Reserva de poder – Não é o STF que diz que sessão de CPI deve ser secreta

por Rodrigo Haidar

Quem deve definir se as sessões de uma Comissão Parlamentar de Inquérito serão públicas ou secretas é a própria CPI. Não cabe ao Supremo Tribunal Federal determinar que a sessão seja reservada ou impedir o acesso dos meios de comunicação aos depoimentos ali tomados. Isso caracterizaria a interferência indevida de um poder em outro e feriria o princípio constitucional da publicidade.

Com base nessas premissas, o ministro Celso de Mello, do Supremo, rejeitou pedido de José Ribamar Reis Guimarães, agente da Agência Brasileira de Inteligência (Abin), para que seu depoimento à CPI das Escutas Clandestinas, marcado para as 14h desta quarta-feira (26/11), fosse tomado em caráter reservado. O ministro rejeitou também o pedido do agente para que não tivesse que comparecer à CPI.

O pedido de liminar em Habeas Corpus feito pelo agente foi acolhido em parte, para garantir apenas que ele seja assistido por um advogado e o direito de não responder a perguntas cujas respostas possam incriminá-lo ou sobre o serviço de inteligência.

O agente, contudo, deve responder perguntas sobre suposta participação em operações policiais. Pela liminar, Reis Guimarães tem o direito de não prestar “informações sobre assuntos de inteligência, excluídos, no entanto, aqueles que se referirem, unicamente, a ações ou diligências eventualmente executadas no curso de operações meramente policiais, salvo se puder resultar, das respostas, auto-incriminação do ora impetrante”.

Sobre o caráter público do depoimento, Celso de Mello ressaltou que não se pode impedir que a imprensa tenha conhecimento dos trabalhos do Congresso Nacional porque, nesse caso, “há de preponderar um valor maior, representado pela exposição, ao escrutínio público, dos processos decisórios e investigatórios em curso no Parlamento”.

O ministro rejeitou também o pedido para que a tramitação do Habeas Corpus no Supremo fosse coberta por sigilo de Justiça: “Nada deve justificar, em princípio, a tramitação, em regime de sigilo, de qualquer procedimento que tenha curso em juízo, notadamente no Supremo Tribunal Federal, eis que, na matéria, deve prevalecer a cláusula da publicidade”.

José Ribamar Reis Guimarães foi convocado pela CPI das Escutas para depor a pedido do deputado federal Nelson Pelegrino (PT-BA), relator da comissão. Em depoimento à CPI, Paulo Maurício Fortunato Pinto, diretor de contra-inteligência da Abin, apontou Reis Guimarães como o responsável por coordenar os agentes que apoiaram o delegado Prótogenes Queiroz na realização Operação Sathiagraha.

Leia a liminar

MED. CAUT. EM HABEAS CORPUS 96.982-8 DISTRITO FEDERAL

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

PACIENTE(S): JOSÉ RIBAMAR REIS GUIMARÃES

IMPETRANTE(S): JOSÉ RIBAMAR REIS GUIMARÃES

COATOR(A/S)(ES): PRESIDENTE DA COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CPI DAS ESCUTAS TELEFÔNICAS CLANDESTINAS)

DECISÃO: Trata-se de “habeas corpus”, que, impetrado contra a “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”, objetiva preservar o “status libertatis” do ora impetrante, alegadamente ameaçado de iminente violação por ato imputável a referido órgão de investigação parlamentar.

Busca-se, com a presente ação de “habeas corpus”, a obtenção de provimento jurisdicional que assegure, cautelarmente, ao ora paciente, (a) o direito de não comparecer à audiência de sua inquirição pela “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”, designada para o dia 26/11/2008 (fls. 09), ou, caso se lhe recuse essa postulação, (b) o direito de não “(…) firmar termo de compromisso junto à Comissão Parlamentar de Inquérito” (fls. 08/09) e de “(…) não prestar informações sobre assuntos de inteligência” (fls. 09), resguardando-se, ainda, “a imagem e a pessoa do impetrante”, que deverá ser ouvido – segundo pleito formulado por ele próprio – “em sessão secreta e em local cuja entrada e saída também possa assegurar o sigilo de sua identidade” (fls. 09).

Passo a apreciar o pedido de medida liminar formulado nesta sede processual.

