por Ludimar Rafanhim
O sistema previdenciário — enquanto organização estruturada e planejada — é muito recente no Brasil e no mundo. Em que pese as mais conhecidas organizações datarem dos séculos XVIII, XIX e XX, pode-se dizer que a previdência em si surgiu quando os homens, pela primeira vez, decidiram cultivar plantas e domesticar animais, constituindo reservas para o dia seguinte ou para o momento de infortúnio.
Trata-se neste artigo da previdência como sistema organizado, com regras, princípios e objeto próprios. O sistema previdenciário brasileiro é formado, essencialmente, por três regimes de previdência:
1. O RGPS — Regime Geral de Previdência Social envolve todos os trabalhadores da iniciativa privada, autônomos, agentes políticos, trabalhadores rurais, empregados públicos e servidores públicos estatutários sem regime próprio de previdência estruturado.
2. O Regime Complementar de previdência objetiva pagar ao segurado a diferença a mais entre o que ele recebia enquanto empregado e o teto do RGPS que, em fevereiro de 2008, é R$ 2, 8 mil
Empregados e empregadores contribuem para este regime objetivando exatamente preservar o poder aquisitivo anterior à aposentadoria pelo RGPS. A previdência complementar não se confunde com as propagandeadas previdências privadas pois estas últimas não passam de modalidades de investimento financeiro.
3. E por fim, o objeto desta nossa análise, o RPPS — Regime Próprio de Previdência dos Servidores Públicos.
O regime previdenciário dos servidores públicos está todo ele regulado no artigo 40 da Constituição Federal, no formato lhe deram as emendas constitucionais 20/1998, 41/2003 e 47/2005.
Neste artigo da Constituição Federal, com todos os seus parágrafos, é que se encontram regras para concessão dos benefícios dos servidores públicos estatutários, únicos abrangidos pelo RPPS, bem como sobre o financiamento e sustentabilidade do regime.
Em cada ente da federação e na própria União pode ser constituída uma única unidade gestora para administrar os regimes próprios de previdência dos servidores públicos.
As unidades gestoras recebem denominação e natureza jurídicas diferentes em cada ente. São autarquias, autarquias especiais, serviços sociais autônomos e meros fundos contábeis. O grande desafio que se coloca é como fazer uma gestão democrática da entidade e que não seja absolutamente submissa ao prefeito, Governador ou Presidente da República.
É um desafio, pois se trata de administrar uma entidade que gerencia os recursos e os benefícios de dezenas, centenas e milhares de interessados, inclusive dependentes, pois são pensionistas em potencial. Trata-se de administrar milhões de reais que garantirão os benefícios previdenciários dos servidores públicos sem que se onere ainda os cidadãos.
A unidade gestora está administrando recurso alheio e deve fazê-lo com tanta eficiência e transparência que possa garantir a concessão dos benefícios previdenciários na hora em que forem adimplidos todos os requisitos exigíveis pela Constituição Federal e leis regulamentadoras.
Diversos aspectos dos RPPS poderiam ser aqui analisados, mas nos ateremos à gestão que, obrigatoriamente, deverá ser democrática e transparente.
Por serem entidades da Administração Pública, a elas aplicam-se todas as normas do regime jurídico público, inclusive, no tocante à realização de concurso público e licitação, mas este não é o aspecto mais importante.
A unidade gestora do regime próprio de previdência está subordinada aos princípios constitucionais implícitos e explícitos aplicáveis à Administração Pública, em especial, aqueles consagrados no caput do artigo 37 da Constituição Federal, quais sejam, moralidade, impessoalidade, legalidade, publicidade e eficiência.
A aplicação apenas destes dispositivos seria suficiente para determinar que a gestão fosse democrática e transparente como preconizam as leis federais 10257/2001 — Estatuto da Cidade e 101/2000 — Lei de responsabilidade fiscal, mas o legislador infraconstitucional criou normas ainda mais explícitas para a gestão dos regimes próprios de previdência dos servidores públicos.
O legislador tomou este cuidado pois aconteceu de tudo um pouco nestas unidades gestoras, desde a criação das primeiras, há décadas. Ao longo destas décadas, muitos administradores públicos criaram entidades apenas para se desonerar do recolhimento para o Regime Geral de Previdência Social que é administrado pela autarquia INSS, mas também não recolhiam os valores devidos às entidades, vendendo a ilusão de que existia um fundo para pagar os benefícios previdenciários dos servidores públicos e seus dependentes.
