por Juliana M. Cerutti de Castro
Há muito que se discute se a aprovação em concurso público gera um direito subjetivo à nomeação ou mera expectativa de direito. Sem muitas delongas, os Tribunais trilhavam um mesmo caminho, tratando a nomeação como ato discricionário da Administração Pública razão por que, ao aprovado, ainda que dentro do úmero de vagas oferecidas em edital, caberia mera expectativa de direito.
Reforçado pelo texto da Súmula 15 do STF de 13 de dezembro de 63 segundo a qual “dentro do prazo de validade do concurso, o candidato aprovado tem direito à nomeação, quando o cargo for preenchido sem observância da classificação”, o entendimento dos julgadores era de que, não havendo preterição na ordem classificatória, não haveria direito à nomeação. Contudo, a referida Súmula fora editada sob a égide da Constituição Federal de 1946 sendo necessária uma releitura da questão a fim de adequar-se à nova ordem principiológica imposta pela Constituição Federal de 1988.
A República Federativa do Brasil regida pela Constituição Federal de 1988 constitui-se num Estado Democrático de Direito que tem dentre seus fundamentos a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, CF/88). Assim, na realização de um concurso público que em muito se relaciona com esse direito natural, há que se direcionar as normas de regência ao equilíbrio da relação jurídica existente entre candidato e Estado.
Primeiramente, é de se destacar que a própria realização de concurso público para provimento de cargo ou emprego público provém de determinação constitucional (inciso II do artigo 37 da CF/88), em disposição oriunda da necessidade de se selecionar pessoas efetivamente capacitadas para o melhor desenvolvimento das atividades estatais. Não é demais recordar que apenas estão dispensados de concurso público os cargos em comissão, assim definidos por lei, bem como os cargos eletivos.
A decisão, porém, pela elaboração de concurso público é do administrador que, norteado pela necessidade, conveniência e oportunidade toma discricionariamente a iniciativa de realização ou não de concurso público. É nesse momento que lhe cabe fazer uma análise criteriosa da existência de vaga a ser preenchida bem como de previsão orçamentária para a efetiva contratação de novos servidores, de maneira a gerir responsavelmente o ente público.
Feito isso e, em se decidindo pela necessidade e conveniência de realização de concurso público, igualmente ao administrador cabe a elaboração do edital do certame, determinando as regras que devem ser seguidas e dispondo sobre requisitos necessários ao provimento do cargo ou emprego a que se destina, sempre de acordo com os preceitos legais a que está vinculado. Cada detalhe, requisito, programa, dever, direito e obrigação deve estar presente no documento editalício. É nele que devem estar especificados, por exemplo, o cargo ou emprego que se pretende prover, os requisitos para o respectivo provimento, os tipos de prova, a quantidade de etapas do concurso, a valoração das provas e títulos e, inclusive, o número de vagas que se pretende preencher.
Além disso, e por se tratar de um conjunto de atos administrativos, o concurso público vê-se igualmente adstrito aos princípios administrativos. Esses princípios constitucionais que, dentre outros, estão dispostos expressa ou implicitamente na Magna Carta brasileira têm por função limitar o trabalho do administrador. E é o já citado artigo 37[1] da CF/88 que determinada a obediência, pela Administração Pública, dos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência os quais, na questão relativa à nomeação de aprovados em concurso público adquirem assaz importância.
Ora, pois, uma vez publicado o edital de concurso para provimento de determinado número de vagas, vê nele, o cidadão, uma oportunidade profissional. Após sopesar os detalhes dispostos no referido edital bem como suas possibilidades ante o número de vagas oferecidas por meio daquele documento, a pessoa acorre ao chamamento, dedicando-se com afinco.
Desnecessário dizer do ônus que sofre qualquer candidato, decorrente do engajamento em um certame, com dispêndios de tempo, dinheiro, abnegações das mais variadas, inclusive ausências do convívio familiar e do desfrute de momentos, muitos de importância inquestionável. Assim, o mínimo que se pode esperar é que não haja mudança por parte da Administração Pública do que lhe fora proposto, mais precisamente do que fora expresso no edital.
