por Maurício Cardoso e Priscyla Costa
Júri popular bom é o júri que dá o resultado que eu quero. Se a decisão for contrária aos meus interesses, foi porque prevaleceu a impunidade que impera no país. Esse tipo de raciocínio ganha corpo diante da repercussão que se deu à decisão do 2º Tribunal do Júri de Belém, que absolveu o fazendeiro Vitalmiro Bastos de Moura, o Bida, da acusação de ter sido o mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang.
Dorothy foi assassinada com seis tiros em fevereiro de 2005, no município de Anapu, na região oeste do Pará. Brasileira naturalizada, a missionária que nasceu nos Estados Unidos trabalhava há mais de 30 anos em pequenas comunidades e defendia o direito à terra e à exploração sustentável da Amazônia.
Bida já tinha sido condenado a 30 anos de prisão por homicídio. Como a pena supera os 20 anos, ele teve direito a novo júri. No novo julgamento, conseguiu ser absolvido por causa de um “fato novo”. A testemunha Amair Feijoli da Cunha, que antes havia afirmado que a ordem para matar a religiosa tinha vindo de Bida, mudou seu depoimento e disse que o fazendeiro nada tinha a ver com a morte da freira.
De acordo com o promotor Edson Cardoso de Souza, que atuou na acusação, o testemunho provocou grande dúvida nos jurados, que, por cinco votos a favor e dois contra, decidiram pela absolvição de Bida.
Sensação de impunidade
A absolvição do fazendeiro provocou reação em cadeia de diferentes segmentos da sociedade. O governo federal se manifestou através da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. Os ministros do Supremo Tribunal Federal Marco Aurélio e Celso de Mello se pronunciaram contra a absolvição. Os presidentes do Conselho Federal e da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil emitiram notas de repúdio à decisão. Ate o bispo de Ilha do Marajó, José Luís Azcona, lamentou a absolvição: “Confirma-se mais uma vez a situação podre”. Na maioria dos casos, a reação foi de indignação contra o resultado acompanhada do pedido de anulação do veredicto.
Como Cezar Britto, presidente nacional da OAB, que considerou que a decisão reforçou “ainda mais o sentimento de impunidade já tão disseminado em nosso país, como vetor de estímulo a criminalidade e a violência”. As palavras foram repetidas em nota assinada por Paulo Vanucchi, titular da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República: “Esta Secretaria Especial se une à indignação já manifestada pelos familiares de Irmã Dorothy, por prelados católicos, pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e por todos os brasileiros e brasileiras que decidiram declarar publicamente seu inconformismo com uma decisão que reforça ainda mais o sentimento de impunidade já tão disseminado em nosso país”.
A indignação e o lamento são compreensíveis, mas carecem de razão jurídica. Fazem mais sentido, quando baseados em argumentos técnicos. O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, afirmou em entrevista à TV Justiça, que a absolvição do fazendeiro, em oposição frontal com o resultado do primeiro julgamento, poderia passar ao mundo a “sensação de que os direitos básicos das pessoas, especialmente da vítima, não foram respeitados”. O presidente do STF, ministro Gilmar Mendes, evitou comentar o assunto. Já o ministro Marco Aurélio disse que situações como essas são conseqüência da previsão legal, para ele absurda, de se fazer novo julgamento quando a pena ultrapassa 20 anos.
O presidente da OAB-SP, Luiz Flávio Borges D’Urso, também lamentou o resultado do júri, mas fundamentou sua decepção em questão técnica que, segundo ele, pode gerar um pedido de anulação do julgamento de Bida. Depois de receber a visita de uma comitiva encabeçada por David Stang, irmão da freira assassinada, D’Urso divulgou a informação que dois jurados que participaram do primeiro júri teriam participado também do segundo. O detalhe seria suficiente para que fosse decretada a nulidade do julgamento que absolveu o fazendeiro.
De acordo com o advogado Mário de Oliveira Filho, coordenador da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP, ao se formar o conselho de sentença foi constatado que não havia número suficiente de jurados. Um acordo entre a defesa do fazendeiro, o promotor e o juiz teria permitido, então, que dois jurados que participaram do primeiro julgamento fossem convocados para o segundo júri. Segundo ele, se isso realmente aconteceu, trata-se de “um caso de nulidade de ordem pública” e novo julgamento terá de ser feito.
