por Manoel Leonilson Bezerra Rocha
Um assunto que vem dividindo opiniões é o que se refere ao denominado quinto constitucional, processo através do qual a quinta parte dos lugares dos Tribunais Regionais Federais, dos Tribunais dos estados, do Distrito Federal, será composta de membros do Ministério Público, com mais de 10 anos de carreira, e de advogados de notório saber jurídico e reputação ilibada, com mais de 10 anos de efetiva atividade profissional, indicados em lista sêxtupla pelos órgãos de representação das respectivas classes, ao teor do artigo 94, da Constituição Federal de 1988.
Argumentos contrários à permanência desta forma de investidura na função judicante vêm acompanhados, ora de preconceitos, notadamente quando se refere à classe da advocacia, ora de desinformação, face à mentalidade anacrônica quanto à composição de um judiciário verdadeiramente democrático.
Aos séqüitos dos que defendem a extinção do quinto constitucional reservado à representantes da advocacia, militam, a seu favor, o desvirtuamento da natureza essencial deste instituto em razão da maneira como vem sendo conduzido, servindo, não raramente, como mero instrumento de acordos escusos do que, efetivamente, o de agregar valores e colaborar para com a democratização do judiciário brasileiro.
O quinto constitucional não é uma exclusividade do ordenamento jurídico brasileiro. Ele existe, com esta ou outra definição, em maior ou menor grau, em praticamente todas as nações civilizadas, ocorrendo, em muitos países, um percentual muito maior de participação de advogados na administração da justiça do que o previsto entre nós. Considera-se, portanto, muito tímida a participação do advogado na composição das Cortes de Justiça brasileiras.
O quinto constitucional foi instituído no Brasil pela Constituição Federal de 1934, tendo sido consagrado pela Constituição de 1946. A Constituição de 1988 o manteve, em seu artigo 94. O seu objetivo é uma maneira de diversificar a composição dos Tribunais garantindo uma pluralidade de enfoques, para além da formação e da experiência do magistrado de carreira. Passou a ganhar adeptos no Brasil em razão da repercussão, em 1934, da criação dos Tribunais Constitucionais Europeus, como sendo uma forma avançada de controle do poder estatal.
Esse princípio, apregoado por Hans Kelsen, tinha por certo que um dos males que comprometia o equilíbrio entre os poderes era o fato de o Judiciário – não sendo formado por agentes políticos eleitos – não poder anular atos dos seus pares, sem que a recíproca fosse verdadeira. Entre nós, esse receoso perigo se abrandaria pela nomeação, por parte do Executivo, dos ministros do Supremo Tribunal Federal – STF.
Em Portugal é previsto na Constituição da República de 1976, artigo 217, 4, que a composição das Cortes de Justiça far-se-á por “juristas de mérito”. A Constituição da Itália, em seu artigo 106, alude à “advogados com mais de quinze anos de exercício profissional”. Na Espanha, a Constituição, em seu artigo 122, 1, refere-se a um terço, dentre juristas de reconhecida competência, com mais de dez anos de exercício profissional. Há que se mencionar, ainda, os denominados juristas “convocados”, que ocorre quando um magistrado (dentre nós desembargador), necessita tirar licença por questões de saúde ou para aperfeiçoamento em curso de pós-graduação, escolhendo, sempre, jurista fora do quadro de juízes de carreira, normalmente advogados.
Cá entre nós, em Goiás, isso não ocorre porque quando um desembargador tem de se ausentar de sua função, o faz para gozo de férias ou por estar de licença médica, nunca para proceder a estudos de pós-graduação ou dedicar-se à atividade científica, pois crêem que já sedimentaram e resumiram em si o saber e a cultua jurídica, não precisando mais estudar, nem se atualizarem, preferindo utilizar seus tempos vagos para se reunirem e discutir a cotação da arroba do boi.
Para a eventualidade de ter de se afastar, ou por licença ou por férias, é sempre convocado um juiz de direito de carreira, escolhido dentre aqueles que adotam a mesma linha do desembargador que se ausenta, de sua inteira confiança e de seu convívio pessoal, fiel à sua linha ideológica. Isso impede totalmente que haja oportunidade de haver uma oxigenação ou alternância no quadro de desembargadores, restando ao jurisdicionado que sofre na pele as conseqüências das mentalidades mumificadas de verdugos desembargadores, aprisionados no sarcófago de suas idéias reacionárias, prepotências e presunções, exercitar a paciência de aguardar que ocorra a aposentadoria compulsória ou torcer para que algum deles morra.
De ver-se, o quinto constitucional não é uma invenção recente, nem uma criação pátria. Essa forma de investidura nas Cortes de justiça existe como conseqüência do próprio estado democrático, visando dotar o judiciário de maior participação de diferentes idéias e formação intelectual, no afã de alcançar ao máximo os diversos atores responsáveis pela operacionalidade do direito e, consequentemente, ativos na distribuição da justiça. Entretanto, apesar de no Brasil o quinto constitucional ser relativamente recente, já apresenta aziagos desgastes que o comprometem, correndo-se o risco de vir a precipitar nas ruínas do total descrédito, com a sua conseqüente eliminação do nosso ordenamento, em razão da maneira inescrupulosamente mercadológica com que tem sido utilizado por alguns dirigentes da Ordem dos Advogados do Brasil.