Analiso, inicialmente, a pretendida imposição do regime de sigilo, tanto à tramitação, no Supremo Tribunal Federal, deste processo de “habeas corpus” (fls. 09), quanto à inquirição, pela “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”, do ora impetrante, que deseja ser ouvido “em sessão secreta e em local cuja entrada e saída também possa assegurar o sigilo de sua identidade” (fls. 09).

Indefiro tais pleitos, pois – segundo entendo – nada deve justificar, em princípio, a tramitação, em regime de sigilo, de qualquer procedimento que tenha curso em juízo, notadamente no Supremo Tribunal Federal, eis que, na matéria, deve prevalecer a cláusula da publicidade.

E no que concerne ao pedido de “que seja resguardada a imagem e a pessoa do impetrante, assegurando-se sua oitiva em sessão secreta e em local cuja entrada e saída também possa assegurar o sigilo de sua identidade” (fls. 09 – grifei), também entendo que tal postulação, se admitida, representaria claro (e inaceitável) ato de censura judicial à publicidade e divulgação das sessões dos órgãos legislativos em geral, inclusive das Comissões Parlamentares de Inquérito.

As razões que me levam a assim decidir apóiam-se na compreensão de que os estatutos do poder, numa República fundada em bases democráticas, não podem privilegiar o mistério (MS 24.725- -MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “in” Informativo/STF nº 331).

Na realidade, a Carta Federal, ao proclamar os direitos e deveres individuais e coletivos (art. 5º), enunciou preceitos básicos, cuja compreensão é essencial à caracterização da ordem democrática como um regime do poder visível, ou, na lição expressiva de BOBBIO (“O Futuro da Democracia”, p. 86, 1986, Paz e Terra), como “um modelo ideal do governo público em público”.

A Assembléia Nacional Constituinte, em momento de feliz inspiração, repudiou o compromisso do Estado com o mistério e com o sigilo, que fora tão fortemente realçado sob a égide autoritária do regime político anterior.

Ao dessacralizar o segredo, a Assembléia Constituinte restaurou velho dogma republicano e expôs o Estado, em plenitude, ao princípio democrático da publicidade, convertido, em sua expressão concreta, em fator de legitimação das decisões e dos atos governamentais.

É preciso não perder de perspectiva que a Constituição da República não privilegia o sigilo, nem permite que este se transforme em “praxis” governamental, sob pena de grave ofensa ao princípio democrático, pois, consoante adverte NORBERTO BOBBIO, em lição magistral sobre o tema (“O Futuro da Democracia”, 1986, Paz e Terra), não há, nos modelos políticos que consagram a democracia, espaço possível reservado ao mistério.

Tenho por inquestionável, por isso mesmo, que a exigência de publicidade dos atos que se formam no âmbito do aparelho de Estado traduz conseqüência que resulta de um princípio essencial a que a nova ordem jurídico-constitucional vigente em nosso País não permaneceu indiferente.

O novo estatuto político brasileiro – que rejeita o poder que oculta e que não tolera o poder que se oculta – consagrou a publicidade dos atos e das atividades estatais como expressivo valor constitucional, incluindo-o, tal a magnitude desse postulado, no rol dos direitos, das garantias e das liberdades fundamentais, como o reconheceu, em julgamento plenário, o Supremo Tribunal Federal (RTJ 139/712-713, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Impende assinalar, ainda, que o direito de acesso às informações de interesse coletivo ou geral – a que fazem jus os cidadãos e, também, os meios de comunicação social – qualifica-se como instrumento viabilizador do exercício da fiscalização social a que estão sujeitos os atos do poder público, tal como enfatizei em julgamento proferido nesta Suprema Corte:

“PRETENDIDA INTERDIÇÃO DE USO, POR MEMBROS DE CPI, DE DADOS SIGILOSOS A QUE TIVERAM ACESSO. INVIABILIDADE. POSTULAÇÃO QUE TAMBÉM OBJETIVA VEDAR O ACESSO DA IMPRENSA E DE PESSOAS ESTRANHAS À CPI À INQUIRIÇÃO DO IMPETRANTE. INADMISSIBILIDADE. INACEITÁVEL ATO DE CENSURA JUDICIAL. A ESSENCIALIDADE DA LIBERDADE DE INFORMAÇÃO, ESPECIALMENTE QUANDO EM DEBATE O INTERESSE PÚBLICO. A PUBLICIDADE DAS SESSÕES DOS ÓRGÃOS DO PODER LEGISLATIVO, INCLUSIVE DAS CPIs, COMO CONCRETIZAÇÃO DESSA VALIOSA FRANQUIA CONSTITUCIONAL. NECESSIDADE DE DESSACRALIZAR O SEGREDO. PRECEDENTES (STF). PEDIDO DE RECONSIDERAÇÃO INDEFERIDO.”