A partir do momento em que ocorre a publicação do edital de concurso está a Administração vinculada às regras ali estabelecidas tanto quanto o candidato. Tais regras só podem ser modificadas na ocorrência de fatos e diante de situações extraordinárias, efetivamente justificadas. Trata-se do respeito ao princípio da segurança jurídica, imprescindível para o equilíbrio da relação cidadão-Estado.
Além disso, no momento da inscrição no concurso, quando o cidadão aceita se submeter às condições editalícias, passa-se a ter uma obrigação comutativa entre a Administração Pública e o candidato inscrito. E é por essa razão que não se pode admitir que até a efetiva nomeação só se tenha expectativa de direito, quando se tratar de aprovação dentro do número de vagas dispostas no edital, haja vista que a própria Administração Pública publicou por meio de edital a sua necessidade ao preenchimento desse determinado número de vagas.
Nesse contexto, importante destacar o princípio da legalidade que, como já mencionado é um dos princípios norteadores da Administração Pública e que, no caso, implica na permissão para que a Administração faça tudo o que estiver previsto em lei, limitando-se nela. Todo e qualquer concurso público só pode ser realizado com amparo em lei assim como o edital publicado é “lei entre candidato e Administração”, vinculando ambas as partes a seus termos.
É possível aqui, fazer uma analogia do concurso público com as mais diversas formas de licitação existentes haja vista que se trata de formas de seleção de pessoas e profissionais efetivamente habilitados para o melhor desempenho das atividades de que necessita a Administração Pública. Diz-se isso para mencionar que a vinculação da Administração aos termos do edital por ela lançado e publicado já está normatizado (artigo 41 da Lei 8.666/93) e pacificado na doutrina especializada, de onde se destaca:
A vinculação ao edital é princípio básico de toda licitação. Nem se compreenderia que a Administração fixasse no edital a forma e o modo de participação dos licitantes e no decorrer do procedimento ou na realização do julgamento se afastasse do estabelecido, ou admitisse a documentação e propostas em desacordo com o solicitado. O edital é a lei interna da licitação, e, como tal, vincula aos seus termos tanto os licitantes como a Administração que o expediu[2]. [Grifado]
Assim, dizer-se que, mesmo após publicar um edital em que a Administração declara aos cidadãos que necessita de determinado número de servidores ou empregados, ela não está obrigada a efetivamente nomear os que forem aprovadas para as vagas que, já ao tempo do edital existiam, é pisotear os termos do princípio da legalidade e do já citado princípio da segurança jurídica. De nada adianta respeitar o princípio administrativo da publicidade dos atos mediante a publicação do edital de concurso se o correspondente resultado não é respeitado por razões absolutamente alheias aos termos editalícios.
O princípio da impessoalidade que há de ser respeitado durante todo o certame no sentido de que qualquer favorecimento pessoal há de ser rechaçado, a fim de que todos os candidatos concorram às vagas oferecidas em igualdade de condições, valendo referência também ao princípio da isonomia, constitucionalmente afirmado, há que ser mantido igualmente após o resultado final publicado. Aos aprovados, que o foram por melhor atenderem as necessidades administrativas, cabe a vaga oferecida em edital e para a qual estão comprovadamente habilitados, independentemente de quem os sejam.
Por sua vez, o princípio da moralidade volta-se à questão em comento de maneira a evitar a desnecessária movimentação da máquina administrativa proporcionando economia ao erário e evitando desgaste àqueles que se habilitam aos cargos, pois à Administração interessa tão-somente a arregimentação de candidatos. Ora, pois, realizar um concurso e arcar com todos os dispêndios por ele emanados sem que seu fim que é o preenchimento de determinados cargos ou empregos públicos, seja alcançado é confrontar diretamente o princípio da moralidade administrativa.
