por Elio Gaspari
O diretor da Polícia Federal, Luiz Fernando Corrêa, diz que a decisão do Supremo Tribunal Federal definindo as situações em que cidadãos podem ser algemados “não tem precedente”. Tem, a menos que o doutor esteja a insinuar que o STF proibiu o uso das algemas. O que a corte fez foi estabelecer condições, tais como a periculosidade da situação e o risco de fuga de uma pessoa detida. Fora isso, pode algemar quem quiser desde que seja “justificada a excepcionalidade por escrito”. O Supremo apenas determinou que o policial justifique o fato de ter algemado um cidadão. Se não o fizer, poderá ser responsabilizado administrativamente. É pedir muito? Quem não deve não teme, assim como quem não está encenando diligências espetaculosas, nada tem a reclamar.
Quanto ao “precedente”, há um. Em 2005, a Corte Suprema dos Estados Unidos julgou o caso de Iris Mena, uma jovem que acusava a polícia de ter violado seus direitos por mantê-la algemada durante três horas. Uma boa notícia para o delegado: Mena perdeu por 6 x 3. O caso vale pela relação que existe entre o uso de algemas e os direitos elementares do cidadão, mesmo quando o cidadão não passa de um desses tipos elementares.
Iris Mena estava dormindo quando sua casa foi invadida por 18 policiais (oito da Swat). De acordo com uma denúncia e as suspeitas da polícia, era um valhacouto de bandidos da gangue hispânica West Side Locos. Havia outras três pessoas no terreno da casa. Foram todos rendidos e, algemados, ficaram na garagem durante o tempo da diligência. (Foram apreendidos um revólver e um saquinho de maconha.) Quando os policiais se retiraram, libertaram Iris. É desnecessário dizer que ninguém convidou holofotes para registrar a operação.
A moça buscou seu direito e prevaleceu nas duas primeiras instâncias, habilitando-se a receber uma indenização de US$ 60 mil. Os policiais ganharam na Suprema Corte porque a maioria entendeu que a polícia tem base legal para manter uma pessoa algemada enquanto sua casa é revistada. No caso, havia até a suspeita de que lá pudesse haver delinqüentes escondidos. Para o bem ou para o mal, Iris foi algemada para preservar a segurança dos policiais. Os três votos que divergiram lembraram que ela é uma pequena mulher, estava descalça e de camisola.
Não passou pela cabeça de nenhum dos nove juízes a idéia segundo a qual a corte não tem nada a ver com casos desse tipo. É o Judiciário quem diz se a polícia violou os direitos de um cidadão e não a polícia quem delimita a jurisdição do Judiciário. No caso, a maioria da corte entendeu que é preferível algemar uma mulher por três horas a admitir a hipótese de enfraquecer a segurança dos policiais.
As algemas que chegaram à Suprema Corte americana saíram de uma casa de periferia, habitada por gente metida em encrencas, dessas que em Pindorama nem algemas conseguem. Em geral, as pessoas são amarradas com fios e ficam sentadas nas calçadas, como se estivessem numa estampa de Debret. Quando levam dois tiros nas costas, conseguem a notoriedade de serem apresentados como “supostos traficantes”.
A Polícia Federal está estranhando o Supremo Tribunal Federal. Em seus 184 anos de existência a corte já teve horas difíceis, mas nunca foi obrigada a entrar em bolas divididas com delegados.
Artigo publicado originalmente nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo/b>.
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