se pode imaginar, acredito, que um empregado tenha uma expectativa mais legítima do que a que ele carrega em seu peito — e também no seu estômago —, no sentido de que, tendo trabalhado como empregado da empresa “x”, prestadora de serviço, em prol da empresa “y”, a tomadora do serviço, seu mourejar será remunerado, tanto por uma como por outra.
Atento a que não se pode exigir do trabalhador brasileiro, na quadra atual, que possua perfeito conhecimento do funcionamento jurídico do contrato que uniu as empresas prestadora e tomadora, para ele, ele trabalhou e deve receber, e o Estado deve garantir “os seus direitos”, logicamente da maneira a mais rápida e objetiva possível, o que não permitiria que ele compreendesse, tampouco aceitasse, as conseqüências advindas do reconhecimento de uma responsabilidade meramente subsidiária.
Cuidando agora do princípio protetor, princípio esse caríssimo ao Direito do Trabalho, os motivos que o fazem forte e resistente a todos os questionamentos de que é alvo, de tempos em tempos, justificando mesmo a existência do Direito do Trabalho, evidentemente não estariam sendo respeitados, acaso se entendesse ou entenda que a responsabilidade subsidiária é a que deva ser observada na situação que ora nos ocupa.
Falta apenas, para finalizar, uma ligeira “palavrinha”, acerca do princípio da boa-fé objetiva, o qual desfruta de enorme prestígio nos dias que correm.
E com esse propósito, não poderia deixar de valer-me da lembrança de Artur Marques da Silva filho, quanto a ter já a boa-fé sido considerada “estrela polar do direito”14.
O vigente Código Civil cuida da boa-fé em alguns artigos, mas sua observância jamais precisou de previsão em lei, pois não se concebe a existência de um ordenamento jurídico no qual a boa-fé não ocupe um lugar de relevo.
Quanto à boa-fé objetiva, como se não desconhece, ela não tem ligação direta com o que se passa no íntimo do indivíduo, mas atine ao seu modo de agir externo, como o faz, no meio em que vive e interage com os outros, ou como superiormente dito por Mônica Yoshizato Bierwagen, a boa-fé objetiva, “diferentemente da boa-fé subjetiva, que se refere a aspectos internos do sujeito, estabelece um padrão de comportamento externo, vale dizer, impõe um modo de agir consentâneo ao homem probo, leal, honesto, correto”15.
Vale salientar que: “O princípio da boa-fé objetiva ou princípio da probidade ou eticidade, expresso nos artigos 422, 113 e 187 do Código Civil, atua sobre contratos com várias funções: é fonte de direitos laterais, é limite à liberdade contratual e à liberdade de contratar, é cânone de integração e interpretação dos contratos”16.
Atualmente, um contrato não é mais visto como resultado de uma acomodação, um acordo de interesses opostos, mas sim como um vínculo de cooperação, uma convergência de interesses, para a realização do que nele se estipulou, o que reclama de qualquer dos contratantes um comportamento leal e reto. Reclama mesmo uma preocupação para com o outro, de maneira que, num contrato, qualquer dos contratantes deve se preocupar para que a outra parte contratante atinja, com o contrato, aquilo que, por meio do mesmo, procurou obter, para tal fim. A boa-fé objetiva é chamada para desempenhar função de relevo, como também se dá com a função social do contrato.
O Código Civil contém em seu corpo de disposições, uma cláusula geral de boa-fé, o que se constata com a leitura de seu artigo 422: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. Aludido dispositivo bem pode ser invocado por aqueles que entendem insuficiente a invocação de princípios para o fim de estabelecer a responsabilidade solidária da empresa cliente para com os créditos do credor — empregado.
Nem se alegue que aludido dispositivo tem aplicação apenas entre as partes contratantes, pois, se é fato que as mesmas devem observá-lo, não menos verdade que as obrigações que dele decorrem — deveres tais como os de informação, lealdade, cooperação, honestidade —, vão além das partes, exigindo que terceiros respeitem os contratos celebrados, bem como não sejam atingidos e/ou prejudicados por contratos por outros celebrados.
Com uma consistência ímpar, o preclaro Rodrigo Mazzei deixou firme que: “É certo que a literalidade do artigo 422 do CC/2002 estabelece que os contratantes são obrigados a observar a boa-fé; não obstante, há terceiros que por uma proximidade com um dos contratantes podem vir a exigir a observância dos deveres anexos decorrentes da cláusula geral da boa-fé”17.
No que mais de perto nos interessa, há fixar que existem pessoas, tradicionalmente enquadradas no conceito de terceiros, mas que agora aparecem, de corpo inteiro, no cenário jurídico para protegerem-se de contratos que possam violar direitos seus, o que é perfeitamente possível, com base no princípio da boa-fé objetiva e da função social do contrato, a par de se ajustar à visão moderna do contrato, que mitigou um tanto o princípio da relatividade dos contratos.