A OAB-SP pediu ao 2º Tribunal do Júri de Belém a ata do julgamento e se comprometeu com David Stang a atuar na assistência da acusação no prosseguimento do caso. Mário de Oliveira devera assumir essa tarefa.
O promotor Edson Cardoso de Souza, que tem cinco dias para recorrer, já anunciou que vai entrar com recurso. Segundo ele, ao absolverem o fazendeiro, os jurados decidiram em flagrante contradição com as provas dos autos. Está no seu direito.
Voz do povo
O site do Tribunal de Justiça do Pará noticiou a absolvição de Bida com isenção jurídica: “Sociedade, representada pelo Conselho de Sentença, absolveu o fazendeiro de participação no assassinato de Dorothy Stang”, diz a manchete da notícia que explica ainda que “argumentos da defesa convenceram a maioria dos jurados”.
A soberania das decisões do Tribunal do Júri está prevista no artigo 5º, inciso XXXVII, c, da Constituição Federal. O criminalista Antonio Sérgio de Moraes Pitombo explica que o Júri tem a qualidade de ser o sentimento popular sobre uma situação fática. Os jurados se colocam na posição do réu e firmam sua convicção. “O júri é um processo técnico e a decisão é imparcial. Se o acusado foi absolvido, razões existiram. Para os crimes contra a vida, não há nada melhor que esse tipo de procedimento”, afirma.
O advogado Alberto Zacharias Toron, conselheiro federal da OAB, considera um “absurdo” a idéia de que a absolvição represente “um caso para o rol da impunidade”. De acordo com ele, “só mesmo uma profunda incompreensão do que seja um julgamento pode levar a uma afirmação deste tipo”. Para Toron, “essa decisão é recorrível pelo mérito. Se há insatisfação, que a acusação apresente apelação. O que é inviável é o discurso de que quando há absolvição, há injustiça”.
A criminalista Dora Cavalcanti, ex-presidente do Instituto de Defesa do Direito da Defesa (IDDD), afirma que sempre que são respeitadas as regras processuais previstas no sistema jurídico, não se pode falar em impunidade. “Essa é a concretização da Justiça. Decisões do Tribunal do Júri estão para ser respeitadas e são sujeitas a recurso. Dizer que há impunidade é uma grande confusão conceitual. Impunidade existe quando o direito não é respeitado, quando a pessoa não se submete às regras jurídicas. Se foi inocentado é porque foi julgado. Se foi julgado, foi respeitado o devido processo. Isso é Justiça”, finaliza.
Leia a nota da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
NOTA À IMPRENSA
A Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República — sem interromper sua postura de permanente respeito perante todas as instâncias do Judiciário — vem expressar veemente desacordo com a decisão do Tribunal do Júri de Belém do Pará, que na data de ontem absolveu um dos fazendeiros acusados como mandantes do assassinato, em 2005, de Dorothy Stang, religiosa norte-americana que dedicou sua vida missionária e ofereceu seu próprio sangue em defesa da população pobre do Xingu e pela preservação da floresta amazônica brasileira.
Como responsável principal pela promoção das políticas de defesa dos Direitos Humanos no âmbito do Executivo Federal, esta Secretaria Especial se une à indignação já manifestada pelos familiares de Irmã Dorothy, por prelados católicos, pelo presidente do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil e por todos os brasileiros e brasileiras que decidiram declarar publicamente seu inconformismo com uma decisão que reforça ainda mais o sentimento de impunidade já tão disseminado em nosso país, como vetor de estímulo à criminalidade e à violência.
Num ano em que o mundo celebra os 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, da ONU, e o Brasil organiza uma ampla agenda de conferências setoriais, seminários, debates e publicações voltadas à elevação da consciência social sobre a importância de se construir ampla unidade nacional em torno da defesa da vida como bem supremo, é estarrecedor constatar que tristes episódios de celebração da impunidade seguem acontecendo entre nós.
A Secretaria Especial dos Direitos Humanos reafirma, no entanto, a sua confiança na capacidade de o Poder Judiciário brasileiro comprovar seu alinhamento com os preceitos da Carta Constitucional que comemora 20 anos em 2008, bem como com todos os instrumentos internacionais sobre Direitos Humanos de que o Brasil é signatário, corrigindo com rapidez a sentença de primeira instância para produzir JUSTIÇA.
Brasília, 7 de maio de 2008
Paulo Vannuchi
Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República
Revista Consultor Jurídico