Ademais, o mau uso da realização de concursos públicos, deixando-se transcorrer o prazo do concurso sem o efetivo preenchimento das vagas oferecidas em edital é igualmente uma afronta ao princípio da eficiência segundo o qual os atos da Administração Pública devem ser tomados da maneira mais eficiente a fim de suprir com qualidade as necessidades públicas.
Atenta aos desvios da lei pela Administração Pública, a jurisprudência tem reavaliado todo esse contexto. Sobretudo nas decisões dos Tribunais Superiores é possível vislumbrar o entendimento de que aos candidatos aprovados dentro do número de vagas oferecido e publicado em edital de concurso público cabe o direito líquido e certo à nomeação.
O que se via ordinariamente é que, a Administração Pública simplesmente deixava transcorrer o prazo de vigência de concurso sem nomear a quem de direito para as vagas declaradas existentes no instrumento convocatório do certame. Assim sendo, a Administração Pública se valia de manobra aparentemente legal para esvaziar a diretriz protecionista veiculada no inciso IV do artigop 37 da CF/88 que institui prioridade na convocação aos aprovados em concurso durante o prazo previsto no edital. Com isso, afrontavam-se os princípios administrativos constitucionais, deixando-se os candidatos aprovados sem qualquer segurança jurídica quanto aos concursos públicos, sem que qualquer punição fosse imposta.
Diante dessa questão, os estudos foram-se aprofundando resultando em brilhantes conclusões como a do Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio em voto proferido no julgamento do RE 192.568-0/PI[3], in verbis:
A interpretação de dispositivo legal ou constitucional há de fazer-se de modo sistemático e teleológico, métodos aos quais não se sobrepõe o alusivo à interpretação verbal. Se a carta assegura, no prazo de validade do concurso, a convocação de candidatos nele aprovados com prioridade sobre novos concursados, ou seja, candidatos aprovados em concurso posterior, é de concluir-se que a inércia, intencional, ou não, da administração pública, deixando de preencher cargos existentes, leva à convicção sobre a titularidade do direito subjetivo de ser nomeado. No campo da atuação administrativa, não se pode admitir atos que consubstanciem tergiversação, verdadeiro drible a normas imperativas como são as constantes da Carta de 1988. (Grifado)
Muito embora a reflexão supracitada tenha sido proferida no ano de 1996, é incontestável a evolução jurisprudencial. É fato que algumas decisões ainda seguem no sentido de que a aprovação em concurso público gera ao candidato apenas expectativa de direito sob a alegação de tratar-se de ato discricionário da Administração Pública. Não obstante isso, está se consolidando a cada dia o entendimento de que, havendo publicação pelo Edital de Convocação do Concurso do número de vagas a serem preenchidas, a nomeação de tantos candidatos quantos forem necessários ao preenchimento das vagas anunciadas, torna-se obrigatória.
Ao publicar em edital o número de vagas que estão disponíveis, a Administração torna expressa a sua necessidade, vinculando-se a ela e ensejando direito subjetivo à nomeação e à posse para o candidato aprovado e classificado. Nesse sentido são as reiteradas decisões dos Tribunais brasileiros, de onde se destaca:
ADMINISTRAÇÃO. CONCURSO PÚBLICO. NOMEAÇÃO. DIREITO SUBJETIVO. CANDIDATO CLASSIFICADO DENTRO DAS VAGAS PREVISTAS NO EDITAL. ATO VINCULADO.
Não obstante seja cediço, como regra geral, que a aprovação em concurso público gera mera expectativa de direito, tem-se entendido que, no caso do candidato classificado dentro das vagas previstas no Edital, há direito subjetivo à nomeação durante o período de validade do concurso. Isso porque, nessa hipótese, estaria a Administração adstrita ao que fora estabelecido no edital do certame, razão pela qual a nomeação fugiria ao campo da discricionariedade, passando a ser ato vinculado. Precedentes do STJ e STF.
