O Judiciário português caminha para, aos poucos, abolir o papel. No final do ano passado, quase 90% das ações que chegaram à Justiça já ingressaram por via eletrônica. Em Portugal, a informatização da Justiça e o processo digital começaram de baixo para cima. Hoje, todos os poucos mais de 1,3 mil juízes portugueses de primeira instância já estão habilitados para lidar e julgar o processo sem papel.
Os números animadores foram divulgados pelo Ministério da Justiça do país na sexta-feira (26/11), durante o VII Encontro do Conselho Superior da Magistratura na cidade portuguesa de Évora. E, diante da ausência de qualquer espanto dos pouco menos de 100 juízes presentes ao encontro, a validade dos números pode ser dada como certa.
O encontro dos magistrados aconteceu num dia particularmente especial. Enquanto eles debatiam A Justiça e os meios informáticos em Évora, Lisboa, o resto do país acompanhava a votação do orçamento pelo Parlamento. A proposta do governo foi aceita pelos deputados portugueses e aplaudida pela União Europeia, que pressiona Portugal para desviar do mesmo buraco onde caiu a Grécia e, agora, a Irlanda. E de nada adiantou a greve geral dos trabalhadores no país dois dias antes da votação.
Na parte em que toca o Judiciário — a propósito, só os membros do Ministério Público aderiram à paralisação geral do dia 24 — os cortes devem ser bruscos. Nem os salários dos juízes devem ser poupados. Diferentemente do Brasil, a irredutibilidade dos vencimentos dos magistrados portugueses não está protegida por lei.
Fora isso, a informatização na Justiça vai muito bem. O vice-presidente do Conselho Superior da Magistratura (CSM), José Manuel de Sepúlveda Bravo Serra, estima que em 10 anos já vá ser possível que um processo comece e termine apenas por meio eletrônico.
É claro que, se comparado com o Brasil, o Judiciário português, no quesito informática, está muitos passos à frente. É preciso saber, no entanto, que a comparação é um tanto quanto injusta. Enquanto o Brasil lida com suas dezenas de milhões de processos, Portugal cuida das suas centenas de milhares.
A própria iniciativa portuguesa de começar a informatização na primeira instância tem a ver com o seu tamanho: são pouco mais de 1,3 mil juízes na base do Judiciário. Para se ter uma ideia, só no estado São Paulo, há quase 2 mil magistrados de primeiro grau. Em Portugal inteiro, o número de julgadores não chega a 2 mil.
Pirâmide não-invertida
O processo de informatização do sistema judicial em Portugal é chamado de desmaterialização processual. Por lá, pelo menos aos olhos de quem vê de fora, está funcionando. Em 2007, foi criado o Instituto das Tecnologias de Informação na Justiça (ITIJ), ligado ao Ministério da Justiça. É ele que cuida da Justiça sem papel.
Mesmo debaixo de muitas críticas dos juízes portugueses, pelo menos, na ordem, o instituto foi pelo mais óbvio e parece ter acertado. Em Portugal, não se discute hoje a digitalização de processos já em tramitação, seja nas instâncias superiores ou logo no começo da escalada judicial. O que está em papel, assim vai continuar.
O que foi criado é um sistema, o chamado Citius, que permite que as ações sejam ajuizadas já por meio eletrônico. A ferramenta foi criada em janeiro em 2009, no dia 5, mais precisamente, que é quando se comemora o nascimento do processo eletrônico em Portugal. Estão habilitados hoje para lidar com a era digital advogados, juízes e promotores. Por enquanto, vale apenas para os casos cíveis e, ainda assim, não para todos, mas para a maioria. De acordo com os números do Ministério da Justiça, 74% os atos processuais em primeira instância já podem ser feitos por meio eletrônico.
O próximo desafio do governo português, que capitaneia a tecnologia na Justiça, é levar a informatização para instâncias superiores. De acordo com os próprios magistrados, a tarefa não é fácil. Embora mais enxutos que a primeira instância, os tribunais de segunda instância têm de lidar com outro problema. A tecnologia precisa atingir a casa dos juízes. Quem conta são os próprios magistrados. Como eles preferem trabalhar no conforto de casa, o sistema interno do tribunal precisa ultrapassar barreiras físicas e percorrer distâncias, tudo sem perder a eficiência e a segurança.
Visões diferentes
Se para o olhar de quem está de fora o Judiciário português está muito bem no seu processo de abolir o papel, para quem vive a Justiça lá nem tudo são flores. E nem poderia ser diferente. São os operadores do Direito que sentem, diariamente, os espinhos nos próprios dedos.
Os juízes reclamam, por exemplo, que o processo digital trouxe mais lentidão à Justiça. Contraditório, mas verdadeiro. É temporário, dizem. Todos – inclusive as máquinas – têm de se adaptar à nova tecnologia. Em Évora, durante o congresso, foi discutido como tornar o computador mais próximo do papel, ou seja, tornar possível, por exemplo, que um juiz folheie páginas do processo eletrônico com a mesma naturalidade que faz com os calhamaços em cima da sua mesa.
O sistema de informática, de acordo com relato dos próprios magistrados, também ainda deixa a desejar. Se o processo é pesado demais ou se o juiz abre provas demais, trava o computador. O desliga-e-liga das máquinas atrasa o andar da carruagem, contam.
Outro problema é a desconfiança. A centralização da informatização de Justiça no Executivo português não agradou aos juízes. Eles pedem garantias de que o sistema é seguro e que ninguém vai ter acesso àquilo que ainda querem preservar. A alarmante imprensa portuguesa também é um ponto de preocupação dos magistrados. A legislação processual ainda continua um obstáculo e carece de adaptação. Tudo isso são apenas pedras no caminho que, se se confirmarem as previsões do Conselho Superior da Magistratura, em 10 anos já terão sido removidas.