(MS 25.832-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Não cabe, ao Supremo Tribunal Federal, interditar o acesso dos meios de comunicação às sessões dos órgãos que compõem o Poder Legislativo, muito menos privá-los do conhecimento dos atos do Congresso Nacional e de suas Comissões de Inquérito, pois, nesse domínio, há de preponderar um valor maior, representado pela exposição, ao escrutínio público, dos processos decisórios e investigatórios em curso no Parlamento.

Não foi por outra razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal – apoiando-se em valioso precedente histórico firmado, por esta Corte, em 05/06/1914, no julgamento do HC 3.536, Rel. Min. OLIVEIRA RIBEIRO (Revista Forense, vol. 22/301-304) – não referendou decisão liminar, que, proferida no MS 24.832-MC/DF, havia impedido o acesso de câmeras de televisão e de particulares em geral a uma determinada sessão de CPI, em que tal órgão parlamentar procederia à inquirição de certa pessoa, por entender que a liberdade de informação (que compreende tanto a prerrogativa do cidadão de receber informação quanto o direito do profissional de imprensa de buscar e de transmitir essa mesma informação) deveria preponderar no contexto então em exame.

Desnecessário afirmar que a definição do caráter reservado, ou não, das sessões da Comissão Parlamentar de Inquérito compete, exclusivamente, a esse mesmo órgão de investigação legislativa, não se justificando a interferência – que seria indevida – do Supremo Tribunal Federal na imposição, aos trabalhos da CPI, do regime de sigilo.

Inacolhível, desse modo, a pretendida decretação do regime de sigilo, tal como foi postulado pelo ora impetrante.

O ora impetrante busca, ainda, a concessão de medida liminar que o dispense da obrigação de comparecer perante a CPI em questão.

Não vejo como atender esse pedido, eis que, como se sabe, a pessoa convocada por uma CPI para depor tem um tríplice dever: (a) o de comparecer, (b) o de responder às indagações e (c) o de dizer a verdade (RTJ 163/626, 635, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – RTJ 169/511- -514, Rel. Min. PAULO BROSSARD, v.g.).

Defiro, no entanto, a postulação cautelar, no ponto em que objetiva garantir, ao ora paciente, o direito de não firmar termo de compromisso e o de não prestar informações sobre assuntos de inteligência, excluídos, no entanto, aqueles que se referirem, unicamente, a ações ou diligências eventualmente executadas no curso de operações meramente policiais, salvo se puder resultar, das respostas, auto-incriminação do ora impetrante.

Tenho enfatizado, em decisões proferidas no Supremo Tribunal Federal, a propósito da prerrogativa constitucional contra a auto-incriminação (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO), e com apoio na jurisprudência prevalecente no âmbito desta Corte, que assiste, a qualquer pessoa, regularmente convocada para depor perante Comissão Parlamentar de Inquérito, o direito de se manter em silêncio, sem se expor – em virtude do exercício legítimo dessa faculdade – a qualquer restrição em sua esfera jurídica, desde que as suas respostas, às indagações que lhe venham a ser feitas, possam acarretar-lhe grave dano (“Nemo tenetur se detegere”).

É que indiciados ou testemunhas dispõem, em nosso ordenamento jurídico, da prerrogativa contra a auto-incriminação, consoante tem proclamado a jurisprudência constitucional do Supremo Tribunal Federal (RTJ 172/929-930, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – RDA 196/197, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 78.814/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Cabe acentuar que o privilégio contra a auto-incriminação – que é plenamente invocável perante as Comissões Parlamentares de Inquérito (UADI LAMMÊGO BULOS, “Comissão Parlamentar de Inquérito”, p. 290/294, item n. 1, 2001, Saraiva; NELSON DE SOUZA SAMPAIO, “Do Inquérito Parlamentar”, p. 47/48 e 58/59, 1964, Fundação Getúlio Vargas; JOSÉ LUIZ MÔNACO DA SILVA, “Comissões Parlamentares de Inquérito”, p. 65 e 73, 1999, Ícone Editora; PINTO FERREIRA, “Comentários à Constituição Brasileira”, vol. 3, p. 126-127, 1992, Saraiva, v.g.) – traduz direito público subjetivo, de estatura constitucional, assegurado a qualquer pessoa pelo art. 5º, inciso LXIII, da nossa Carta Política.