Recurso provido.[4][Grifado]
ADMINSITRATIVO – SERVIDOR PÚBLICO – CONCURSO – APROVAÇÃO DE CANDIDATO DENTRO DO NÚMERO DE VAGAS PREVISTAS EM EDITAL – DIREITO LÍQUIDO E CERTO À NOMEAÇÃO E À POSSE NO CARGO – RECURSO PROVIDO.
1. Em conformidade com jurisprudência pacífica desta Corte, o candidato aprovado em concurso público, dentro do número de vagas previstas em edital, possui direito líquido e certo à nomeação e à posse.
2. A partir da veiculação, pelo instrumento convocatório, da necessidade de a Administração prover determinado número de vagas, a nomeação e posse, que seriam, a princípio, atos discricionários, de acordo com a necessidade do serviço público, tornando-se vinculados, gerando, em contrapartida, direito subjetivo para o candidato aprovado dentro do número de vagas previstas em edital. Precedentes.
3. Recurso ordinário provido.[5] (Grifado)
O Tribunal de Justiça Catarinense também parece estar caminhando para esse entendimento a fim de moralizar a realização de concursos e manter ilesa a moralidade e a segurança jurídica sobre os atos da Administração Pública. É o que se extrai da decisão liminar concedida em mandado de segurança, cuja relatoria está a cargo do desembargador César Abreu:
Alega, em síntese, que fora aprovada em 1º lugar para única vaga existente, aberta pelo concurso previsto pelo Edital n. 01/05, omitindo-se a Administração quanto à sua nomeação e posse. As autoridades compareceram aos autos alegando que “O candidato, uma vez aprovado em concurso público, somente tem uma expectativa de direito de nomeação”. Ocorre que “a partir da veiculação, pelo instrumento convocatório, da necessidade de a Administração prover determinado número de vagas, a nomeação e posse, que seriam, a princípio, atos discricionários, de acordo com a necessidade do serviço público, tornam-se vinculados, gerando, em contrapartida, direito subjetivo para o candidato aprovado dentro do número de vagas previstas em edital” (RMS n. 20.718/SP, Min. Paulo Medina, DJ 3-3-08) (grifo não constante do original). Assim, concedo a liminar nos termos do item 1 do requerimento da inicial […][6]
Destarte, é com grande satisfação que se observa uma revisão da doutrina e da jurisprudência quanto à questão do direito à nomeação pelo candidato aprovado em concurso público, fazendo com que sejam retomados os nortes instituídos pela Constituição Federal brasileira de 1988.
Desrespeitar o direito à nomeação daquele que logrou aprovação em concurso público dentro do número de vagas oferecidas em edital é afrontar, sobretudo o Estado Democrático de Direito instituído pelo legislador constituinte e fazer cair por terra a legalidade dos atos administrativos. A moralização dos serviços públicos começa com a manutenção da ordem no ingresso de novos servidores e empregados públicos que devem ver no concurso público mais do que uma mera oportunidade profissional, mas uma maneira de se contribuir para a construção de um grande Estado.
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[1] Art. 37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: […]
II – a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para o cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
III – o prazo de validade do concurso público será de até dois anos, prorrogável uma vez, por igual período;
IV – durante o prazo improrrogável previsto no edital de convocação, aquele aprovado em concurso público de provas ou de provas e títulos será convocado com prioridade sobre novos concursados para assumir cargo ou emprego, na carreira; […]. (Grifado)
[2] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro, 26 ed. atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho, Malheiros Editores, São Paulo: 2001, p. 259.
[3] STF, RE n. 192.568-0/PI, rel. Min. Marco Aurélio, DJ de 13/09/96, p. 33.241.
[4] STJ, RMS n. 15.034/RS, rel. Min. Felix Fischer, DJ de 29/03/2004.
[5] STJ, RMS n. 20.718, rel. Mina. Jane Silva, DJ de 03.03.2008.
[6] TJSC, MS n. 2008.006702-8, rel. Dês. César Abreu, DJE de 25/03/08.
Revista Consultor Jurídico