Os princípios mencionados impedem que um ajuste, ainda que fruto do mais puro e perfeito acordo de vontades entre as partes, venha a causar danos a quem, não tendo declarado vontade alguma, possa experimentar algum prejuízo em decorrência do contrato.
Basta não esquecer que as partes contratantes sempre querem ver seus contratos respeitados por terceiros, aos quais opõem o que neles pactuado, e o Direito, regra geral, lhes dá amparo para assim proceder, para se ver como é natural e funciona mesmo como a outra face da mesma moeda, que esses terceiros, se puderem ser atingidos pelo contrato, tenham meios para evitar os efeitos que possam prejudicá-los.
Então, o terceiro, que é o que não participa da feitura do negócio jurídico, mas acaba por ele obrigado e/ou afetado, de alguma maneira, o que não deve provocar espanto algum, se não olvidarmos a rede em que se constituem as relações humanas, nossos atos, invariavelmente provocam efeitos e/ou repercutem, na esfera de outras pessoas, por eles afetados, os quais, se devem, por um lado, respeitá-los, não podem, sob outro ângulo, serem por isso prejudicados. O Direito há de protegê-los, cumprindo ao operador do Direito acertar com qual a proteção então oferecida.
A doutrina, especialmente, mas não apenas, a alemã e a italiana, diante de tal quadro, desenvolveu a categoria do contrato com eficácia de proteção para terceiros, a qual, por bem se encaixar numa visão mais moderna do contrato, abraçada pelo nosso Código Civil, pode ser invocada entre nós, o que a função social do contrato e a boa-fé objetiva permitem, já sendo, inclusive, objeto, com vistas ao direito pátrio, de trabalhos jurídicos de fôlego.
Por meio do contrato com eficácia de proteção para terceiros se reconhece que há terceiros que devem mais estreitamente respeitar algum contrato, pela razão de proximidade que tenham com uma ou ambas as partes contratantes, como também existem — e é o que por ora nos interessa mais de perto — aqueles terceiros que, também em razão de alguma ligação maior com um ou com ambos os contratantes, são merecedores de especial proteção, para que não venham a sofrer prejuízos com a execução do contrato.
Parece claro que o trabalhador, que eu não classificaria como terceiro, mas como segundo, dada a sua ligação ou dependência com os contratantes, encontraria aqui sólido fundamento para reclamar, tanto da sua empregadora, como da empresa cliente, ambas solidárias, o pagamento de seu crédito, já que o ajuste por elas levado a efeito não pode, em atenção aos efeitos externos do contrato, fazer com que ele fique, passe a pobreza da locução, no prejuízo.
Mesmo porque, vale insistir, não são apenas os contratantes que devem ser protegidos contra atos de terceiros, estes também merecem receber proteção, para que não venham a experimentar prejuízos em decorrência do que pactuado pelos contratantes, sentimento esse que deve, no caso que ora nos ocupa, estar muito, muitíssimo vivo, recebendo os aportes doutrinários e jurisprudenciais necessários para robustecer-se cada vez mais, de modo a não permitir que o engenho e a arte de contratantes despidos de boas intenções ou mesmo inaceitavelmente indiferentes para com a sorte daqueles que em seu benefício trabalharam, frustrem os escopos que justificam mesmo a existência do Direito do Trabalho.
Muito contribuirá para que esse desiderato seja atingido, olhar e ter pelos princípios a consideração e o respeito com que devem mesmo ser olhados e tidos. Tal proceder certamente fará com que a procela que agita o sentir daqueles que acreditam insuficiente a atribuição de responsabilidade subsidiária, na situação aqui enfocada, se acalme e permita-lhes singrar por mares não mais agitados, revoltos, mas, sim, sem tormentas, serenos, com uma tranqüilidade que apenas o reconhecimento de que se deverá responsabilizar, de forma solidária, as empresas prestadora e tomadora, poderá propiciar, a qual repousa na segurança de que essa responsabilidade solidária se justifica pelo fato, a que o direito não pode dar guarida, de que ambas não se portaram com a lealdade e a correção devidas — e exigíveis — para com o trabalhador, magoando, então, os princípios todos mencionados nas linhas transatas.
Finalizo lembrando as palavras de Constantino de Campos Fraga, proferidas já nos idos de 1941, após reproduzir ensinamento do mestre Cesarino Júnior, quando do exame que fez acerca da finalidade das leis sociais, verbis:
“Observando a definição do que seja Direito Social, vemos que as leis por ele abrangidas, visando o bem comum, têm por objetivo imediato ‘auxiliar a satisfazer convenientemente às necessidades vitais próprias e de suas famílias, aos indivíduos que para tanto, dependem do produto de seu trabalho’.