Vendo sob esse aspecto, verifica-se que o quinto constitucional vem, a passos largos, perdendo a sua natureza essencial e transformando-se em objeto superficial de barganha à satisfazer aos interesses não mais sociais, mas, sim, à fisiologismos, em abjeto desvirtuamento de suas finalidades.
Os acordos costurados, visando ao preenchimento de vagas através do quinto constitucional, na esfera da OAB, começam, geralmente, no período de eleições para a direção da Instituição. Desta forma, em uma espécie de “leilão”, os candidatos, exortando aos “quem dá mais”, ao financiamento de suas campanhas, oferecem aos “investidores” as vagas nos Tribunais e Autarquias destinadas à OAB pelo quinto constitucional, não mais pelo critério do “notório saber jurídico e reputação ilibada”, mas, doravante, como mera moeda de troca, independentemente da índole moral e do sofrível cabedal intelectual do “arrematador” que passará a ser chamado de “Vossa Excelência” (ou ao menos é o que pretendem, pois não raramente são levados ao calote).
Como tais condutas são deploravelmente despidas de escrúpulos, entre os negociantes também não há que se falar em quaisquer virtudes morais.
Desta forma, entre eles, é natural que imperem a trapaça, o calote, a traição. Nesse vale-tudo, contrariando, destarte, as lições de Rui Barbosa, pois transformam a Ordem em balcão de negócios, onde negociam o que legitimamente não lhes pertence, senão por espoliação, é óbvio que a traição entre os envolvidos chega a níveis tão escandalosos que a falta de rubores permite que se tornem públicas as suas contrariedades, tendo uns e outros, traídos e traidores, recorrido aos jornais para externarem seus ressentimentos e mágoas.
Uma espécie do gênero ocorreu aqui entre nós, em Goiás, onde foram estampadas manchetes as mais bizarras e deprimentes, tais como “apadrinhamento trabalhista, advogados reclamam na Justiça Federal processo de seleção da OAB que visa escolher futuro desembargador”; A lei é que manda ser seis. Queria selecionar mais”; Decepção após sabatina”; Anápolis injustiçada na composição da Lista Sêxtupla da OAB/GO”.
É exatamente em razão desse nível de imoralidade a que foi conduzido o instituto do quinto constitucional que a grande maioria dos advogados e advogadas defende eleição direta para a escolha daquele que irá compor o judiciário como oriundo da classe dos advogados. A eleição direta é o que mais se exsurge como sendo democrático, transparente, livre de negociatas e condizente com os ideais éticos, tradicional e historicamente, a bandeira da Ordem dos Advogados do Brasil.
Ao leitor que porventura não tenha assimilado bem sobre a gravidade e o grande perigo insertos nas seqüências de descompromisso para com a seriedade e relevância do quinto constitucional, bem como para com os deveres éticos e morais que sempre foram a profissão de fé na Ordem dos Advogados do Brasil, faz-se necessário relembrá-lo de dois objetivos fundamentais que justificam o seu surgimento e manutenção: 1) arejar a função judicial, como a atuação de pessoas de diversas sensibilidades jurídicas para a distribuição da justiça, que se caracteriza pela pluralidade de enfoques e extrema diversidade de situações ou posições; 2) incorporar nos tribunais pessoas que já demonstraram cultura jurídica, idoneidade, capacidade de tirocínio, e que, de outro modo, estariam alijados da atividade jurisdicional, funcionando como um critério de seleção de bons juízes.
Ora, a partir dessas premissas ético-morais-teleológicas, resta absolutamente incompatível pretender conciliar as negociatas e interesses espúrios com as reais finalidades do instituto do quinto constitucional.
Até o final deste ano vão surgir duas vagas de desembargadores destinadas à OAB. Uma em razão da aposentadoria compulsória de um desembargador (que já foi tarde e não deixou saudades), outra em razão do aumento do número de vagas, já aprovado na Assembléia Legislativa do Estado. É preciso que a sociedade como um todo esteja atenta aos critérios que serão adotados para a escolha desses novos desembargadores oriundos da classe dos advogados.
Caso não haja uma retomada de consciência de modo a redirecionar o quinto constitucional aos legítimos anseios da classe dos advogados e de toda a sociedade, a conseqüência será a sua condução ao lamaçal do descrédito perante todos os segmentos sociais e desprestigio da advocacia, até alcançar, deploravelmente, o seu total aniquilamento, com nefastos danos aos propósitos de democratização do judiciário e malefícios indeléveis à sociedade em geral.
Revista Consultor Jurídico