Outros administradores públicos recolheram os valores devidos para as entidades gestoras, no entanto, à primeira dificuldade financeira do Estado ou do Município, eram realizados empréstimos do valor acumulado e estes jamais eram pagos à entidade previdenciária.
Não havia resistência por parte dos administradores da unidade gestora quanto a esta postura do Chefe do Executivo pois os seus dirigentes eram todos de confiança do próprio chefe do Poder instituidor da entidade.
E mais, foram concedidas pensões e aposentadorias com valores exorbitantes e muito além da média dos vencimentos dos servidores públicos. Pra evitar abusos desta natureza é que o legislador criou normas mais rigorosas com relação à gestão, bem como sobre a forma de concessão e os valores dos benefícios.
O caput do artigo 40 da Constituição Federal define as regras gerais para a instituição de unidade gestoras.
Artigo 40. Aos servidores titulares de cargos efetivos da União,dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios , incluídas suas autarquias e fundações, é assegurado regime de previdência de caráter contributivo e solidário, mediante contribuição do respectivo ente público, dos servidores ativos e inativos e dos pensionistas, observados critérios que preservem equilíbrio financeiro e atuarial e o disposto neste artigo.
É o parágrafo 20 do artigo 40 que limita a existência de regimes e unidades gestoras.
§ 20. Fica vedada a existência de mais de um regime próprio de previdência social para os servidores titulares de cargos efetivos, e de mais de uma unidade gestora do respectivo regime em cada ente estatal ressalvado o disposto no artigo 142, § 3º, X (militares).
A partir destes dispositivos e dos princípios previstos no artigo 37 da Constituição Federal é que foram elaboradas as demais normas sobre o regime próprio de previdência dos servidores públicos.
A lei federal que dispõe sobre regras gerais para a organização e o funcionamento dos regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal é a 9717, de 27 de novembro de 1998.
É esta norma que traz os fundamentos legais para a organização e gestão dos regimes próprios de previdência dos servidores públicos.
O inciso VI do artigo 1º da norma assegura a ampla publicidade das informações e a participação dos interessados na gestão. Veja-se:
Artigo 1º Os regimes próprios de previdência social dos servidores públicos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, dos militares dos Estados e do Distrito Federal deverão ser organizados, baseados em normas gerais de contabilidade e atuária, de modo a garantir o seu equilíbrio financeiro e atuarial, observados os seguintes critérios:
VI — pleno acesso dos segurados às informações relativas à gestão do regime e participação de representantes dos servidores públicos e dos militares, ativos e inativos, nos colegiados e instâncias de decisão em que os seus interesses sejam objetos de discussão e deliberação;
Da simples leitura do inciso VI pode-se concluir que ao RPPS aplicam-se as mesmas regras da gestão do orçamento público, pois se trata de recurso público dotado para o regime próprio, além das contribuições dos servidores.
É assegurado aos beneficiários e contribuintes a participação nos colegiados e instâncias de decisão, mas não se trata d participação descomprometida pois o artigo 8º da mesma lei é muito claro ao responsabilizar seus gestores.
Artigo 8º Os dirigentes do órgão ou da entidade gestora do regime próprio de previdência social dos entes estatais, bem como os membros dos conselhos administrativo e fiscal dos fundos de que trata o artigo 6º, respondem diretamente por infração ao disposto nesta Lei, sujeitando-se, no que couber, ao regime repressivo da Lei 6.435, de 15 de julho de 1977, e alterações subseqüentes, conforme diretrizes gerais.
Há diversos casos de conselheiros que respondem judicialmente pelas decisões que tomaram nos conselhos deliberativo e fiscal das entidades, no tocante à aquisição de imóveis sem licitação, desvio e investimentos temerários dos recursos dos RPPSs, dentre outras decisões.
O Ministério da Previdência, por meio de portarias, resoluções e Orientações Normativos dá maior concretude aos comandos das normas anteriormente transcritas.
Os artigos a seguir transcritos são da Orientação Normativa 1/2007 do Ministério da Previdência Social. O artigo 14 é que, de forma mais clara, assegura aos servidores e beneficiários o pleno acesso à gestão dos RPPSs.