Ora, esta finalidade não pode ser falseada na interpretação dos textos legais. Ela é a bússola que nos indicará a rota certa. Quando dela nos desviarmos, por mais brilhante que se afigure a argumentação, podemos afirmar — estamos errados”18.
Essa busca é que me faz juntar minha fraca voz à daqueles, que a têm muito mais altissonante, visando justificar, de maneira fundamentada, que, na questão examinada, a responsabilidade a ser estabelecida é a solidária.
Notas de rodapé
1. in “O controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais”, Juarez Freitas, Malheiros editores, 3ª edição, 2004, páginas 43-4.
2. in “O controle dos Atos Administrativos e os Princípios Fundamentais”, citado, Juarez Freitas, Malheiros editores, 3ª edição, 2004, página 45.
3. in “Breves notas sobre a boa-fé no Direito Administrativo”, Daniel Ustárroz, artigo inserto em obra coletiva “Lições de Direito Administrativo — estudos em homenagem a Octavio Germano”, Luiz Paulo Rosek Germano e José Carlos Teixeira Giorgis organizadores, Livraria do Advogado Editora, PA, 2005, página 126, nota de rodapé 7.
4. in “Neoconstitucionalismo: Constitucionalização do Ordenamento Jurídico e a Releitura do Princípio da Legalidade Administrativa”, Rafael Carvalho Rezende Oliveira, artigo inserto na obra coletiva “Perspectivas da Teoria Constitucional Contemporânea”, coordenador José Ribas Vieira, Editora Lumen Juris, RJ, 2007, página 64.
5. in “Neoconstitucionalismo: Constitucionalização do Ordenamento Jurídico e a Releitura do Princípio da Legalidade Administrativa”, Rafael Carvalho Rezende Oliveira, artigo inserto na obra coletiva “Perspectivas da Teoria Constitucional Contemporânea”, coordenador José Ribas Vieira, Editora Lumen Juris, RJ, 2007, página 64.
6. in “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal”, Sebástian Borges de Albuquerque Mello, inserto em obra coletiva, “Princípios Penais Constitucionais — Direito e Processo Penal à luz da Constituição Federal”, organizado por Ricardo Augusto Schmitt, Edições Podivm, 2007, página 193.
7. in “O Princípio da Proporcionalidade no Direito Penal”, Sebástian Borges de Albuquerque Mello, inserto em obra coletiva, “Princípios Penais Constitucionais — Direito e Processo Penal à luz da Constituição Federal”, organizado por Ricardo Augusto Schmitt, Edições Podivm, 2007, página 191.
8. in “Estudos e Pareceres de Direito Privado”, Antonio Junqueira de Azevedo, Editora Saraiva, 2004, página 13.
9. in “A Terceirização como forma de Desvalorização das Relações de Trabalho sob o Enfoque do Princípio da Dignidade Humana”, Ana Silvia Voss de Azevedo, artigo inserto em obra coletiva, “Estado & Atividade Econômica — O Direito Laboral em Perspectiva”, coordenadores Marco Antônio Villatore e Roland Hasson, Juruá Editora, 2007, página 187.
10. apud Ana Silvia Voss de Azevedo, “A Terceirização como forma de Desvalorização das Relações de Trabalho sob o Enfoque do Princípio da Dignidade Humana”, artigo inserto em obra coletiva, “Estado & Atividade Econômica — O Direito Laboral em Perspectiva”, coordenadores Marco Antônio Villatore e Roland Hasson, Juruá Editora, 2007, página 187.
11. in “Dignidade Humana e Boa-fé no Código Civil”, Nelson Rosenvald, Editora Saraiva, 2005, página 35.
12. in “Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil”, Livraria Almedina, Coimbra, 2004, página 19.
13. in “Princípio da Confiança no Direito Penal”, Mário Pimentel de Albuquerque, Lúmen Júris Editora, 2006, página 87.
14. in “Revisão Judicial dos Contratos”, artigo inserto na obra coletiva “Contornos Atuais da Teoria dos Contratos”, coordenador Carlos Alberto Bittar, RT, 1993, página 144.
15. in “Princípios e Regras de Interpretação dos Contratos no Novo Código civil” Saraiva, 2a edição, página 52.
16. in “Reconstrução do Conceito de Contrato: do Clássico ao Atual”, Roxana Cardoso Brasileiro Borges, artigo inserto em obra coletiva “Direito Contratual — Temas Atuais”, coordenação Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, Editora Método, São Paulo, 2008, página 35.
17. in “O Princípio da Relatividade dos Efeitos Contratuais e suas Mitigações”, Rodrigo Mazzei, artigo inserto em obra coletiva “Direito Contratual — Temas Atuais”, coordenação Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Flávio Tartuce, Editora Método, São Paulo, 2008, página 217.
18. in “Interpretação das Leis Sociais”, Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais. 1941, página 04.
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