É por essa razão que o Plenário do Supremo Tribunal Federal reconheceu esse direito também em favor de quem presta depoimento na condição de testemunha, advertindo, então, que “Não configura o crime de falso testemunho, quando a pessoa, depondo como testemunha, ainda que compromissada, deixa de revelar fatos que possam incriminá-la” (RTJ 163/626, Rel. Min. CARLOS VELLOSO – grifei).

Na realidade, ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal (HC 80.530-MC/PA, Rel. Min. CELSO DE MELLO). Trata-se de prerrogativa, que, no autorizado magistério de ANTÔNIO MAGALHÃES GOMES FILHO (“Direito à Prova no Processo Penal”, p. 111, item n. 7, 1997, RT), “constitui uma decorrência natural do próprio modelo processual paritário, no qual seria inconcebível que uma das partes pudesse compelir o adversário a apresentar provas decisivas em seu próprio prejuízo (…)”.

Cumpre rememorar, bem por isso, que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o HC 68.742/DF, Rel. p/ o acórdão Min. ILMAR GALVÃO (DJU de 02/04/93), também reconheceu que o réu não pode, em virtude do princípio constitucional que protege qualquer acusado ou indiciado contra a auto-incriminação, sofrer, em função do legítimo exercício desse direito, restrições que afetem o seu “status poenalis” (RTJ 176/805-806, Rel. Min. CELSO DE MELLO – RTJ 180/1125, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, v.g.).

Esta Suprema Corte, fiel aos postulados constitucionais que expressivamente delimitam o círculo de atuação das instituições estatais, enfatizou que qualquer indivíduo “tem, dentre as várias prerrogativas que lhe são constitucionalmente asseguradas, o direito de permanecer calado. ‘Nemo tenetur se detegere’. Ninguém pode ser constrangido a confessar a prática de um ilícito penal” (RTJ 141/512, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Em suma: o direito ao silêncio – e o de não produzir provas contra si próprio (HC 96.219-MC/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO) – constitui prerrogativa individual que não pode ser desconsiderada por qualquer dos Poderes da República.

Embora não expressamente postulado, asseguro, ao ora paciente, o direito de se ver assistido, tecnicamente, por Advogado.

Ao assim decidir, faço aplicável, ao caso, orientação jurisprudencial que esta Suprema Corte firmou no tema das relações entre indiciados/testemunhas, Advogados por estes constituídos e Comissões Parlamentares de Inquérito em geral.

Isso significa reconhecer, portanto, que se aplica, às Comissões Parlamentares de Inquérito, em suas relações com os Advogados, o mesmo dever de respeito – cuja observância também se impõe aos Magistrados (e a este Supremo Tribunal Federal, inclusive) – às prerrogativas profissionais previstas no art. 7º da Lei nº 8.906/94, que instituiu o “Estatuto da Advocacia”, tal como tive o ensejo de proclamar em decisão proferida nesta Suprema Corte (HC 88.015-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.).

Sendo assim, tendo em consideração as razões expostas, e sem dispensar o ora paciente de comparecer perante a “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”, defiro, em parte, o pedido de medida liminar, nos precisos termos expostos nesta decisão, em ordem a assegurar, cautelarmente, a esse mesmo paciente, (a) o direito de exercer o privilégio constitucional contra a auto-incriminação, sem que se lhe possa impor a obrigação de assinar o termo de compromisso e sem que se possa adotar, contra o paciente em questão, como conseqüência do regular exercício de tal prerrogativa jurídica, qualquer medida restritiva de direitos ou privativa de liberdade, e (b) o direito de ser assistido por seu Advogado e de com este comunicar-se durante o curso de seu depoimento perante a referida Comissão Parlamentar de Inquérito.

A presente medida cautelar prevalecerá em sua integralidade, mesmo que o ora paciente não seja inquirido, na data de amanhã (26/11/2008), perante a referida “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”.

2. Comunique-se, com urgência, o teor desta decisão ao eminente Senhor Presidente da “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”.

O ofício de comunicação deverá ser encaminhado, mediante telex, “fax” ou qualquer outro meio ágil de comunicação, ao Presidente da “CPI das Escutas Telefônicas Clandestinas”, em ordem a permitir a sua imediata cientificação quanto ao teor da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 25 de novembro de 2008 (23:50h).

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

Revista Consultor Jurídico

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