Artigo 14. O RPPS da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios será administrado por unidade gestora única vinculada ao Poder Executivo que:
I – garantirá a participação de representantes dos segurados, ativos e inativos, nos colegiados e instâncias de decisão em que os seus interesses sejam objetos de discussão e deliberação, cabendo-lhes acompanhar e fiscalizar sua administração;
II – procederá a recenseamento previdenciário, abrangendo todos os aposentados e pensionistas do respectivo regime, com periodicidade não superior a cinco anos; e
III – disponibilizará ao público, inclusive por meio de rede pública de transmissão de dados, informações atualizadas sobre as receitas e despesas do respectivo regime, bem como os critérios e parâmetros adotados para garantir o seu equilíbrio financeiro e atuarial.
Os artigos 17 e 18 da mesma ON 01/2007 do MPS preservam os direitos individuais dos segurados a terem acesso a todas informações sobre a sua situação previdenciária individualizada.
Artigo 17. O ente federativo manterá registro individualizado dos segurados do RPPS, que conterá as seguintes informações:
I – nome e demais dados pessoais, inclusive dos dependentes;
II – matrícula e outros dados funcionais;
III – remuneração de contribuição, mês a mês;
IV – valores mensais da contribuição do segurado; e
V – valores mensais da contribuição do ente federativo.
§ 1º Ao segurado serão disponibilizadas as informações constantes de seu registro individualizado.
Artigo 18. A unidade gestora deverá garantir pleno acesso dos segurados às informações relativas à gestão do RPPS.
Parágrafo único. O acesso do segurado às informações relativas à gestão do RPPS dar-se-á por atendimento a requerimento e pela disponibilização, inclusive por meio eletrônico, dos relatórios contábeis, financeiros, previdenciários e dos demais dados pertinentes.
A interpretação meramente literal dos dispositivos mencionados nos leva a concluir que os RPPS devem ser administrados com absoluta transparência, publicidade e democracia.
Ocorre que, assim como acontece com os comandos da Lei Complementar 101/2000, Lei 10257/2001 e caput do artigo 37 da Constituição, muitos administradores públicos desenvolvem sofisticados métodos de burlas a estas normas.
As audiências públicas na elaboração e aprovação do orçamento, assim como para prestar contas, mais parecem espetáculos onde cidadãos participam como meros expectadores.
Nos RPPS, em muitos casos, os diretores das unidades gestoras dos RPPS são pessoas de confiança do chefe do Poder Executivo e não são servidores efetivos.
Os conselhos Fiscal e Deliberativo são formadas essencialmente por pessoas indicadas direta ou indiretamente pelo gestor público, em que pese, parte deles ali estarem como se fossem representantes dos servidores.
Mesmo na escolha dos representantes das entidades de classe dos servidores, os gestores procuram intervir direta ou indiretamente para ter total controle sobre a direção e conselhos da unidade gestora do RPPS de determinado ente federativo. Afinal trata-se de administrar milhões de reais.
O cumprimento das normas que determinam a gestão democrática da entidade gestora dos RPPS, por todos os meios de publicidade e participação dos servidores públicos previstos, somente se efetivará se for assegurado que a gestão desta se dê por aqueles que são os maiores interessados na eficiência e sustentabilidade do RPPS, quais sejam, os servidores públicos e seus dependentes.
A gestão democrática e transparente da unidade gestora do RPPS passa pela escolha de seus dirigentes dentre servidores efetivos ativos e inativos, inclusive por meio de eleição direta.
Os conselhos Fiscal e Deliberativo devem ser formados paritariamente, onde se assegure a presença majoritária de servidores indicados por seus pares, sendo, no mínimo, tripartite entre servidores ativos, inativos e representantes da estrutura administrativa. Estes últimos sim podem ser indicados diretamente pelo Chefe do Poder Executivo e dos demais poderes no caso da União e dos estados membros.
Espaços amplos de participação de todos os interessados devem ser criados, tais como, congressos dos segurados, assembléias dos segurados e audiências públicas efetivamente democráticas.
Administrar as unidades gestoras dos regimes próprios de previdência de forma democrática requer mudança na concepção de muitos governantes que temem dividir o poder com aqueles que permanecerão na gestão pública mesmo quando outros gestores forem escolhidos pela população.
Revista Consultor Jurídico